quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Nostalgia da mais baixa burrice

Certo dia, Sartre voltava de uma viagem à Índia. De entre uma multidão de jornalistas, alguém perguntou sobre a literatura de lá. O génio recuou dois passos, avançou e soltou esta frase: “Nenhuma literatura vale a fome de uma criancinha”. Silêncio. Claro está que nem um idiota seria capaz de dizer tamanho disparate. Mas “a maior inteligência do século” disse-o. Não nos devíamos espantar. Como explica o genial Nelson Rodrigues: “os mais altos espíritos têm, por vezes, a nostalgia da mais baixa burrice”.



14 comentários:

  1. Eu acho que há grande valor na burrice, que é um ingrediente indispensável do brainstorming, popular nos EUA; mas, em Portugal, há um ambiente em que, quando se diz uma coisa percepcionada como uma burrice, cai-nos toda a gente em cima e tudo o que dizemos sobsome-se nessa "burrice", que funciona como prova da nossa burrice suprema. Só me dá vontade de dizer ainda mais "burrices" só com o intuito de irritar as almas...

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    1. Tens toda a razão. Estamos sempre preocupados em parecer idiotas, ora essa é uma preocupação que não nos devia atormentar; acho que, pelo menos, não atormenta os grandes espíritos, que se devem estar bem nas tintas para a ocasional e inevitável burrice, a que todos estamos sujeitos.

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  2. Fará sentido usar "burrice" a respeito de juízos de valor (assumindo que são juízos de valor sinceros, e não uma simples maneira de esconder ignorância sobre a literatura indiana)?

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    1. Decerto que ele não era ignorante. Se calhar, conhecia bem o Kama Sutra e as Vedas.

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    2. Miguel, seja como for, a frase não tem pés nem cabeça. O que significa ao certo? Que a literatura não interessa ou não vale nada enquanto houver uma criança a passar a fome? O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Agora que estou a escrever isto lembrei-me que o José Saramago, outro génio para muitos, também disse uma idiotia do género quando recebeu o nobel: era imoral (ou algo do género) o homem gastar fortunas para tentar chegar Marte havendo tanta gente a passar fome. Obviamente, seguindo o raciocínio do nosso génio, ainda estávamos na idade das cavernas. O que quis dizer é que até os maiores génios são capazes de dizer os maiores disparates, burrices. Embora, admito, para o comum dos mortais, como eu, nem sempre é fácil alcançar o grau de burrice de que esses génios são capazes.

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  3. Não se come cultura. A cultura é uma necessidade que só surge para aqueles que têm a barriga cheia. Era isto a que Sartre se referia. Para quem tem a barriga vazia a cultura vale zero. A India tinha mais do que se preocupar do que com o estado da sua literatura pelo que aquela pergunta naquele contexto não tinha qualquer relevância. E sim Saramago tinha razão quando afirmou isso. Os programas aeroespaciais servem para encher o ego dos cientistas dessas áreas enquanto que para 99 por cento da população não tem qualquer utilidade

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    1. Caro Paulo Sá,
      Como o seu comentário é civilizado, vou tentar manter o mesmo nível. Digo apenas que o seu raciocínio me parece perigoso. Quer dizer, como sempre houve fome algures no mundo, então todo o dinheiro gasto pelo Estado e por vários mecenas em arte e investigação - o que dizer então da investigação em ciências sociais? - foi mal - para não dizer imoralmente - gasto. Se os homens tivessem seguido esse princípio, ainda estávamos, repito, na idade das cavernas e a fome seria hoje muito maior.

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    2. Dada a riqueza cultural da Índia, por exemplo, não vejo como o argumento do Paulo Sá pode ser suportado empiricamente.

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    3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    4. Porque satélites meteorológicos (entre outros) não ajudam minimamente a melhorar a produtividade agrícola (entre outras) do mundo inteiro.

