quarta-feira, 31 de agosto de 2016

As claques e a diabolização do adversário (I)

Não sendo um fenómeno português, nem sendo uma coisa recente, é hoje claro para todos que o discurso político no espaço público é fundamentalmente um conjunto de variações sobre a diabolização do adversário, para deleite das claques dos partidos. Esse fenómeno aumenta exponencialmente nas redes sociais, onde predomina o ódio e o insulto em detrimento de qualquer debate racional. O “meu” partido faz tudo bem, o seu líder é um poço de virtudes, o “outro” partido faz tudo mal, o líder dos “outros” só tem defeitos. Os líderes partidários dedicam uma parte muito substancial das suas intervenções públicas ao puro insulto, onde o adversário é apresentado como um anti-Cristo, apelando ao ruído que pavlovianamente tem os pompons sempre prontos a usar. Sendo certo que algo disto sempre houve, hoje praticamente só há isto. Começa a ser complicado lembrar um debate sério em Portugal nos últimos anos.

A direita dirá que a culpa é de Sócrates e de Costa e da sua gerigonça; a esquerda dirá que foi a direita radical de Passos e do Observador quem criou a crispação. Mas, na verdade, penso que há raízes profundas e lógicas para que o debate político seja cada vez mais um concurso de beleza encenado para as claques, onde predomina essa diabolização do adversário, em detrimento de ideias, modelos e programas. Do meu ponto de vista, as razões para isto estão aliás associadas ao progressivo desaparecimento do centro político ao longo dos últimos 20 anos.

Num conjunto de posts irei explorar algumas destas razões. Hoje quero começar pela abstenção. Da abstenção falam-se naqueles tempos mortos das noites eleitorais, antes de sairem as sondagens ao pé da urna (com o Pedro Magalhães a explicar calmamente que são só sondagens, mas os partidos e os comentadores entram logo em puro frenesim). Todos lamentam a crescente abstenção, mas obviamente ninguém quer saber do assunto; por alguma razão seremos dos países da UE15 onde basicamente tudo o que se relacione com eleições está na mesma há 40 anos. Mas se a política portuguesa não quer saber da abstenção, a abstenção, sim, tem vindo a mudar a política portuguesa.

Umas contas simples com números redondos e sem uma metodologia rigorosa. Se olharmos os resultados das últimas sete eleições legislativas, desde 1995, podemos razoavelmente dizer que o eleitorado fiel (isto é, eleitores que votam sempre no mesmo partido, independentemente das lideranças, propostas, conjunturas, etc. e do qual fazem parte as claques) está assim distribuído de forma muito genérica: PSD/CDS com 2,1 milhões; PS/BE com 1,9 milhões e o PC com 400 mil votos. Um total de 4,4 milhões de votos. A isto haveria que somar os fiéis dos outros partidos, do voto branco e do voto nulo. Temos assim uns 4,6 ou 4,7 milhões de votos, mais coisa, menos coisa.

Para ganhar as eleições e ter uma maioria governativa, os partidos têm que atrair o eleitorado que sobra. Vejamos o que aconteceu entre 1995 e 2015:


Conclusão: o eleitorado infiel está a desaparecer, quase metade deixou de votar em vinte anos. Ainda levará tempo para ser extinto; a este ritmo, outros vinte e tantos anos. Mas a tendência parece-me clara e acredito que pode inclusivamente acelerar-se esta erosão com o aprofundamento da estagnação económica.

Se o eleitorado volúvel e infiel é cada vez menos importante porque fica em casa e não vota (por exemplo, os dados dos estudos publicados por gente que faz trabalho sério no ICS permitem-nos especular que abaixo dos 30 já só vota o eleitor jovem fiel), os partidos têm cada vez mais que mobilizar o seu eleitorado fiel. A abstenção condiciona a concorrência dos partidos. Cada vez trata-se menos de convencer os eleitores infiéis, mas mais assegurar que os fiéis aparecem nas urnas. Daí que a abstenção tenha ajudado muito neste processo: o discurso das promessas e das políticas (que visava os infiéis) deu claro lugar ao discurso do diabo-que-mora-no-outro-lado (que tanto apaixona os fiéis e anima as claques).

