No seu “O fim do homem soviético”, Svetlana
Alexijevich descreve-nos a tragédia de um povo através das vozes de centenas de
vítimas do comunismo e do capitalismo selvagem dos “loucos anos noventa”. Lendo
a descrição do quotidiano do “homem soviético”, mesmo daqueles que acreditavam
no comunismo ou sentem hoje saudades desses tempos, uma pessoa fica arrepiada. O amor à pátria acima de tudo, acima da família, dos amigos,
dos vizinhos. Filhos, elevados ao estatuto de heróis pelo regime, denunciavam
os pais por suspeita de acções subversivas; comunistas convictos eram torturados
sem piedade porque alguém (um vizinho? Um colega do trabalho? Um amigo? Um
filho?) se lembrava de os acusar. Famílias despedaçadas, amontoadas em
apartamentos de 50 metros quadrados, que o regime generosamente lhes concedia.
O medo, o terror, a miséria permanentes. Alguns, mesmo assim, nunca deixaram de
amar apaixonadamente Estaline e Lenine, dois santinhos do regime, que lá do
alto velavam pelo bom povo. Isto é difícil de entender para uma mente
ocidental. Seriam loucos? Alguns, com certeza que sim. Mas, provavelmente,
muitos eram animados por uma fé inquebrantável no comunismo e não eram
“pequenos” desvios que os fariam esmorecer na sua esperança de um amanhã
melhor.
Ao menos, não havia as desigualdades de hoje,
suspiram de saudades alguns. Metade dos soviéticos eram engenheiros, muitos
eram doutorados, todos estudavam. Andaram décadas a pregar-lhes como é que o
capitalismo fatalmente sucumbiria, de acordo com as profecias de Marx, outro dos santinhos de estimação, e que hoje, lamentam muitos, está esquecido.
Desgraçadamente, ninguém lhes ensinou como é que se passava do socialismo para
o capitalismo.
A imagem de Iéltsin em cima de um tanque em 19 de
agosto de 1991 percorreu o mundo. A liberdade traria a riqueza, acabariam as
intermináveis filas dos supermercados e viria a fartura e a diversidade das
lojas do ocidente. Muitos soviéticos saíram das suas famosas “cozinhas”, onde
conversavam e conviviam uns com os outros, e vieram para a rua em manifestações
de apoio a Iéltsin. Ao contrário, os comunistas não tinham um líder. Mikhail
Gorbachev, um herói no ocidente, era visto com desprezo pela larga maioria dos
russos: para uns, é um fraco que abriu irresponsavelmente a caixa de Pandora; para outros, um deslumbrado pelo ocidente e que, no fundo, já havia perdido a sua fé na
viabilidade do comunismo.
Rapidamente, as esperanças de agosto de 1991
evaporaram-se, mesmo para muitos que acreditavam na liberdade e democracia. O
caos instalou-se. Guerras entre máfias, na disputa do petróleo, gás e de todas
riquezas que ficaram à mão de semear. Assassinatos diários no meio da rua.
Insegurança. Muitos emigraram, sobretudo os mais novos. Os mais velhos, com
mais de 40 anos, ficaram encurralados entre dois mundos. Já não iam a tempo
para se adaptar. Ensinados a detestar o comércio, não podiam triunfar neste
admirável mundo novo onde tudo se compra e vende. Já ninguém quer saber dos
clássicos russos. Trocou-se um belo ideal por uma maior variedade de “salame”
(enchidos) nas prateleiras dos supermercados, lamentam com pesar. O
"encanto do vazio", foi assim que Svetlana chamou a este sentimento de muitos dos que ficaram para trás. Chegou o tempo dos contabilistas e dos mafiosos. Dos espertos, dos mais
violentos e impiedosos. É necessário um Estaline para trazer de volta a ordem e
a estabilidade de outrora. Apesar de tudo, Putin não passa de um “pequeno
Czar”. A Rússia não é viável sem um czar, um homem forte. A democracia na
Rússia é uma fantasia, desabafam os mais velhos.
