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quarta-feira, 4 de maio de 2016
História gótica
54. O farmacêutico sacudiu as escamas de caspa que teimavam em assentar sobre os ombros do seu casaco de veludo vermelho escuro e com uma escovinha penteou o bigode fino.
Preparava-se para sair. Numa mala preta como aquelas que costumam usar os médicos, levava frascos diversos de pastilhas coloridas e pacotinhos com pós e ervas. Guardou também na mala umas luvas, um estetoscópio, um termómetro, e uma daquelas espátulas com que se baixam as línguas para observar as gargantas. Não se esqueceu de pôr num bolso interior do casaco o frasquinho com água de colónia e os lencinhos de linho sem os quais não seria capaz de entrar nas casas daqueles camponeses fétidos e medir-lhes a pulsação. Endireitou a gravata, respirou fundo e abandonou a botica na direcção da taverna. Agora que esta era também uma estalagem, e uma estalagem com uma hóspede tão distinta como a jovem que viera da cidade, era frequente a senhora Licodu, que insistia agora que a tratassem por Madame Licodu, mandar chamá-lo para que lhe cuidasse dos achaques. Enviava à farmácia a criada com os fiapos de cabelo a sair da touca e as mãos vermelhas enroladas num avental que devia já ter sido branco, e a coitada lá gaguejava que Madame Licodu estava muito mal e precisava de uma consulta urgente. O farmacêutico não conseguia evitar pensar que chamar Madame a uma taberneira dava à taberna uns ares de bordel ridículo, e era sempre com uma hilaridade escondida que respondia aos chamados da senhora Licodu. A criada conduzia-o por umas escadas estreitas e sem luz até um quarto onde Madame se apresentava deitada sobre a cama com a cabeça encostada a uns almofadões e as costas de uma mão sobre a testa. Vira este gesto uma vez quando passou pela aldeia uma trupe de histriões e saltimbancos que montava espectáculos trágico-cómicos. Numa das funções mais populares da companhia, uma senhora nobre e elegante, apesar de por baixo do vestido estar um rapagão de peito peludo a saltar pelo decote, desfalecia sobre uma cama sumptuosa, apesar de ser feita com caixotes de madeira e colchas remendadas, e colocava sobre a tez delicada, apesar das borbulhas, uma mão de palma nívea, apesar dos calos, virada para os espectadores. De tal maneira tinha a cena impressionado a senhora Licodu que esta, assim que se apresentou a oportunidade de se tornar Madame, treinava diariamente o desfalecimento em frente a um espelho até atingir um ponto que lhe pareceu ser de perfeição. Faltava-lhe apenas uma audiência. A criada, demasiado tosca, nem sequer distinguiria um gesto de tal elevação, realizado com tal naturalidade, do beliscão na bochecha com que o padeiro a cumprimentava todas as manhãs, e o marido era um bruto que nunca reparava em nada. O mesmo se aplicava aos patronos da taverna, uns grosseirões que só conseguiam ver nobreza nas raças de gado, e beleza nas batatas. Em toda a aldeia só o farmacêutico seria capaz de apreciar a sublimidade do gesto e a competência da representação. Porque só ele se movimentava com gestos semelhantes, a que também só ela, ali, seria capaz de dar valor. Começou por chamá-lo de oito em oito dias, mas de tal modo se sentiu compreendida por aquele homem perfumado que lhe colocava no peito o metal frio do estetoscópio como se estivesse a adorná-la de jóias, ou a prepará-la para uma coroação, que não aguentou deixar passar mais de dois dias sem enviar a criada à farmácia. Dragomir lá ia com a sua mala, as suas gravatas, e o seu sorrizinho zombeteiro. E foi numa dessas visitas que reparou que a porta do quarto de Ada estava apenas encostada.
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