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terça-feira, 3 de maio de 2016
História gótica
53. Há uma história que se conta em Zselyk.
Passa de geração em geração. Quem a conta não sabe se é só uma história. Quem a ouve, acredita. Verdadeira ou não, assusta, causa calafrios, poucos são os que depois de ouvi-la passam tranquilos a noite. Até os fanfarrões que asseguram ter lutado com ursos e salvo ovelhas da boca dos lobos se contêm. E os mais velhos que deveriam ser os mais sábios não tremem menos do que os mais novos que são os mais crédulos. Não há hora em que cause menos susto contá-la. De manhã, faz ter medo do resto do dia, das sombras das árvores e dos ruídos mais simples. À tarde, impede as sestas, mesmo de quem acordando de madrugada tenha já trabalhado muitas horas. À noite, a noite é escura e não é preciso dizer que à noite quase ninguém se atreve a respirar e a qualquer gesto os homens levam as mãos aos punhais que seguram nos cintos e as mulheres às facas que escondem nos bolsos. Poderiam escolher não contá-la os habitantes de Zselyk e esperar que todos os que a tivessem ouvido a seu tempo se finassem e com eles a história. E, nunca tendo sido escrita, não poderia sequer ser descoberta um dia, e vir a assombrar novas gerações e gerações. Mas não. A história parecia recusar-se a deixar de ser contada. Não houve vontade forte que lhe resistisse. Fala-se de um velho que passou toda a sua vida a tentar não contá-la. Chegada a hora das histórias, começava com outras, umas mais alegres, outras mais tristes, todas com uma lição nova para os mais novos e nova também para quem as ouvira já em cem ocasiões diferentes, pois como se sabe uma boa história é sempre ouvida pela primeira vez ainda que seja a centésima vez que é contada. As histórias iam-se seguindo, e a voz do velho, firme a princípio, tornava-se trémula ao fim da terceira e o velho temia acabar cada uma delas e não ser capaz de deixar de começar aquela e era tanto o medo que retorcia a voz do velho que ao fim da quadragésima ela irrompia e a voz antes fraca do velho contava-a agora como se viesse dos céus entre trovões e relâmpagos e o medo passava do velho para os outros e a frustração de mais uma noite de histórias sem conseguir escapar àquela quase fazia o velho desistir de silenciá-la e a ele e aos outros prostrava-os uma desolação resignada, a do prisioneiro sem fuga, a do suicida sem corpo. O velho continuou, porém, noite após noite. Quando chegou à centésima nonagésima nona sem que aquela aparecesse, por um instante tão breve que foi como se não tivesse acontecido, encheu-se o seu peito de alegria. Logo o desespero o tomou quando reconheceu na história seguinte a frase ominosa com que a outra começava. Contou-a até ao fim, nunca ela se tinha deixado interromper. E caiu fulminado pela última palavra. Muitos cortaram as línguas para travar a história, de nada adiantou, ela logo passava para outro que não podia deixar de contá-la. Muitos tentaram mudar os seus detalhes, cortar coisas, acrescentar outras, dar-lhe um outro fim e um novo princípio. Em vão. Os esgares de quem tentava mudá-la diziam a quem assistisse que quem conta não tem poder e que o domínio é dela. Tentaram encená-la como uma farsa. Acompanhá-la com música como uma balada. Contá-la fazendo o pino. Recitá-la sem emoção. Lançá-la aos animais que não a compreendiam, assim se cria. Nada. Nem a ironia, essa deusa poderosa, a derrotou. A história continua a ser contada em Zselyk, ninguém se engana a contá-la, ninguém confunde o seu início com o início de outra. A história começa assim. Não era uma vez, nunca foi uma vez, nunca será uma vez, é sempre.
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Olá Alexandra! Tenho a sensação que quando leio as suas histórias e textos faço mentalmente palavras cruzadas. Gosto da necessidade que tenho de conectar as palavras e as frases para as entender, pois elas fluem tão avidamente mas tão interligadas. Numa espécie de cruciverbalismo surreal literário. :-) Apesar do nome não ser bonito, entenda-o como um elogio!
ResponderEliminarSerá que se a Condessa de Ecsed cosesse a boca de quem contava a história amaldiçoada de Zselyk a conseguiria travar?
Muito obrigada, Cristina! Gosto de palavras de todos os tamanhos. Quanto à Condessa, uma vez que com grande probabilidade faz parte da história de Zselyk, e que com probabilidade maior ainda quer que seja contada a história de que faz parte, não coseria bocas a não ser que assim o espaço entre os pontos fosse apenas suficiente para a história de Zselyk passar e ser ouvida. Enfim, não faço ideia. ;-)
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