segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Construção

Uma das primeiras coisas que vi ao entrar em Houston foi o que me pareceu um cão vadio. Deu-me imensa pena ver o animal ao lado da estrada, mas parecia estar bem alimentado. Já não me recordo se estava na parte da US-59 ou da I-69, dado que se sobrepõem. Depois o telemóvel mandou-me por umas ruas secundárias perto do Bush Internationa Airport porque a I-69 estava em obras. Era tudo meio feinho e senti exactamente o mesmo da primeira vez que cá vi: esta cidade é muito feia. Nem todas as partes são feias, mas as que são sobre-compensam. É difícil imaginar o futuro quando estou perto de coisas feias. Mesmo assim, adoro Houston. Cresci imenso aqui, tive experiências incríveis, nem todas boas ou más, e tenho bastantes amigos ligados ao tempo que passei aqui.

Na Sexta-feira, passei a tarde com a minha vizinha que tem 96 anos. O plano da família é que ela chegue aos 100, mas ela ainda não se convenceu. Por causa da pandemia, deixou de jogar golfe e agora perde o equilíbrio facilmente quando está em terreno mais incerto, como é o caso do relvado lá de casa. Passou a usar uma bengala de apoio que detesta, mas ainda vive sozinha e, recentemente, conduziu o carro pela vizinhança para ver se a bateria não vai abaixo. Uma das filhas que passa lá por casa frequentemente ralha com ela se ela tira a máscara em frente a amigos e também deixou recado para eu não entrar em casa. Como uns senhores estavam a cortar a relva e fazia muito barulho, tive cartão verde para entrar, mas sem o conhecimento da filha.

Conversámos sobre muitas coisas, inclusive de arrependimentos, que eu disse ter pouquíssimos. O facto de eu ser lenta é devido a passar demasiado tempo a analisar as coisas, logo quando decido algo, considero que, dada a informação que tenho, essa era a decisão acertada. Ela que já viu muito mais coisas do que eu, sente o peso de algumas experiências menos conseguidas. Acha que foi má para algumas pessoas, fez coisas que agora acha feias, etc. Pois, mas nós não somos perfeitos e cada momento da nossa vida é definido por tudo o que veio atrás. Sem o passado não existe presente -- para o bem e para o mal.

Ainda não me sinto crescida, não acho que sou adulta, disse-lhe, e ela respondeu-me que ela também não. Toda a nossa vida é uma sucessão de aventuras, de dias cheios de eventos que nos eram desconhecidos momentos antes. Todos os diálogos inventados na hora, os movimentos improvisados como se tivessemos certeza que era assim que deviam ser. Mesmo aos 96, a nossa vida é tão curta.

O meu jantar de hoje foi passado com algumas amigas que conheci através dela, pessoas das relações dela há décadas e que entraram na minha há uns cinco ou seis anos. Tornámo-nos bastante amigas e, apesar da distância e da pandemia, falamos todas as semanas, fazemos viagens juntas, e visitamo-nos frequentemente. Se estou deprimida ou em baixo, telefonam-me para me animar, enviam-me livros de auto-ajuda, máscaras para o Covid-19, autocolantes de bouledogues franceses para o meu carro, etc.

Não somos crescidos, mas é assim que crescemos. Acima de tudo, a nossa vida é um encadeado de amizades: através de umas pessoas conhecemos outras. Constantemente, há quem entre e saia do nosso dia-a-dia, mas é juntos e desta colecção de momentos que construímos esta coisa a que chamamos vida.

1 comentário:

  1. Conduzir aos noventa e seis anos é obra! Tem piada os EUA terem já várias gerações de vidas vividas na classe média, com relativa prosperidade.

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