quinta-feira, 21 de setembro de 2017

To go for a drink is one thing. To be driven to it is another*

Ir beber um copo com os amigos é ótimo. Ser obrigado a ir beber um copo com gente de que não gostamos é uma grande chatice. Pode ser o mesmo copo, a mesma bebida e o mesmo bar, mas as duas experiências são o mais diferentes possível. Uma faço porque quero, a outra faço porque os outros querem que eu faça. A diferença no sabor da bebida está, portanto, na quantidade de liberdade que lhe juntamos.

Até há poucas semanas, eu estava genuínamente convencido que o direito à auto-determinação era um assunto encerrado no mundo ocidental. Entretanto, tenho visto ensaiados vários argumentos que, explícita ou inplicitamente, questionam o direito da Catalunha à auto-determinação.

Num extremo, o argumento que mais explicitamente nega o direito à auto-determinação é o argumento de que os catalães não têm o direito de referendar a sua independência, porque tal viola a letra da Constituição de Espanha. Ora sujeitar a possibilidade de uma região se tornar independente às regras jurídicas do país de que faz parte é, precisamente, negar à primeira o direito à auto-determinação. A palavra chave em auto-determinação é “auto”. A partir do momento em que há a possibilidade de uma região se tornar independente, mas esta não depende exclusivamente da vontade dos cidadãos dessa região, não existe direito à auto-determinação. Para quem, pois, defende o direito à auto-determinação, o que diz a Constituição de Espanha é, forçosamente, irrelevante – na realidade, no limite, mesmo uma promessa solene de Espanha de que mudaria a Constituição para permitir um referendo devia ser ignorada, porque a fonte do direito à independência não devia residir em Espanha. O direito a unilateralmente referendar a independência é um direito inalienável da própria região, e uma lei que se oponha a este direito é ilegítima.

O segundo argumento que tenho visto acrescenta uma nuance ao primeiro argumento. O argumento continua a ser o de que os catalães não têm o direito de referendar a sua indepedência, mas não é apenas por violar a Constituição de Espanha. É porque a Constituição de Espanha é a constituição de um país democrático. Este argumento já não é totalmente contra o direito à auto-determinação. É apenas contra o direito à auto-determinação de regiões que estão inseridas em países democráticos. Em primeiro lugar, quem usa este argumento teria de se opor ao direito das colónias britânicas e francesas exigirem a independência nos anos 40 e 50 do século passado – já para não falar do direito de Angola, Moçambique e Guiné exigirem a independência de um Portugal democrático, em 1975. Em segundo lugar, a democracia não pode permitir a ditadura da maioria. A democracia é apenas genuína no seio de uma comunidade que não tenha incentivos – ou meios – de punir ou discriminar uma parte da sua comunidade, só porque sim. Ao contrário de diminuir a democracia, o direito de secessão unilateral de uma região é um contra-poder essencial que fortalece o equilíbrio de poderes dentro de uma comunidade de regiões heterogéneas, o que por sua vez é fundadamental para garantir que a democracia não se transforma numa tirania da maioria. É o que os economistas chamam o direito de “votar com os pés”. Em terceiro lugar, não há qualquer sombra de evidência de que a Catalunha independente não adopte um regime demcorático. Por sua vez, um regime democrático numa comunidade homogénea, com língua e cultura comuns, pode aliás ser uma democracia bastante mais autêntica – novamente, por haver menos incentivos para que a maioria discrimine as suas minorias.

O terceiro argumento de que tenho conhecimento diz que os catalães até podem ter o direito de referendar a sua independência, mas que não têm boas razões para o fazer. Alegam que a vontade de auto-determinação de regiões europeias representa o recrudescer do nacionalismo, e que o nacionalismo é, intriscamente, xenófobo. Imagino que haja dois tipos de pessoas que defendam este argumento. O primeiro tipo é inteiramente contra a auto-determinação. Haverá também um segundo tipo que apoia o direito a referendar a independência, mas preferia que a permanência em Espanha ganhasse. Em relação ao primeiro tipo, o argumento parece-me ser uma variante do segundo argumento que apresentei acima. A ideia é de que a auto-determinação só devia ser aceite em determinadas circunstâncias (neste caso, quando é comandada pelas razões com as quais concordamos). Em qualquer caso, o argumento de que o nacionalismo tem de ser xenófobo é inteirante falacioso. O nacionalismo dos pequenos contra os grandes não é idêntico ao nacionalismo dos grandes contra os pequenos. É fácil uma analogia: o orgulho branco ou o orgulho heterosexual não são idênticos ao orgulho gay ou o orgulho negro, porque os primeiros representam o orgulho dos opressores, e o segundos o orgulho de resistência dos oprimidos num sistema que os prejudicou durante séculos. O nacionalismo das regiões pequenas pode ser um acto de resistência, e não um acto de opressão. É difícil imaginar exatamente em que termos é que uma Catalunha independente seria uma ameaça à Espanha – mas é fácil, e amplamente visível, concluir em que termos é que uma Espanha unificada à força é uma ameaça para a vontade da maioria dos catalães. 

* Michael Collins terá dito isto, durante as negociações com Londres para definir os termos da independência da Irlanda

4 comentários:

  1. EU juntava aí uma pequena nuance apenas, o movimento que tenta impor o referendo não é nem maioritário em termos de votos nem tem propriamente uma larga maioria na própria asembleia regional. Impor um referendo sem quorum minimo de participação e com uma maioria simples como democrático parece-me um bocado venezuelano :)
    A meu ver e apenas como opinião pessoal levava um bocado mais a sério um referendo que fosse proposto por 2/3 da assembleia regional e cujas regras fossem de uma participação minima de 2/3 dos eleitos e um resultado superior a 60% como a favor da independência. Caso contrário e se só houver uma urna no gabinete do Govern Catalão até ganham com 100% com uns 100 votos.

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  2. Mas isso não será irrelevante? Ou seja, diria que a legitimidade virá do resultado do referendo, e não de como foi votado no parlamento.

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  3. Muito pelo contrário, acho que se a discussão pretende ser séria e objetiva devia garantir um enquadramento democrático mais sólido do que aquele que estão a fazer que parece uma sátira de um referendo.
    Honestamente e conhecendo razoavelmente bem a catalunha parece-me simplesmente uma fuga em frente face a um conjunto de situações laterais (Casos puyol, aguas de tarragona e afins) que se apoia num slogan simples e profundamente populista.
    Mas no fim de semana veremos a abertura da peça e se será uma comédia ou uma tragicomédia!

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  4. "Em primeiro lugar, quem usa este argumento teria de se opor ao direito das colónias britânicas e francesas exigirem a independência nos anos 40 e 50 do século passado"

    Não exatamente, porque, com a exceção (mais teórica do que prática) da Argélia, essas colónias não estavam integradas nos estados democráticos francês e britânicas - nomeadamente os votos dos indianos e camaroneses não contavam (ou contavam muito pouco - penso que as colónias francesas tinham uma representação simbólica no parlamento) não afetava a forma como os ingleses e franceses eram governados. Ou, dito de outra maneira, os impérios coloniais não eram democracias, mesmo que as metrópoles o fossem internamente (uma analogia - imagine-se uma ditadura de partido único com democracia interna dentro do partido, como a URSS nos primeiros anos).

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