Mas a abstenção foi ajudada por outros factores... Fica para o próximo post falar desses outros fatores!

16 comentários:

  1. Será que há dados suficientes para analisar o papel da emigração no aumento da abstenção? Por exemplo, eu votaria nas eleições que me fossem permitidas, mas é muito difícil recensearmo-nos fora de Portugal, o processo não é nada transparente, e os serviços consulares nem sempre estão disponíveis para o fazer. Dois exemplos: os portugueses que estão em Londres são mal servidos há anos, com conhecimento público, e as autoridades portuguesas nada fazem; em Washington, D.C., só uma pessoa, das três que atendem no Consulado, tem autoridade para recensear os emigrantes, logo é preciso marcar a ida com antecedência e esperar que a pessoa não esteja doente ou de férias nesse dia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tb acredito que a emigração possa ter aumentado a abstenção entre 2011 e 2015, mas as trends estão lá. Entre 1995 e 2011 desaparecem 300 mil, temos 18,75 mil por ano. Entre 2011 e 2015 deveria ser apenas 75 mil gone mas foram 200 mil... pode ser a emigração

      Eliminar
  2. Outra razão (se calhar vai ser abordada nos tais posts seguintes) não poderá ser a subsituição progressiva da geração do 25 de Abril/PREC (que via PS e PSD como partidos naturalmente próximos, rejeitando tanto o antigo regime como o comunismo, e votava sem grandes problemas num ou noutro) pela geração que cresceu nos governos de Cavaco Silva (e habituou-se a ver o PS e o PSD como os respetivos adversários principais um do outro)?

    ResponderEliminar
  3. Mesmo que se leiam, apenas, os 2 primeiros parágrafos (a meu ver, e em particular, o segundo), é minha convicção que o Nuno "atingiu" o cerne da desgraça do nosso (e de outros também!?), sistema político-partidário. Quem me conhece sabe bem, que defendo este tipo de debate ha bem mais de 30 e muitos anos!! Nuno: estou muito expectante, em ler os teus proximos episodios. Obrigado

    ResponderEliminar
  4. Obama won his first mandate by courting and envolving people who had stopped voting.So called "going outside the milk run". But it is true PPD was northern Oporto bourgeoisie and PS was state workers very little ideology. Look forward to the next chapter.

    ResponderEliminar
  5. Caro Nuno Garoupa:
    Tenho uma dúvida desde há muito.
    Poderá dar-me algum esclarecimento?
    Se somos 10,5 milhões (digo o número sem rigor da consulta aos Censos populacionais) como poderemos ser mais de 9 milhões de recenseados (digo, novamente, o número sem rigor da consulta aos Censos eleitorais)?
    Quantos somos até aos 18 anos?
    Isto não atrapalha as contas e explicações eleitorais que nos são dadas muitas vezes apressadamente?
    -----------
    P. S. Peço-lhe que entenda a minha dúvida como genuína. Não pretendo, minimamente, pôr em causa o rigor e a análise que nos apresenta, que acho de uma clareza e vontade sincera de pôr o debate onde ele deveria estar sempre: no patamar da elevação cívica, da racionalidade e da honestidade intelectual.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Somos 10,5 milhões em Portugal; mas fora de Portugal há mais uns milhões. Por exemplo, eu estou recenseada em Portugal, mas não estou em Portugal. Já saí há 19 anos.

      Eliminar
    2. Está claro que haverá 1,5M a 2M de eleitores fantasmas. Pois o eleitorado deve andar nos 8M e não os 9,5M oficiais. Mas nada disso altera o ponto. Porque eu falo dos 500 mil que desapareceram entre 1995 e 2015. Esses sim existem. Tudo somado falo de 6M, portanto bem abaixo dos 9,5M oficiais.

