50. Se eu soubesse o que sei hoje, exalou Mª da G., que se morria em golfadas de sangue e tripas.
Engasgada tal a fúria com que se revolviam as entranhas apostadas em sair do invólucro mortal onde tinham prosperado, mais não disse. Mas tentou. E quanto mais tentava, mais o derrame a abatia. Mais que derrame, em verdade, uma torrente de que ninguém se atrevia a acercar-se. Não teve por isso ajuda a estancá-la a pobre Mª da G. Inundou o chão, de tijoleira felizmente, até à porta de onde a espreitavam. Em vagas que pareciam não esgotar-se nunca, que sujavam paredes, encharcavam cortinados. Se eu soubesse o que sei hoje, não repetiu, sufocada por um pulmão, mas pensou, especulamos nós já que costumam ser teimosos os últimos pensamentos com que queremos deixar este mundo. Saímos, mas não gentilmente, hão-de ouvir-nos até ao fim, não terá sido tão morna a nossa passagem que não nos lembrem dizendo, como disse Mª da G., se eu soubesse o que sei hoje. Ou outras palavras de semelhante dignidade, apontadas à memória dos vindouros. Custou, mas valeu a pena. Parto saciado e triste. Não sei o que o amanhã trará. Liberdade ou morte. Aos traidores a desonra. A mim, que sempre odiei que uma aventura se tornasse um hábito. Morro lutando contra um exército de puritanos. Também tu. Para o alto, para o alto. Velhacos. Pode não chegar uma vida inteira para decidir com que frase se abandona o palco. Aos afortunados, chega-lhes a dita a golpes de génio. A outros cabe-lhes esforço e reflexão. Há quem ache que não vale a pena, claro, ou que não é preciso, ou que não importa, mas raros são os que são feitos de tão pouca vaidade. Mª da G. cuspiu o pulmão entalado e nova enxurrada seguiu-se. Desta vez até os pés de alguns dos que assistiam se mancharam. Mais se lembrarão dela pelas nódoas nos sapatos do que por ter no fim sabido o que ontem não sabia.
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