sábado, 13 de agosto de 2016

Rita no sótão

Sempre que há um problema com o ar-condicionado ou o aquecimento, e os técnicos me pedem para ir ao sótão cá de casa, tenho de explicar que nada do que lá está é meu. Aliás, eu nunca lá tinha ido, apenas espreitado, mas nem percebia muito bem como estava (des)organizado. O normal dos sótãos é só terem chão parcial e o resto está cheio da espuma de insulação isolamento (obrigada, Carlos!) da casa. Depois há muito pó, ao qual eu sou ligeiramente alérgica; não tanto como a bolor, que também pode haver se o telhado tiver um problema. Por vezes, também se encontram vestígios de animais, como ratos e esquilos.

Na casa onde vivo agora, há suas entradas para o sótão: uma no corredor da casa e outra na garagem. Nunca espreitei o sótão da entrada do corredor, mas já tinha dado uma vista de olhos à da garagem. Há duas semanas, quando o fiz porque os técnicos tiveram de cá vir meter mais Freon (refrigerante R22) no ar-condicionado, vi que havia um bordado de ponto-de-cruz no chão, coberto por pó, caixas vazias de prendas de natal, etc. Fiquei em pulgas para ver o ponto-de-cruz, mas decidi não atrapalhar o trabalho dos técnicos.

Hoje de manhã, enquanto passeava o cão, a minha vizinha J. pediu-me ajuda com o e-mail dela e, quando lá fui, mencionei as coisas do sótão. A J. tem 92 anos e já vive nesta rua desde a década de 60; a casa onde vive foi desenhada e construída especialmente para ela e para o marido, uma custom home, em estilo mid-century modern. É linda e a minha casa preferida de Houston. Eu não as conheço todas, mas quando nos casamos também não conhecemos todas as pessoas do mundo e achamos que aquela pessoa é a nossa pessoa preferida, aquela com quem queremos ficar para o resto da vida. Com as casas deve-se passar uma coisa semelhante, pelo menos é assim que eu penso na casa da J., apesar de não ser a minha.

Dizia eu que a J. vive aqui há muito tempo e conhecia os donos originais da casa onde vivo. Eles já faleceram, mas o filho é dentista e ainda vive em Houston. A J. mostrou curiosidade em saber o que havia no sótão, pois até podia ser de interesse para o filho. Pela minha parte, comprometi-me a investigar. Quando me despedi da J. mencionei que hoje estava fresco, logo seria um bom dia para ir ao sótão. E fui, assim que cheguei a casa. As escadas de acesso aos sótãos são sempre um bocado assustadoras: são escadas desdobráveis e nota-se que o trabalho não é muito perfeitinho.

Quando abri o sótão, estive alguns minutos a estudá-lo. Quem comprou esta casa para a colocar no mercado arrendatário, mandou tirar várias persianas e outras coisas, que foram enfiadas no sótão, mesmo à frente da porta. Dá para entrar pelos lados, mas fica um bocado apertado porque a parte mais alta do telhado é para a frente, e não para os lados. Não reparei na altura do telhado e tentei entrar pelo lado. Bati com a cabeça numa das traves da estrutura e doeu bastante; ainda dói. Grande pontaria, pensei... Depois é que vi que o telhado desta casa é muito baixo, relativamente ao chão. De todas as casas onde vivi, e já foram algumas, nunca vi um telhado tão baixo, quase que temos de andar de joelhos.

Não há muitas coisas discerníveis neste lado do sótão: uma caixa com roupa, papel e caixas de embrulhar prendas de Natal, molduras vazias, uma cadeira de criança em madeira, e umas coisas emolduradas, entre elas o ponto-de-cruz que me tinha chamado a atenção. Mas está tudo cheio de pó e muito desorganizado, o que dá a ideia de estar cheio de tralha. Também vi algumas ratoeiras e, felizmente, não tinham animais. Eu e ratos não combinamos.

Peguei nas molduras que tinham coisas e trouxe-as para baixo. Havia vários trabalhos manuais: um bordado de ponto-de-cruz, outro de meio-ponto, dois de pontos diversos em que a lã se tinha partido, e um retrato do Presidente dos EUA: John F. Kennedy. Suponho que o retrato já deve ter uns 55 anos; os trabalhos manuais são mais recentes, sendo que um está datado de 1985 e os outros não dizem nada.

O retrato de JFK fez-me pensar em que protocolo se usaria se o POTUS fosse mulher. Este diz "The President and Mrs. John Fitzgerald Kennedy". Não havia fotos de mais nenhum presidente no sótão.


"The President and Mrs. John Fitzgerald Kennedy"

Meio-ponto

Ponto-de-cruz em tela de linho


3 comentários:

  1. O que os sótãos desse género têm de bom são os equipamentos antigos que por lá se encontram. Não ligo a quadros, postais e bugigangas dessas. Mas nesses sótãos encontram-se rádios, telefones, electrodomésticos diversos, de há várias décadas. Por vezes até peças de mobiliário. Isso é a minha perdição.

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  2. Interessante digressao pelo sótão - um pequeno exercício de arqueologia contemporânea - visitar memórias um pouco mais antigas e tentar adivinhar o que elas nos dizem da geração precedente. Neste aspecto seria interessante perceber o porquê de guardar a foto do arauto da "nova fronteira" e da sua esposa Jackie

    PS - uma pequena nota de rodapé a propósito do termo "insulacao" - salvo erro acho que a Rita queria mesmo dizer era "isolamento". Em português o termo "insolação" existe mas refere-se à exposição excessiva ao sol / calor

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    1. Carlos, muito obrigada pela correcção. Hesitei nessa palavra quando escrevi isto. e devia ter consultado o dicionário, foi descuido meu!

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