75. Não são apenas violentos os nómadas, são musicais, cantam e dançam noite fora por entre as chamas das fogueiras. É à noite que o acampamento está mais vivo. Mesmo os animais, os cães que acompanham as caravanas e os cavalos e mulas que as puxam, se juntam à boémia
que conhecem bem e correm em volta do círculo dos violinistas e dos cantores, perseguem-se uns aos outros e aos miúdos selvagens que ainda não cantam nem tocam nem dançam. Os itinerantes sabem que chegará naturalmente o dia em que eles arrancarão dos acordeões e pandeiretas os sons que os pais e os avós não precisaram de aprender, tal como eles também não precisam de aprender. À noite, à luz dos fogos, vêem-se de relance as cores das casas ambulantes. É tanta a luz que os vermelhos, amarelos e azuis que recobrem as madeiras dos carros são quase tão berrantes como de dia. E brilham também as argolas de ouro que pendem das orelhas dos homens e das mulheres, e os anéis nos dedos com pedras coloridas. Não são só a música e o fogo que alimentam a alegria dos zíngaros de olhos pretos. Abunda o vinho e corre a aguardente. As noites são de festa, as manhãs de descanso, as tardes de viagem. As vinganças e feitiços podem acontecer a qualquer momento. As vinganças, em especial, mantêm acordados durante dias, meses até, os errantes, e é quase sempre com facas que as levam a cabo. Isto torna-os temíveis, isto e os rumores de que raptam crianças para vendê-las às fábricas de fiação, ou para as sacrificar. Temem-se também as magias negras que fazem mirrar as colheitas. Que tolhem os movimentos dos homens decentes e fazem abortar as mulheres que recusaram que lhes fosse lida a sina. Não perdoam quem não quer saber o que lhe reserva o destino. Porque vivem no futuro, não, como se pensa, no presente, estes povos misteriosos, percorrem as estradas à procura de qualquer coisa e o que as festas nocturnas celebram é a antecipação de encontrá-la. É por isso que consertam tachos em troca de pão. Que condescendem em usar a enxada, ou em apanhar a fruta, consoante a estação. Os chás e os unguentos com que curam também lhes valem algumas moedas. Seria de esperar que lhes valessem reconhecimento. Mas não. Os aldeões desconfiam das artes dos vagabundos. Benzem-se quando se cruzam com eles. Mais depressa os queimam nas fogueiras ou os enforcam nos ramos das árvores do que lhes agradecem. É com alívio que os vêem partir. Anseiam pelas noites sossegadas em que não se ouvem os festejos destes pagãos malfazejos. Foi então grande, muito grande, o susto do taberneiro e de quem assistira à prisão do miúdo quando Madame Licodu fez notar quem ele era e quem eram os primos e tios que invocara ao ser agarrado e arrastado pelo farmacêutico. Benzeduras e bater de dentes atravessaram toda a assistência. Olharam os presentes uns para os outros e decidiram por unanimidade, em silêncio, o que era urgente fazer. E para espanto e ira de Dragomir libertaram o rapazito, que disparou porta fora em alta velocidade enquanto rogava pragas e jurava torturas e mortes cruéis.
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