Aos gritos de solerte, velhaco, finório, manhoso, A. da
P., funcionário público à beira da reforma, foi escoltado para fora da sala do
tribunal de 1ª instância da comarca de l. por dois agentes das forças da ordem
em traje civil, vulgo à paisana, ou assim pareciam. Pareciam agentes das forças
da ordem, que envergavam traje civil era evidente.
Esperar-se-ia de quem
enverga traje civil que fizesse jus ao adjectivo e à sugestão de civilidade que
este acarreta, mas a escolta foi abrupta e é isso que faz suspeitar da pertença
dos dois indivíduos a um qualquer ramo do corpo, braço do corpo, que executa a
autoridade de um estado, detentor do monopólio da força legítima. A necessidade
de um tal ramo ou braço que faça cumprir aquelas determinações que o estado
entende indispensáveis para a ordem pública, daí o epíteto parafrásico forças
da ordem, decorre da tendência infantil dos membros da comunidade política para
a recalcitrância e mesmo para a contumácia. Ou seja, porque a ordem tem que se
garantir à força, uma força que podemos dizer centrípeta e que contraria a
força que podemos dizer centrífuga do indivíduo renitente. Não se pense que há
um anarquista em cada cidadão e que cada cidadão preferiria a desordem, o caos,
a balbúrdia. Antes cada cidadão é uma república em si mesmo, como ensinou
Platão, e quer obedecer apenas àquela lei que dá a si próprio, como ensinou
Kant. Começamos a perceber que falar neste caso de uma tendência infantil é uma
forma de condicionar a percepção do público quanto à conduta do indivíduo
autónomo e insubmisso, uma distorção ideológica levada a cabo através da
manipulação da linguagem, como nos ensinou Orwell e antes dele Marx. A imagem
do tributário conforme, a quem aborrecem os furtos pequenos mas que se congraça
com os grandes, mantém o indivíduo naquele estádio ético de que Kierkegaard nos
ensinou a suspeitar por pôr em risco a autenticidade que faz com que a vida
valha a pena ser vivida. Às vistas curtas de que Hobbes nos acusa e à
reconciliação que Hegel nos promete, antefiramos a vigilância constante sobre
os poderes que Locke nos ensinou ser condição de uma sociedade livre. Até à
revolta, se for preciso. Como A. da P., funcionário público à beira da reforma,
que fez neste dia da sua vociferação um manifesto.
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