Carradas de doutorados são agora canalizadores ou
andam a vender pelas ruas todo o tipo de bugigangas. Os seus conhecimentos são
esotéricos. As desigualdades tornaram-se completamente chocantes para o homem
soviético, habituado a uma vida em que todos viviam no limiar da pobreza; mesmo
as extravagâncias da antiga nomenclatura parecem agora uma brincadeira de
crianças quando comparadas com os castelos, jatos, iates, jóias, fios de ouro, carros
de luxo que adornam os milionários russos que se passeiam por Moscovo,
Londres, Paris ou Nova Iorque.
Durante 70 anos, ensinaram o “homem soviético” a
amar a pátria. Eram todos irmãos, russos, tajiques, ucranianos, arménios, bielorrussos,
não importava a nacionalidade de origem. Com a derrocada súbita do império, as lavagens ao cérebro de décadas não
evitaram as carnificinas que, por todo o lado, horrorizaram muitos. Antigos
vizinhos e amigos matavam-se convictamente, com requintes de crueldade e
maldade que me escuso a descrever. Desgraçadamente, o racismo e a xenofobia não
desaparecem com lavagens ao cérebro, como a história não se cansa de mostrar e
alguns insistem em ignorar.
Não sei se é racismo e xenofobia. Penso que serão mais questões de nacionalismo. Pensei muito nisso quando andei a filmar em Nagorno-Karabakh, e as pessoas me contavam histórias horrorosas de perseguição e crueldade que aconteceram após o colapso da URSS.
ResponderEliminarOlhando para todas aquelas questões tão mal resolvidas, pensava na Alemanha e na França, que durante séculos foram assoladas por um ódio profundo, e cujas populações são agora amigas. Mesmo que a UE colapse, não imagino grupos de alemães a atacar franceses aqui na Alemanha, ou o contrário em França.
Penso que o erro da URSS foi ter forçado uma unidade. Os nacionalismos não foram trabalhados, foram sufocados com enorme violência.
"Mesmo que a UE colapse, não imagino grupos de alemães a atacar franceses aqui na Alemanha, ou o contrário em França."
EliminarÀs vezes acho-te tão ingénua. Mas é só às vezes.
Estás muito bem enganado, Luís.
ResponderEliminarNão é só às vezes.
No que diz respeito a este assunto: acreditas mesmo que os povos francês e alemão podem voltar a odiar-se como até meados do século passado? Há 35 anos o Joachim passou um mês numa aldeia francesa. As pessoas mais velhas dessa região tinham um comportamento abertamente hostil em relação ao alemão. Isso já não acontece.
"acreditas mesmo que os povos francês e alemão podem voltar a odiar-se como até meados do século passado?"
EliminarClaro que sim. Olha, nem precisas de pensar muito. Basta pensar no que acontece numa guerra civil.
Para ti, então, os modos como a URSS e o processo de união europeia aproximaram os povos, sendo inteiramente diferentes, tiveram o mesmo resultado: nenhum. Ao primeiro sinal de fraqueza de Bruxelas, a Alemanha vai recuperar a Alsácia, e eu vou ser insultada por andar metida com um alemão.
ResponderEliminarAo primeiro sinal? Não. Ao primeiro sinal, não.
EliminarOK.
EliminarMas olha que o mais importante da minha afirmação era sobre a diferença de métodos para promover a união, e a diferença de resultados. Mantenho que o processo de união europeu, em liberdade e democracia, aproximou realmente os povos e criou a ideia de europeus, ao contrário do que aconteceu na URSS. Tu afirmas que não, é isso? E que se a UE se desmoronar, é muito provável que num país qualquer haja erupções de violência e chacinas como houve em Baku, por exemplo.
Não digo que pago para ver, mas aposto contigo.
E aposto mais uma coisa: se a UE se desmoronar, a França e a Alemanha vão fazer uma união noutros moldes, em vez de guerra.
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