terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Reportagem 39



Reportagem

A história cultural dos elevadores ainda está por contar, afirmou ao repórter o dr. m. de c. e s., atestando não apenas a sua devoção a uma área que continua a ter muito por explorar, mas também o facto de haver entre drs de vários tipos uma admirável profusão combinatória de e's, de's e 's.
A entrevista aqui transpirada, perdoe-se-nos a possível grosseria do particípio passado, resume a contribuição do erudito para o décimo sétimo congresso ibero-americano de elevadores que hoje terminou e que juntou em c. especialistas e investigadores tanto iberos, como americanos, como iberos e americanos, e como iberos ou americanos. Pensemos, pede-nos o entendido, nas transformações subtis mas firmes que o elator foi concretizando ao longo das eras nas relações sociais. E pensemos ainda como, prossegue o ilustrado, ao sabor dessas transformações o próprio ascensor se foi transformando e reflectindo as mudanças que ele mesmo ajudou a realizar, agora devolvidas sob a forma de reflexo e simulacro que ao mesmo tempo preserva e altera as relações simbólicas do indivíduo consigo próprio através da mediação dos objectos, vulgo construção da identidade, e as relações de poder entre as classes, e tudo isto de forma dialéctica. E levemos mais longe este pensamento, diz-nos ainda, até àquele ponto de intercepção entre o existencial e o histórico, quando o movimento descendente que atavicamente condenara os homens a serem-para-baixo, citando o notável alemão que nos ensinou que o homem é um ser-para-baixo, subitamente é invertido em movimento ascendente que emancipa os homens tornados para-si, quando foram não mais do que em-si e fora-de-si, mais uma vez nos ensina outro alemão, até à disseminação do uso do aparelho elevatório pelo qual os próprios homens são responsáveis, já é o terceiro alemão a que se alude numa só frase. O ser-para-baixo torna-se um ser-para-cima graças ao elevador. Graças, pois, à sua prometeica capacidade técnica, desenvolvida muito para além do uso do fogo roubado aos deuses. Pede-nos o versado que o acompanhemos numa visita panorâmica ao longo da história, para assim mais facilmente se nos tornar claro o papel simultaneamente revolucionário e conservador do aparelho erector. Há muito, assevera, que a humanidade habita de tal forma que as famílias vivem umas em cima das outras em vez de viverem umas ao lado das outras. A antiga Roma reunia em insulas pequenas casas amontoadas num único prédio. Na Escócia setecentista, as ruas de construções com vários andares tornavam arriscada a vida dos passantes, sujeitos a serem conspurcados por qualquer substância que os habitantes entendessem atirar pelas suas janelas. Em Nápoles há registo de pelo menos um morto provocado pela queda de um porco de uma varanda. A verdadeira revolução nos costumes que a introdução de elevadores nos prédios de andares provocou pode ser medida através de fenómenos como o aumento da civilidade entre passantes e habitantes, ou como no aumento da privacidade conferida pelas portas do aparelho que escondem dos olhos dos vizinhos aquilo que cada um quer levar para sua casa ou retirar dela. Depostos da sua posição central os poços das escadas, onde cabeças de homens, mulheres e crianças assomavam constituindo um sistema de comunicação menos eficaz do que seria desejável, demasiado dependente da potência das gargantas, da estridência das vozes e da elasticidade dos pescoços, tornaram-se os cidadãos mais polidos, menos barulhentos, menos tentados pela lei da gravidade a despejar sobre os vizinhos de andares mais baixos o seu fel, a sua ira, ou as suas cascas de batatas. Nem tudo foi progresso, claro. Tudo tem consequências imprevistas e algumas destas menos apreciáveis. Por exemplo. Se é verdade que as mortes acidentais por arremessamento de objectos, sejam sólidos sejam viscosos, de janelas e varandas diminuíram consideravelmente, também é verdade que as mortes deliberadas por esfaqueamento se tornaram mais difíceis de detectar, já que enrolar um cadáver num tapete e transportá-lo no recato de um elevador é mais discreto do que atirá-lo pela janela. E se a privacidade do elevador permitiu diminuir em alguns decibéis a intensidade sonora das vozes dos moradores, também é verdade que a proximidade em que os colocou, fechados numa caixa de metal, instalou neles uma certa timidez, um vaguear de olhos que apenas encontram repouso mirando o tecto. Até à invenção dos telefones portáteis, claro.



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