quarta-feira, 11 de maio de 2016

História gótica


64. Acha-se incerto de seu estado o Confessor, o mundo todo abarca e nada aperta.
Escolheu, porém, talvez, e prometeu, e sacrificou a alma que cria ser imortal a este fardo, a esta missão. Não porque se achasse mais capaz do que outros. De bom grado se veria livre da incumbência que era uma maldição, a sua maldição, esta, a que não podia ser simplesmente entregue a alguém. Como se uma alma imortal pudesse ser trocada depois de ter deixado de pertencer a quem a negociou em primeiro lugar. Àqueles a quem agora pertence não interessa outra em vez daquela, interessam mais, mais almas. Limpas, sujas, negras, tanto faz. O estado da do Confessor era nem limpo nem sujo, mas decididamente não negro. Feito o contrato, agora o corpo era eterno e animado por uma alma emprestada. E baça. Mas de almas e corpos não sabemos nada. Já de negócios, sim. Dá-se uma coisa por outra. Estabelecem-se datas e prazos. Determinam-se condições e limites. Assina-se. Perante testemunhas, imparciais, honestas, idóneas, íntegras, probas, sérias, rectas, justas. Onde não há justiça não há negócio. Concretiza-se. Por trás dos negócios há razões. A necessidade da coisa negociada, a necessidade mais geral, o tédio, a cobiça, a convicção de que é essa a única maneira de viver, negociando. Em todos estes casos, a ficção da liberdade. E o orgulho de tê-la e de ser causa e de conformar o mundo à nossa vontade. A vontade do Confessor nada teve a ver com o negócio que levou a cabo. Não pôde escolher outra coisa. Mas não se pode dizer que tenha sido escolhido, como a vaidade de muitos supõe ser a única alternativa ao facto de não podermos escolher. Escolher ou ser escolhido. Mas há alternativa. O puro acaso pode existir e no caso do Confessor existiu, tornando-se necessidade. E quando acaso e necessidade colidem forma-se o mundo onde nem necessidade nem acaso acontecem. Forma-se um novo mundo onde nem tempo nem eternidade dominam, onde nem espaço nem vazio governam, onde nem causas nem razões imperam. Domínio, governo e império constituem a natureza das coisas porque as únicas coisas que existem neste novo mundo são aqueles que habitam o castelo e foi com eles que o Confessor fez o contrato e foi junto deles que o Confessor assentou a sua morada. Pôde contactar, negociar, atravessar a distância entre os dois mundos porque durante anos ouviu a descarga sórdida das almas que acreditavam que a linguagem limpa e absolve, e que nem pensam que encher os ouvidos de outros com os seus vícios não é apagá-los, é atormentar quem os ouve. O Confessor encontrou-se de tal modo atolado em baixezas que se lhe tornou insuportável a sua própria alma e assim que a oportunidade surgiu de se desembaraçar dela, tomou-a. A oportunidade foi a suspeita de que o novo mundo existia e os seus moradores também. E a suspeita surgiu das confissões, tão diferentes das outras, que começou a ouvir e que lhe impuseram o fardo com que entrou no castelo para sempre.

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