Nunca me tinha ocorrido que alguém sobrevivesse assim, o corpo completamente gasto, a pele e a carne já em estado de decomposição. Não se vêem músculos, apenas a definição dos ossos cobertos por pele solta, drapeada que nem um tecido, intercalada por recortes de negro. Perguntei se tinha deixado de comer, mas não, naquela altura, a senhora continuava a comer três refeições por dia, mas o sistema digestivo já não devia funcionar o suficiente para levar os nutrientes aos órgãos.
Talvez o vácuo que senti antes, durante, e depois seja uma forma de aceitação: aquele corpo gasto também faz parte da nossa vida. Que alguém se agarre tanto a esta existência, que não morra sem levar tudo o que acumulou, que essencialmente é o que tem no corpo, impressiona. Na realidade, tudo o que fazemos ao nosso corpo afasta ou atrai a nossa morte. "Death is a blessing, in these circumstances" -- "a blessing", observava a enfermeira, uma palavra que raramente uso, mas que ouvi pela segunda vez esta semana. A primeira vez, fui eu que a proferi, mas a respeito de acontecimentos da minha vida -- os tais males que vêm por bem.
Até agora, nunca tinha acompanhado de perto o crepúsculo da vida de ninguém a este nível. Todas as pessoas que me morreram não chegaram a ter um desgaste de vida tão avançado como o daquela senhora, mesmo o corpo da mãe da minha vizinha ainda não chegou a tal estado. É uma dádiva que recebo, este conhecimento que me dão, e sinto uma admiração enorme por pessoas como esta enfermeira que vivem na cúspide entre a vida e a morte, que dedicam a vida à curadoria da morte de alguém.
"My patients tend to live longer", diz-nos: ela constrói um laço emotivo com eles, a forma como fala, como lhes toca... Não trabalha das 8 da manhã às 5 da tarde; em vez disso, disponibiliza o seu número de telefone e acompanha as famílias dos pacientes fora das horas de expediente. Às vezes, quando ouço alguém falar dos direitos dos trabalhadores a não serem incomodados fora do horário de trabalho, sinto um profundo nojo porque sei que há quem não faça essa distinção e continue a trabalhar para benefício dos outros. Essas pessoas merecem reconhecimento, em vez de censura.
Tenho dormido em ciclos, costumo acordar a meio da noite e passo algum tempo acordada até voltar adormecer. Durante o dia, prefiro os dias nublados, acho a claridade demasiado ofensiva e só consigo sentir-me melhor perto do pôr do sol. Contei à minha vizinha os meus problemas de sono, a minha vontade de não fazer nada. Ela diz que decerto que há uma carga emocional que não posso ignorar por estar tão próximo da mãe dela. Talvez. Sinto que dentro de mim, há um misto de paz, aceitação, e rebeldia.
Há algo que me puxa para seguir em frente, mas penso não quero que ninguém tenha tanto cuidado comigo quando estiver perto de morrer. Quero morrer antes, sem dar trabalho aos outros, apesar de sentir um enorme conforto em poder ajudar de cuidar de alguém. Não consigo resolver esta dicotomia interior.
E se fizer um pequeno sobrevoo sobre 'o testamento vital'?
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