domingo, 26 de junho de 2016

O nascimento de um país

A questão central que a União Europeia nos coloca é "Será que é possível formar uma nação por via da paz?" A regra é as nações formarem-se por via de conflito. Se considerarmos a celebração do Tratado de Roma como o evento que marcou a criação do embrião que iria dar origem à UE, estamos a assistir a um processo de nascimento de uma nova "nação" que já dura há 59 anos. Se consultarmos os livros de história, verificaremos que uma nação aos 59 anos é completamente diferente de aos 100, 200, ou mais.

Em 1202, ano em que Portugal completou 59 anos e era governado por D. Sancho I, cognome o Povoador, nada previa que se tornaria na nação que é hoje. O preço que pagámos pelo Portugal actual foi sangue e morte: guerras, golpes de estado, naufrágios durante a expansão além-mar, etc. Hoje, Portugal é uma das nações mais antigas do mundo e são raros os portugueses que dizem que Portugal como nação não deveria existir; mas há quem sugira que certas partes do país deviam ser independentes, como o Arquipélago da Madeira. No entanto, quem defende a independência não gosta muito da independência pura: há sempre a manifestação de que se deseja também laços preferenciais com Portugal.

Mesmo os Estados Unidos, que é considerada uma nação jovem, não foi formada instantaneamente. Parte do seu espaço geográfico foi colonizado por europeus desde o século XVI. A revolta americana, iniciada em 1775, culmina com a declaração de independência das 13 colónias iniciais no ano seguinte, mas a sua independência só foi reconhecida em 1783 pela Grã-Bretanha, a potência colonizadora. Nos primeiros 59 anos, os EUA iniciaram uma expansão em direção a oeste, durante a qual travaram as Guerras Indías Americanas; compraram a Louisiana dos franceses; declararam guerra à Grã-Bretanha em 1812; enviaram expedições militares à Florida até que a Espanha a cedesse, juntamente com outros territórios; etc. O último estado a entrar na União, foi o Havaí, em 1959, quando o país já tinha 183 anos, mas discute-se se fará sentido que o México se torne no próximo estado a unir-se aos EUA.

Os eurocépticos acusam a União Europeia de ser uma construção que limita as liberdades nacionais, mas todos os países impõem restrições dentro do seu próprio país muito maiores do que a UE. Fazer qualquer coisa na UE é complicado porque muitas vezes é necessário que todos os países estejam de acordo: que qualquer país tenha poder de veto, em vez de sujeitar todos os membros da União a decisões da maioria, é um sinal de que a liberdade das nacões foi preservada, mesmo que isso se traduza em alguma disfuncionalidade. Para além disso, o parlamento de cada país tem de votar a adopção da legislação produzida na UE.

Por exemplo, considere-se o processo de legalização do casamento homossexual nos EUA: quando uma decisão de um estado (Ohio) que não permitia o casamento homossexual (caso Obergefell v. Hodges) foi submetida ao Supremo Tribunal dos EUA e foi dada como inconstitucional, tornou-se vinculativa para todos os outros estados da União. Outro exemplo: a Constituição americana tem uma cláusula de comércio (artigo 1, secção 8, cláusula 3) que proíbe os estados da União de instituírem leis que afectem o livre comércio entre os estados.

O que é surpreendente na formação da UE é exactamente a manutenção da paz durante tanto tempo, o que é uma aberração histórica. Quantos mais anos passarem desde que a UE nasceu, mais provável será de que haverá um conflito armado para decidir se o projecto de nação consegue avançar ou se se desmorona pelo caminho. Que os britânicos que discordam com o Brexit tenham decidido iniciar petições dirigidas aos seus representantes que foram eleitos democraticamente, que a Escócia queira novamente submeter a questão da independência a referendo, são sinais de que, por enquanto, os processos pacíficos, que são o ponto fulcral da formação da UE, estão a funcionar.

A democracia não é apenas o voto popular; é também todo o conjunto de ferramentas que os cidadãos têm para manifestar a sua opinião. Quer se queira, quer não, a legislação do Reino Unido, em questões de referendo, não obriga a que a decisão da maioria se torne lei imediatamente. Há um processo intermédio, em que as decisões dos referendos têm de passar pelo Parlamento. Não respeitar o voto popular não é novidade em democracia: nos EUA, não é o candidato que tem a maioria do voto popular que é automaticamente eleito Presidente.