      Eliminar
  6. Excelente estreia Nuno. Parabéns.
    Mas parece-me haver aqui uma contradição: se são fiéis, para quê concentrar a mensagem nesses eleitores? Talvez os números dos fiéis sejam mais reduzidos do que aqueles que o Nuno refere - ou seja, a estratégia dos partidos é errada porque apesar de tudo existe um eleitorado flutuante. Mas penso que a verdadeira causa da existência de claques (e do erro de estratégia) se deve à não existência nos partidos de ideias capazes de mobilizar o centro político e a sociedade. Também não existirão muitas fora dos partidos, mas da forma que estes funcionam é muito difícil chegarem lá.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Como escrevi no teu FB, Porque os fiéis têm que estar mobilizados ou os partidos arriscam a não fazer o pleno da sua base eleitoral. A fazer fé nas atuais sondagens, neste momento, a direita está abaixo do seu potencial de 2,1M fiéis. O meu ponto é que o eleitorado flutuante é hoje proporcionalmente menos importante que há 20 anos. Portanto os partidos apostam cada vez menos nele. Concordo que esse mesmo discurso diabolizador não funciona para o centro onde predomina o eleitorado flutuante que está órfão de um partido. Se algum partido, novo ou renovado, conseguir mobilizar os 500 mil que deixaram de votar mais os 700 mil flutuantes que não gostam de discurso das claques, estamos a falar de 20% e uns 40 deputados.

      Eliminar
  7. Uma questão - como é que foi calculado exatamente esse "eleitorado fiel"? São os eleitores que votaram num bloco partidário numa eleição que esse bloco perdeu?

    ResponderEliminar
  8. Os números correspondem ao mínimo que cada um dos blocos teve desde 1995. Evidentemente que são números redondos como digo. O eleitorado fiel (aquele que vota sempre no mesmo) será menor que esse mínimo uma vez que há eleitores que transitam entre o mesmo partido ou a abstenção. Além de tudo, este cálculo assume que o eleitorado fiel de cada bloco é basicamente constante no período de vinte anos o que possivelmente não é verdade (como diz lá atrás mas deixo para discussão posterior). Mas, de qualquer forma, para o ponto que quero fazer este cálculo serve perfeitamente. Para os estrategas dos partidos é insuficiente mas suponho que os partidos têm a sua divisão interna de estatísticos a trabalhar estas coisas e têm números muito mais precisos (kidding claro…).

    ResponderEliminar
  9. Li mal ou faz sentido esta pergunta? Em que baseia os dados do quadro, sobretudo a soma total dos eleitores flutuantes, assim como a distribuição dos mesmos pelos vários partidos, nas várias eleições?
    Em 2015 p.ex. o PCP teve 50.000 flutuantes? Como sei eu, quem os contou, por que critério?
    Mau sinal para o artigo, se estas perguntas forem procedentes...
    Quer comentar p.f.?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Talvez possa entender melhor informando-se, e cito de memória, sobre o ano em que Álvaro Cunhal disse publicamente que o PCP perdera votos "directamente para a direita" acabando com as invenções que alguns estavam a fazer.

      Eliminar
  10. Os números arredondados são a diferença entre o eleitorado fiel e os votos obtidos.

    ResponderEliminar
  11. Todo este artigo faz sentido, pelo que pergunto por outra hipótese, discreta, mas publicamente referida há dois anos por alguém que não quero designar, porque não (desculpem...), e que poderá ir no mesmo sentido.

    Face à diminuição do sector público passou a haver menos distribuição de lugares remunerados do que resultou maior agressividade entre políticos semi-profissionais? Antes faziam acordos tácitos de rotação e agora lutam pela vida com todas as armas, pondo em crise o "Centro"?
    PS:
    A expressão "eleitores-fantasma" (EF) surgiu através de comparações entre os Cadernos Eleitorais e o Censo. Em simulação publicada na Revista Visão mostrava-se mesmo que, em eleições renhidas, poderia um bloco eleitoral ganhar falsamente por um a três deputados caso dominasse os círculos que tinham mais eleitores que residentes.

    Em publicação da Fundação Francisco Manuel dos Santos chegaram análises mais finas. Considerando os maiores de 18 anos, os emigrantes inscritos e os cadernos da eleição presidencial os "EF" "baixaram" de um milhão para 700 mil, também salientando o impacto da actualização automática através do Cartão de Cidadão e cuidando de não chamar fantasmas aos emigrantes, muito menos fantasmas sem direitos.

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.