37. Ouçam só o que eu ouvi dizer, que a gente não se liberta de um hábito atirando-o da janela, é preciso fazê-lo descer a escada, degrau a degrau.
Ou seja. Qualquer coisa como isto. Todos os dias, era fatal, Adozinda resmungava ao levantar-se da cama porque se lhe escapava o chinelo para debaixo da dita. Só se lhe escapava um, mas era o suficiente para andar ela desequilibrada o resto da manhã se acontecesse não conseguir encontrá-lo. Tentava desde logo equilibrar-se da seguinte forma, primeiro, abrindo os braços em cruz, segundo, encostando-se ao psiché, terceiro, resmungando. Não lhe valia de grande coisa o resmungo, parece, mas sim, as aparências enganam, dava-lhe um certo conforto e devolvia-a à consciência. Eu explico. Assim que lhe saía pela boca o resmungo, Adozinda dava por si. Até resmungar, não sabia quem era, onde estava, ou o que era um chinelo. Pudera, não tinha ainda dado por si. As coisas são como são. Às vezes não damos por nós e não é só à Adozinda que isto acontece. O que só acontece à Adozinda, ou só a algumas pessoas e não todas, é que seja um resmungo a devolvê-la à consciência, que é como quem diz, a devolvê-la a si. E reparem que a vontade de equilibrar-se, e a acção que concretiza essa vontade, existem ainda antes da Adozinda dar por si, ou seja, ainda antes de ser ela devolvida à consciência. O que a alguns de nós suscitará a questão difícil de saber o que tem prioridade na ordem das coisas, a vontade ou o si, a acção ou a consciência. Já à Adozinda, uma vez tendo dado por si, interessa saber o que foi feito do chinelo. E não só porque lhe interesse recuperar o equilíbrio. Também porque é um chinelo que já lhe conhece o pé, as manhas dos calos e as astúcias dos joanetes, e ter um chinelo assim acomodado e sábio é ter um tesouro. Isto é daquelas coisas a que ninguém levantará objecção, já que o conforto do pé é condição do conforto do espírito. A não ser ascetas, castigadores da carne, e outros inimigos do conforto. Estranhamente, há muitos, e alguns são especialmente inimigos do conforto dos outros, mas este é um assunto que de momento não podemos discutir dado que ainda não é claro o que tem o chinelo da Adozinda a ver com os hábitos que não podem ser atirados pela janela. Bom, não me perguntem a mim, apesar de ter sido eu a falar neste assunto, tanto em hábitos como em chinelos. Façam vocês qualquer coisa e liguem o chinelo da Adozinda aos hábitos que temos de fazer descer degrau a degrau pela escada. O que eu posso fazer é admitir que a frase famosa que aqui devia constar era a que dizia a Adozinda resmungando, ai se eu apanho o mafarrico que me escondeu o chinelo. Mas ninguém conhece a Adozinda, não há como tornar-lhe famosa a frase antes de torná-la famosa a ela. E como a melhor maneira de nos tornarmos famosos é juntando-nos aos que já o são, pareceu-me bem atrelar a Adozinda ao jornalista do Mississipi que, sendo famoso, vê serem famosas as suas frases. Como esta, que ainda por cima tem que se lhe diga.
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