1. Nem penses! Ficaram para a história, e bem, as últimas palavras de Abdão antes do martírio.
Durante o martírio os gritos lancinantes que lhe saíram da boca não formaram qualquer frase, nem sequer palavra, logo, podemos dizer que as últimas palavras de Abdão antes do martírio foram também as últimas palavras de Abdão. Mas não foi este facto, de coincidirem as últimas palavras de Abdão antes do martírio com as últimas palavras de Abdão, que preservou por séculos e séculos nas memórias, nos ditos, e nos escritos das gentes a famosa frase por elas formada. Acreditem, não basta uma coincidência para se ficar na história. Ainda que seja difícil enunciar regras precisas para que tal aconteça, elas certamente existem, e certamente algum dia serão enunciadas, e certamente ficará na história aquele que as enunciar. Mas disto ainda estamos à espera. Entretanto, só podemos contar com considerações retrospectivas e hipóteses discutíveis. Isto, claro, se nos interessar compreender um determinado caso. Porque nada obsta a que se use as últimas palavras de alguém sem compreender o que as preservou de tal modo que nos seja permitido usá-las. Ainda assim, uma frase famosa vem sempre acompanhada de algum mito acerca de quem a pronunciou e da circunstância em que o fez. Na verdade, apesar de algum deles ser dominante, encontramos de povoado em povoado mitos diferentes ou variações do mito a acompanhá-la. O mito dominante conta como Abdão atirou a sua frase à cara dos esbirros que lhe preparavam as sevícias, desafiando os pagãos a fazer o que lhes ditasse uma imaginação bárbara para que traísse a sua fé. Esta possibilidade é forte, os mártires são-no porque não se vergam, porque sofrem mas não se rendem. E resistir desta maneira é visto como uma vitória do espírito sobre a força bruta. A esta o corpo é sacrificado, até porque não pode ser de outra maneira. Mas o carácter não. Há coisas mais importantes do que viver de forma agradável ou sobreviver ao sofrimento. São elas que impedem o mártir de implorar que o poupem, de se lançar aos pés dos selvagens sedentos de sangue. As setas, as facas, os quatro cavalos correndo na direcção dos quatro pontos cardeais, o caldeirão de água fervente, o metal líquido despejado na garganta, as chamas, nada faz o medo sobrepor-se à alegria do calvário. É sinal da verdade do mito que hoje chamem santo a Abdão. Que o celebrem. Que lhe consagrem igrejas, sítios de peregrinação e nomes de aldeias. Aldeias do Norte, entenda-se. Nas aldeias do Sul o mito é outro e Abdão soltou a sua frase porque, sendo carpinteiro, teimava, com o bruto que a construira, que iria desfazer-se a roda onde lhe seriam quebrados os ossos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não são permitidos comentários anónimos.