quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Não eram pedreiros

Como o LA-C bem indicou, esta lei do piropo malicioso irrita-me. Há muitas razões pela qual me irrita, a principal é que numa semana, o governo português decide assumir dívidas em meu nome e dos outros contribuintes, num valor superior a €200 per capita com o Banif, e na semana a seguir o Parlamento português acha por bem discutir o piropo malicioso para me proteger. Não discutem o enquadramento legal da corrupção e troca de favores que anualmente custa aos contribuintes milhares de euros, nem me parece que tenham planos para o fazer. O piropo malicioso é mais importante.

Acontece que o piropo malicioso já estava contemplado na lei. Basta ler a Constituição da República Portuguesa para se saber que nós, portugueses, temos o direito à dignidade humana. Se há portugueses que acham que assediar sexualmente contribui para a dignidade humana de alguém, então há desconhecimento da lei; não há falta de lei. No Código Penal português já havia leis que contemplam o crime. Se a Polícia e a Justiça portuguesas preferem não aplicar a lei existente, não estou a ver como é que produzir uma lei nova irá resolver o caso e devolver às vítimas a sua dignidade humana. Talvez alguém na Comunicação Social queira perguntar o porquê disto aos nossos queridos deputados parlamentares.

Já fui assediada sexualmente por muitas pessoas, tanto em Portugal, como nos EUA. Como dizia a minha mãe, há 30 anos: as coisas são assim, já eram assim no tempo dela, e não mudarão tão cedo. No meu caso, eram todos homens, mas também há mulheres que assediam. A maior parte das pessoas que me assediaram eram conhecidos meus ou tínhamos amigos em comum. Nunca fui assediada por um pedreiro.

No outro dia, à guisa de comédia, contei-vos o meu último caso de assédio. Aposto que muitos leitores pensaram que eu inventei; mas foi tudo verdadeiro. Um homem, com o qual eu tenho amigos em comum, contactou-me no Facebook. Eu excitava-o e ele masturbava-se a pensar em mim. Vocês sabem que eu falo abertamente de sexo, gosto de poesia erótica, às vezes escrevo uns poemas muito maus, que têm alguma carga sexual. Há quem ache que isso indica que eu sou uma mulher fácil, ou talvez tenha um apetite sexual voraz e leve para a cama tudo o que se mexa. Não é verdade. Gosto de bom sexo e não tenho vergonha disso, é só. Já agora será que alguém gosta de mau sexo? Acho que todos preferímos bom sexo. Nos dias de hoje, as pessoas já deviam ter noção que ler ou ouvir uma mulher falar abertamente de sexo não indica que essa mulher tenha pouca fibra moral. O que vocês pensam acerca de uma mulher que assume a sua identidade sexual reflecte os vossos preconceitos; não reflecte o que a mulher é.

Aconteceu que o meu último caso de assédio se deu antes desta lei absurda, mas, como vos disse, já havia enquadramento legal para tratar do caso. E houve vários crimes, chegando a pessoa a ameaçar a minha reputação só porque eu não colaborava com os seus avanços. Porque é que não fiz queixa? Em primeiro, porque achei que a pessoa estava a ser estúpida e não tinha noção das consequências do que estava a fazer. Em segundo porque estava tudo documentado e, se ele prosseguisse com as ameaças que fez, eu teria como o denunciar e provar o meu caso. Em terceiro, como já vos disse eu não posso fazer queixas via Internet porque o meu cartão de cidadão não funciona, logo teria de arranjar outra forma. Em quarto, a Justiça portuguesa é uma bela merda e isto ir-me-ia dar umas dores de cabeça e custar dinheiro, que eu prefiro não usar para sustentar um sistema mau.

Já agora, o Parlamento tem planos para continuar a produzir leis redundantes? É que hoje em dia eu só ouço o som de dinheiro, que o país não tem, a cair num poço sem fundo.

14 comentários:

  1. Muito bem, Rita! Apoiado!

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  2. "Acontece que o piropo malicioso já estava contemplado na lei. Basta ler a Constituição da República Portuguesa para se saber que nós, portugueses, temos o direito à dignidade humana."

    Sim Rita, agora a Constituição serve de Código Penal. Não é o Código Penal que operacionaliza a Constituição. Já agora,nesse artigo da CRP, és capaz de me dizer qual a pena prevista?

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  3. É evidente que provocar ou assediar alguém, sexualmente ou de outra forma, já não era permitido pela lei, e não me refiro à Constituição.

