Todos os dias cede o seu lugar no autocarro.
Aliás ocupa um com o objectivo firme de vir a cedê-lo. Como a paragem onde entra é quase no princípio da linha, ainda há muitos lugares à escolha. Calcula qual seria o mais desejável e senta-se. Não escolhe sempre o mesmo, porque os cálculos envolvem muitas variáveis. A pressa em sair, a capacidade de sair depressa, o prazer de olhar pela janela, a preferência pela observação dos outros viajantes. Também considera a importância do estado em que se encontram os assentos, se o plástico está partido, ou o encosto solto. Se algum parafuso desapertado ameaça romper meias de licra ou fundilhos de calças. Nem sempre, claro, a escolha que faz coincide com o que escolheriam as pessoas a quem cede o lugar se tivessem todos à disposição. Mas faz o melhor possível e espera que quem se senta reconheça que fez o melhor possível, que não foi o acaso que o levou a sentar-se naquele sítio preciso e que não é um capricho que explica que o ceda, mas a preocupação com o conforto dos outros passageiros. Às vezes acerta. Ou supõe que acerta, vá-se lá saber o que se passa na cabeça das outras pessoas. Tenta ler os movimentos dos dedos e as expressões, mas nestas coisas de lidar com outras pessoas não há garantias de que um sinal signifique aquilo que se pensa ou que signifique sequer alguma coisa. Já dizia um dramaturgo que uma pessoa pode sorrir e sorrir, e ser um canalha. Por isso, é com ansiedade que considera o modo como as mãos seguram as malas ou os guarda-chuvas, ou como torcem os jornais. Um sinal importante, ou assim pensa, é se o passageiro ou passageira põe a pasta no chão, entre as pernas, ou se a põe no colo agarrando com força e com as duas mãos a pega. Pôr a pasta no chão significa que o lugar agrada e se está pronto a gozá-lo durante muito tempo. Agarrá-la no colo significa que mal se pode esperar para sair dali. Também lhe parece relevante o que dizem e como falam os eleitos. Se dizem mal do governo, estão insatisfeitos com o lugar. Se se queixam dos impostos, tinham o olho noutro assento e aceitam este como um mal menor. Se falam da chuva que não passa poderia pensar-se que ficaram mal dispostos, mas não. Sentem-se bem num espaço abrigado e ainda por cima sentados. Mas o sinal mais forte de que aquele é o lugar que escolheriam, o lugar perfeito, o lugar justo, esmerado, lapidar, enfim, o melhor dos lugares, é o semblante enigmático. Os sábios felizes que não precisam de mais nada têm semblantes enigmáticos. Ocupam os lugares como se lhes pertencessem naturalmente e como se a a sua serenidade e a serenidade do cosmos fossem a mesma. Não se mexem sequer quando aqueles que ao mesmo aspiram, como ela quando escolhe lugares no autocarro, lhes penduram ao pescoço colares feitos de flores côr-de-laranja.
Aliás ocupa um com o objectivo firme de vir a cedê-lo. Como a paragem onde entra é quase no princípio da linha, ainda há muitos lugares à escolha. Calcula qual seria o mais desejável e senta-se. Não escolhe sempre o mesmo, porque os cálculos envolvem muitas variáveis. A pressa em sair, a capacidade de sair depressa, o prazer de olhar pela janela, a preferência pela observação dos outros viajantes. Também considera a importância do estado em que se encontram os assentos, se o plástico está partido, ou o encosto solto. Se algum parafuso desapertado ameaça romper meias de licra ou fundilhos de calças. Nem sempre, claro, a escolha que faz coincide com o que escolheriam as pessoas a quem cede o lugar se tivessem todos à disposição. Mas faz o melhor possível e espera que quem se senta reconheça que fez o melhor possível, que não foi o acaso que o levou a sentar-se naquele sítio preciso e que não é um capricho que explica que o ceda, mas a preocupação com o conforto dos outros passageiros. Às vezes acerta. Ou supõe que acerta, vá-se lá saber o que se passa na cabeça das outras pessoas. Tenta ler os movimentos dos dedos e as expressões, mas nestas coisas de lidar com outras pessoas não há garantias de que um sinal signifique aquilo que se pensa ou que signifique sequer alguma coisa. Já dizia um dramaturgo que uma pessoa pode sorrir e sorrir, e ser um canalha. Por isso, é com ansiedade que considera o modo como as mãos seguram as malas ou os guarda-chuvas, ou como torcem os jornais. Um sinal importante, ou assim pensa, é se o passageiro ou passageira põe a pasta no chão, entre as pernas, ou se a põe no colo agarrando com força e com as duas mãos a pega. Pôr a pasta no chão significa que o lugar agrada e se está pronto a gozá-lo durante muito tempo. Agarrá-la no colo significa que mal se pode esperar para sair dali. Também lhe parece relevante o que dizem e como falam os eleitos. Se dizem mal do governo, estão insatisfeitos com o lugar. Se se queixam dos impostos, tinham o olho noutro assento e aceitam este como um mal menor. Se falam da chuva que não passa poderia pensar-se que ficaram mal dispostos, mas não. Sentem-se bem num espaço abrigado e ainda por cima sentados. Mas o sinal mais forte de que aquele é o lugar que escolheriam, o lugar perfeito, o lugar justo, esmerado, lapidar, enfim, o melhor dos lugares, é o semblante enigmático. Os sábios felizes que não precisam de mais nada têm semblantes enigmáticos. Ocupam os lugares como se lhes pertencessem naturalmente e como se a a sua serenidade e a serenidade do cosmos fossem a mesma. Não se mexem sequer quando aqueles que ao mesmo aspiram, como ela quando escolhe lugares no autocarro, lhes penduram ao pescoço colares feitos de flores côr-de-laranja.
Sabes, eu também sou um bocadinho esquisita com lugares, tocar em portas, etc. Às vezes, as pessoas comentam as coisas estranhas que eu faço, mas é porque se vive com intenção, não é?
ResponderEliminarÉ. Cada pessoa descrita em gestos dava um romance maior do que a Comédia Humana. Nesta história fiz uma experiência: só no fim se sabe que a pessoa que fala é uma mulher. Será que quem lê põe essa hipótese desde o princípio? Eu falhei o teste feminista, porque ao reler esta história depois de já a ter escrito há algum tempo, passei a leitura toda a atribuir a narração a um homem. :-)
ResponderEliminarEu achei sempre que era uma mulher. Nem sequer coloquei a hipótese de ser um homem. Que engraçado!
EliminarPara mim, que li ontem, foi um homem: (1) Na 1.ª linha era alguém como o LA-C que, há alguns dias, escreveu neste DdD um postal sobre haver ou não haver jovens que cedam o seu lugar a adultos com limitações. (2) Na 2.ª linha passei para um obcecado que exagere na oferta do seu lugar para ouvir outrem, ou ser ouvido e, em certos casos, roubar-lhe a carteira, como aconteceu durante bastante tempo numa carreira lisboeta. (3) Na 5.ª linha eu já encontrara mais um personagem, homem com perfil que não cheguei a completar, porque a estória deixou-me sem tempo para divagações, nem para pormenores como, o "a" no final. :-)
ResponderEliminar"Cada pessoa descrita em gestos dava um romance maior do que a Comédia Humana"
- E, quando se passa para a interpretação a comédia acentua-se por causa dos saberes falsos com que alguns os interpretam, possivelmente por falta de conhecimentos básicos, inclusive entre polícias e juizes, parece.