“Quando
finalmente me levantei e aprendi a caminhar novamente, apanhei um espelho e
dirigi-me a um outro maior, fixo, para me olhar, sozinha. Eu não queria que
ninguém soubesse como me sentia ao ver-me pela primeira vez. Mas não houve
barulho nem choro; não gritei de raiva quando me vi. Simplesmente fiquei
estarrecida. Aquela pessoa no espelho não poderia ser eu. Sentia-me por dentro
como uma pessoa comum, feliz, saudável – não como aquela que eu via! Ainda
assim, quando virei o rosto para o espelho, lá estavam os meus próprios olhos
olhando para trás, ardentes de vergonha… quando não chorei, nem tão-pouco fiz
qualquer barulho, tornou-se impossível para mim falar sobre isto com alguém, e
a confusão e o pânico provocados pela minha descoberta foram trancados dentro
de mim para encará-los sozinha, durante muito tempo ainda.
Aos
poucos esqueci o que havia visto no espelho. Aquilo não podia penetrar no
interior da minha mente e converter-me em parte integral de mim. Sentia-me como
se não houvesse nada comigo; era apenas um disfarce. Mas não era o tipo de
disfarce que é voluntariamente colocado pela pessoa que o usa com o objectivo
de confundir os outros sobre a sua identidade. O meu disfarce foi colocado em
mim sem o meu consentimento ou conhecimento, como ocorre nos contos de fadas e
foi a mim mesma que ele confundiu quanto à minha própria identidade. Eu
olhava-me no espelho e era tomada de horror porque não me reconhecia. No lugar
em que me encontrava, com aquela exaltação romântica persistente em mim, como
se eu fosse uma pessoa favorecida e afortunada, para quem tudo era possível, eu
via uma figura estranha, pequena, lastimável, horrenda e um rosto que se
tornava, quando eu o olhava fixamente, doloroso e vermelho de vergonha. Era só
um disfarce, mas estava em mim para o resto da vida. Estava lá, estava lá, era
real. Cada um desses encontros era como uma espécie de explosão na cabeça.
Deixavam-me sempre entorpecida, muda e insensível até que, aos poucos,
obstinadamente, a forte ilusão de bem-estar e beleza pessoal voltava a
invadir-me; eu esquecia a irrelevante realidade e ficava despreparada e
vulnerável novamente.”
Erving
Goffman, in Stigma – notes on the management of spoiled identity
Gostei muito, Zé Carlos. Eu acho que tive uma coisa ligeiramente parecida por causa dos meus cabelos brancos. O eu do espelho e o eu cá de dentro estavam em dissonância. A solução foi começar a pintar os cabelos. Tive sorte que o meu caso fosse de fácil correcção.
ResponderEliminarHá uma certa maldição nos espelhos
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