    Isto faz-me lembrar a lei do Governo Guterres proibindo expressamente os cortes de estrada (que estiveram na moda nos últimos tempos do Governo Cavaco), como se, ao abrigo da legislação acerca de "alteração da ordem pública", eles não fossem já ilícitos.

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    1. Por exemplo, se estiveres na paragem do autocarro e do outro lado da estrada um tipos (ou tipas, vá) se puserem aos berros a perguntar se tu queres que te façam um broche, onde é que enquadravas isso antes desta lei.

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    2. A pergunta é o mais honesta possível. Quero mesmo perceber o alcance desta lei.

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    3. Não sei especificar onde enquadro, Luís (mas não recorro ao fastidioso "não sou jurista" ;-) ), mas não me parece que isso não constituísse matéria criminal antes da nova lei. Há sempre enquadramentos legais genéricos para punir este tipo de agressões.

      Acho que este caso tipicamente exemplifica a diferença entre a atitude anglo-saxónica e a latina perante os modos de comportamento em sociedade (a "common law" é um conceito alienígena para os latinos). Na mentalidade latina, tem de se legislar explícita e ostensivamente sobre um qualquer ilícito para este poder passar a sê-lo.

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    4. No código penal o que vejo é o Capitulo V
      CAPÍTULO V
      Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual
      SECÇÃO I
      Crimes contra a liberdade sexual

      Artigo 163.º - Coacção sexual
      Artigo 164.º - Violação
      Artigo 165.º - Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência
      Artigo 166.º - Abuso sexual de pessoa internada
      Artigo 167.º - Fraude sexual
      Artigo 168.º - Procriação artificial não consentida
      Artigo 169.º - Lenocínio
      Artigo 170.º - Importunação sexual
      SECÇÃO II
      Crimes contra a autodeterminação sexual
      Artigo 171.º - Abuso sexual de crianças
      Artigo 172.º - Abuso sexual de menores dependentes
      Artigo 173.º - Actos sexuais com adolescentes
      Artigo 174.º - Recurso à prostituição de menores
      Artigo 175.º - Lenocínio de menores
      Artigo 176.º - Pornografia de menores
      Artigo 176.º-A - Aliciamento de menores para fins sexuais
      Artigo 177.º - Agravação
      Artigo 178.º - Queixa
      Artigo 179.º - Inibição do poder paternal e proibição do exercício de funções

      Para mim não é óbvio que se enquadre antes desta lei. E quanto ao 'common law', é um facto que não a praticamos e, portanto, não podemos legislar como se fosse essa a nossa jurisprudência. Não é.

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    5. O artigo 170º - Importunação sexual - parece-me perfeitamente aplicável. Mas não penso ser necessário recorrer aos "crimes contra a liberdade sexual". Pura e simplesmente, a lei penaliza quem incomoda ou agride o próximo, verbal ou fisicamente. Pelo mesmo motivo que não posso ter a música aos berros em casa, não posso fazer provocações como a que coloridamente exemplificaste. E não duvido que, se fizesse aquilo que descreves, qualquer juíz me condenaria, sem necessidade de recorrer à "lei anti-piropo" ou, já agora, à "common law", que mencionei à laia de desabafo.

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    6. Esse não era. Mas sim, admito que pudesse haver em outros.

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    7. Aquilo que descrevo é o que acontece a muitas raparigas. Esse é o problema. E gostava de perceber qual a protecção que tinham.
      Quanto à música em altos berros, as horas de silêncio estão razoavelmente definidas por lei.

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    8. A música em altos berros não é permitida, mesmo fora das "horas de silêncio", segundo me disse um advogado, em tempos. Entre o silêncio e o estardalhaço, há um meio termo.

      Quanto ao que acontece a muitas raparigas, uma irmã minha, na década de 60, queixou-se numa esquadra de polícia de um indivíduo que a seguira de bicicleta, proferindo "piropos". A notícia até saíu no jornal, com o título "meliante a precisar de correctivo". A polícia não conseguiu descobrir o "meliante", mas tomou conta da ocorrência e perguntou ao meu pai (a minha irmã era menor) se queria apresentar queixa-crime contra desconhecidos. Calculo que "Abril" não tenha abolido a lei que permitiu à polícia agir nesses termos.

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    9. Mas fico muito contente por ver que não é preciso testemunhas para levar o caso a sério. Muito mesmo. Porque um dos argumentos mais comuns contra esta nova redacção da lei é precisamente que como é a palavra de um contra outro não é possível fazer prova.

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    10. Para haver investigação não é preciso testemunhas, claro. Pode é o caso ser baldado por falta delas.

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