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    5. Rita o Estado pode ignorar o bem-estar da população e investir em certas áreas. A Roménia também tem grandes palácios, o Palácio do Povo onde agora funciona o parlamento, a residência oficial de Ceaucescu em que as torneiras das casas de banho eram revestidas em ouro. Tinham grandes equipamentos culturais. Ao mesmo tempo o povo passava fome, crianças que estavam em orfanatos viviam em desnutrição. Era um país que apostava muito na cultura , no desporto (com recurso a programas de doping) não era por isso que a cultura era uma necessidade para essas pessoas. Eu não conheço a história da India sei que foram uma colónia britanica e o sistema de castas ajuda à desigualdade. A questão é que para Sartre aquela questão não se devia colocar fosse a literatura indiana muito boa ou muito fraca isso era um pormenor face às necessidades do povo indiano. Mais do que um escritor comercial Sartre era um humanista e a pergunta da forma que foi feita ignorava por completo isso.
      José Carlos quanto aos mecenas cada um tem o direito de aplicar o seu dinheiro onde quiser, quanto ao Estado depende do que considerar investigação em ciências sociais se essa investigação for dirigida a problemas específicos de forma a arranjar soluções para realidades concretas com certeza que não foi. Estudos custo-benefício por exemplo. Se investigação em ciências sociais é demonstrar a propriedade X do teorema Y ou analisar propriedades de materiais ( a chamada investigação pura) por contraposição à investigação aplicada e se esse país não tem recursos ou massa crítica para aproveitar essa investigação para gerar receitas com o conhecimento obtido a meu ver está a desperdiçar recursos.
      Podem-me dizer mas desenvolvimentos em investigação aplicada requerem novos desenvolvimentos em investigação pura isso é verdade, mas isso cabe aos países que podem beneficiar economicamente com isso. Com todo o respeito mas estudar a poesia do autor X até pode ser algo que contribua muito para a felicidade de uma pessoa, e das pessoas apaixonadas por Literatura mas será essa uma alocação eficiente dos recursos quando existem outras necessidades mais importantes a ser supridas. A meu ver não é, podem-me acusar de uma abordagem economicista mas os recursos são limitados e tudo que não seja capaz de gerar cash-flows futuros em termos de necessidades secundárias não deve ser financiado pelo Estado, esse seria o papel dos mecenas como na Renascença.

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  4. Eu cá acho que a pergunta também era meio parva.

    (A propósito, li ontem uma frase do Lobo Antunes, António, que diz exactamente o que eu sempre pensei: ninguém é tão estúpido como um homem inteligente)

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  5. O José Carlos Alexandre tem razão, a que indicou e a que se respiga neste outro passo:
    «(…)
    gostaria de dizer duas palavras sobre o intelectual subdesenvolvido. O que o caracteriza, acima de tudo, é o pânico de parecer imbecil. O europeu, não. E já cito um nome que está acima de qualquer dúvida ou sofisma: — Jean-Paul Sartre. Há quem o considere “a maior cabeça do mundo” (realmente, Sartre tem inspirado algumas das mais abjetas admirações do nosso tempo). Eis o que eu queria dizer: — como todo grande espírito, ele não tem medo nenhum de ser imbecil. Sabe que o idiota é também uma dimensão do génio. Ainda recentemente foi à África. Ao voltar, um repórter perguntou-lhe: — “QUE ME DIZ O SENHOR DA LITERATURA AFRICANA?”. Sartre responde na hora: — “Muito mais importante do que toda a literatura africana é a fome de uma criancinha”. Disse isso e ainda lhe pingou um ponto de exclamação. Resposta exemplarmente idiota. E eu, lendo a entrevista do mestre, quebrava a cabeça. Quem, além de Sartre, podia falar assim? Eis o que me perguntava: — quem? E, súbito, ocorreu-me o nome certo: — Luvizaro. Luvizaro, na Rocinha, cavando votos, diria a mesmíssima coisa, sem lhe retirar uma vírgula. E como se explica que um génio assim se comporte? Por isso mesmo, porque é génio, e repito: — o génio tem, por vezes, a nostalgia do imbecil. Mas essa imbecilidade não seria possível no intelectual brasileiro. Aqui, a inteligência não aceita nenhum risco, jamais. (...) Não somos como o genial Sartre que, não raro, chega à debilidade mental. Imaginem vocês que eu e Otto opinamos sobre dois quadros de Volpi. (...) Se aparecesse lá uma Ana Karenina, seria expulsa a pontapé pela comissão julgadora.
    (…)»
    [Nelson Rodrigues (Brasil, 1912-1980) - O Óbvio Ululante (1970), pg. 47]

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    1. Muito bom. O Sartre era uma das obsessões do Nelson Rodrigues, aparece em várias das suas crónicas. A frase que cito acima retirei-a de "O homem fatal", uma antologia organizada pelo Pedro Mexia - pensei que é o único livro de crónicas do Nelson Rodrigues publicado em Portugal.

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