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sexta-feira, 29 de julho de 2016
História gótica
99. Agora falamos nós.
Aqueles que têm escrito a várias mãos o que só pode ser contado a várias vozes, sem ordem, em muitos estilos, em muitos tons, em múltiplos tempos e épocas, em lugares indefinidos que têm que ser sempre longínquos. Nem nós sabemos quem, onde, como, porquê, quantos, quais, se, destes últimos há uma abundância que assusta. Por exemplo. Quantas divisões tem o castelo negro equilibrado sobre a escarpa íngreme, nunca dissemos porque não poderíamos dizê-lo. Qual a sua altura, qual o seu perímetro, qual a distância entre ele e o cemitério, sobre isto a mesma ignorância. Se os enterrados sob as lápides partidas estão vivos ou mortos. Se os que se movem entre a floresta inclinada e as catacumbas do castelo terão também lugar no cemitério. Se os seus funerais são acompanhados de cerimónias ou se simplesmente são largados numa cova dentro de um saco de burel. Se antes apodrecem na floresta junto das moedas de ouro e dos sapatos de fivela. Se moedas e sapatos passam para as mãos de outros e se passam cumprindo formalidades e promessas ou à luz da lei do mais forte, depois do banquete em que o morto é esquartejado como se por hienas. Se foram eles, estes anões perversos e ávidos, que venderam ao castelo os que lá habitam em constante susto. Os que são retalhados e os que são serviçais. Se lá chegaram alguns de outro modo. Se viemos a conhecer esta história, e os seus detalhes, alguns deles apenas certamente, e muito poucos, aqueles cuja descrição cabe num simples parágrafo, porque estivemos lá ou porque ouvimos sussurros que nos interessaram tanto quanto gelaram as nossas mãos e arrepiaram as nossas espinhas. Acedemos a muito pouco. A ponta do ramo de uma árvore submersa, o vaso de uma cidade desaparecida. Seja porque tudo se passou muito rapidamente, seja porque tudo se passa com a lentidão das tartarugas gigantes ou com a indolência das iguanas sobre rochas aquecidas. Mesmo os relâmpagos que rasgam os céus podem ter tido a duração de séculos. Se isto é possível, que as criaturas malsãs que nos observam do seu mundo lá de cima desçam ao nosso mundo cá de baixo tomando as formas inocentes do padeiro ou do alfaiate. Daqueles que encontramos a cada esquina, com quem partilhamos as refeições e a cama. Das nossas crianças, que nos assassinarão a qualquer momento, dos nossos amigos, que cravarão os seus dentes nos nossos pescoços. Destas traições só suspeitamos nos nossos pesadelos e naquelas sensações súbitas de que algo de mau está próximo no espaço e iminente no tempo. É assim que nos torturam aquelas criaturas em que dizemos não acreditar acordados. Crédulos no sono, quando fugimos como a presa e gritamos como os danados na fogueira. Incrédulos na vigília, quando exclamamos que é inverosímil, que é impossível, que nunca poderia existir aquilo que recitam os saltimbancos nos seus teatros de rua ou os velhos nos seus delírios. Mas o terror maior é que sejamos nós que, sedentos de sangue, a nós próprios nos caçamos.
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