Saltei um, o 41, mas 42 é o ano em que a minha mãe nasceu e ela é pertinente para esta história. Se fosse viva, estaria a perguntar-me como é que eu ainda não tinha feito nada, mas nada pode ser feito. Nada pode ser feito contra a morte, mesmo que haja lendas africanas em que se conte que lembrar-nos nos mortos os mantenha naquele estado de semi-vivos, entre a vida e a morte. Essa lenda deu aso a um livro de Kevin Bruckheimer, "The Brief History of the Dead." A breve história dos mortos, mas o que é breve é a vida, aquela coisa em que um dia estamos e no outro estivemos.
Ela esteve até Sábado, dia em que morreu. Não conheci a pessoa, era uma amiga virtual, mas trocámos algumas mensagens. Recordo-me de uma em que pediu ajuda para um projecto que o filho tinha na escola, que era relacionado com economia; noutra vez, perguntou-me se eu me disponibilizava para apoiar o filho que uma amiga que vinha fazer um programa de intercâmbio nos EUA, se fosse preciso. Parece tão recente e foi ha tanto tempo. Tinha sensivelmente a minha idade, um aniversário que se celebrava a 6 de Fevereiro. Mas, no dia 9 de Fevereiro irá celebrar-se outro aniversário: o da morte, é um daqueles aniversários em que eu penso porque um dia é o nosso e eu tenho tendência mórbidas. E logo calhou hoje um amigo meu no Facebook perguntar se era sinal de depressão pensar tanto na morte. Não, não é sinal de depressão; é sinal de inteligência, respondo-lhe.
Se querem que vos diga, sabia que estava doente, mas não liguei muito até há uns dias em que postou qualquer coisa no Facebook e senti alguma urgência. Senti calafrios, vontade de chorar, e, nesse dia, quase que me apeteceu ir para casa, não queria estar no trabalho, mas resisti, pensei que fosse uma das minhas pequenas paranóias. Pensei no pouco que poderia fazer para apoiá-la. É difícil apoiar alguém quando estamos longe, ainda por cima, na nossa condição virtual, apenas podemos marcar a nossa presença. Dizer que estamos a pensar na pessoa, que estamos a torcer por ela, os lugares comuns do costume por muito sentidos que sejam.
Mas não é suficiente e sabe a pouco. Que mais poderá ser feito estando no outro lado do mundo... Pedi a morada para enviar um postal de melhoras, mas achei mais célere enviar algo que estivesse já em Portugal. Talvez os correios fossem mais rápidos, mas a dúvida assalta os pensamentos--os CTT são uma porcaria, não dá para contar com eles para nada. Mas, mesmo assim, contactei uma amiga a perguntar se podia enviar umas bolachas e um postal em meu nome. Era para seguir hoje e este fim-de-semana fiquei de enviar o texto para o postal, o que fiz ontem.
Hoje também soube que era tarde demais, tinha morrido no Sábado. Penso nos filhos, tão novos, no marido, na mãe. A ideia de perder um filho persegue-me, acho uma das coisas mais horrorosas, mas morrer e causar dor a um filho também não fica atrás. À filha ela começou a tricotar uma camisola que não conseguiu acabar. Cá em casa também há um projecto inacabado. Antes de morrer, a minha mãe decidiu que ia fazer-me uma colcha em crochet. Estes projectos não são projectos em si, são tentativas de lançar uma âncora, de se iludir que não podem partir sem terminar o que se propuseram a fazer, de se agarrar à vida. Talvez terminar criar um filho seja o projecto herculíneo, que requer demasiado, mas um crochet, uma tricot parece tão mais fácil, qualquer um pode pensam as pessoas que sentem que o fim se aproxima.
Uma vez postei umas fotos do meu quarto: nas mesinhas de cabeceira e nas estantes tinha algumas peças do crochet da minha mãe. E esta amiga virtual viu as fotos e pediu imagens mais detalhadas, também gostava de crochet. De todos os lavores, o crochet é para mim o mais efusivo. Nunca consegui que o meu ponto fosse consistente, nem sequer consegui terminar um projecto. Depois da minha mãe morrer, tentei terminar a colcha, mas pouco progresso houve.
Estou a ouvir a Natalie Merchant. Quando morre alguém, apetece ouvi-la. Lá fora chove, como choveu no fim-de-semana. É um conforto. Quando a minha mãe morreu e fui à morgue esperar que preparassem o corpo também chovia. Quando uma parte do nosso mundo termina, as coisas mais insignificantes é que nos podem manter ligados à vida. Não para sempre, mas por algum tempo.
Que descanse em paz.
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