4 comentários:

  1. A única maneira de ultrapassar o resultado do referendo seria através de um novo mandato popular, dado por eleições antecipadas. Para tal, a nova liderança conservadora teria de ser contra a saída da UE, e o Partido Trabalhista teria de ser inequivocamente pela manutenção na UE, o que não foi sob a liderança cínica de Corbyn.

    Na realidade, este referendado foi convocado para ratificar o acordo que Cameron obteve da Alemanha, e que foi muito mal visto pela França e pela Espanha (para além dos países de Leste), que não gostaram do tratamento de favor dado a Londres. E por isso Londres está agora num impasse, com o actual Primeiro-ministro - que foi humilhado por este resultado - a não querer ser ele a negociar a saída. Já há membros do governo a dizer que nem Boris Johnson acreditava que o "Leave" ganharia, portanto é natural que não estejam preparados para o dia seguinte.

    Quando se fala que o UK pode estar bem fora da UE, tal como estão a Noruega e a Islândia, esquecem que são situações diferentes. Não acredito que seja uma catástrofe económica para os ingleses, o problema é político. Pode uma grande potência europeia estar fora da UE sem graves consequências políticas para a Europa? Note-se que os ingleses estão habituados a estar presentes em todos os órgãos internacionais relevantes, e no fundo não queriam sair da UE, mas o "bluff" correu mal por causa da incompetência das lideranças políticas inglesas. Com o Reino Unido fora da UE, vai haver certamente uma maior conflitualidade entre este país e a UE, com o UK a monobrar para desmembrar a UE, e Portugal será certamente um dos países visados e desestabilizados.

    O ideal seria encontrar uma maneira que permitisse preservar a unidade do Reino Unido, que lhe permitisse salvar a face mantendo-se na UE (como eles querem), mas sem que a UE pareça estar a ceder em toda a linha às pretensões inglesas. Países como Portugal não podem aceitar que se toque na livre circulação de pessoas só para fazer a vontade à direita inglesa.

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  2. Rita, aí nos EUA, os membros do colégio eleitoral, os electors, juram fidelidade a um dado candidato ainda antes das eleições. Aquando das eleições são convocados como electors por cada Estado aqueles que previamente "pledged" pelo candidato que finalmente vence. Os "electors" são os representantes dos eleitores de cada Estado no colégio eleitoral e, como tal, votam no candidato para o qual estão mandatados votar. Já houve algumas excepções, muito raras em toda a história da União, e que levaram a situações muito complicadas embora sem alterar o resultado do voto popular. Vários Estados, aliás, têm leis que punem severamente os "electors" que jurem votar num dado candidato e depois ou se abstenham ou votem noutro no colégio eleitoral.

    Por outro lado, escreveste "que qualquer país tenha poder de veto, em vez de sujeitar todos os membros da União a decisões da maioria, é um sinal de que a liberdade das nacões foi preservada, mesmo que isso se traduza em alguma disfuncionalidade. Para além disso, o parlamento de cada país tem de votar a adopção da legislação produzida na UE.". Isto já não é assim. O mecanismo de voto foi alterado e hoje em dia há questões que podem ser decididas por maioria simples e muitas outras por maioria qualificada de 55% dos Estados representando 65% da população. Só contados aspectos do processo decisório Europeu (entrada de novos Estados, por exemplo) requerem unanimidade. Por outro lado também não é certo que os parlamentos nacionais tenham sempre que pronunciar-se quanto à legislação Europeia. As "Regulations" e as "Decisions" são vinculativas e de aplicação obrigatória sem qualquer interferência dos parlamentos nacionais. Nos países que a isso obrigam, os parlamentos nacionais não podem mais do que "rubber stamp" a legislação. As "Directives" embora tenham também que ser adoptadas, deixam aos Estados alguma latitude ou quanto à forma de adopção ou quanto ao prazo para ser adoptada ou quanto às duas coisas.

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  3. O motivo pelo qual os resultados dos referendos no Reino Unido não são legalmente (diferente de "politicamente")vinculativos é o mesmo que subjaz à razão primordial e original do eurocepticismo britânico: a primazia do Parlamento.

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  4. «O que é surpreendente na formação da UE é exactamente a manutenção da paz durante tanto tempo, o que é uma aberração histórica.»

    A UE também é uma aberração histórica. O que manteve a paz durante tanto tempo na Europa foi o medo dos soviéticos e a protecção militar americana. O resto é propaganda europeísta.

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