23. Madeleine de La Rochefoucauld não sabia o que fazer com as máximas do seu celebrado primo. Pareciam-lhe umas decentes, outras menos.
Por exemplo, quando diz que quem se dedica demasiado às coisas pequenas se torna muitas vezes incapaz das grandes, o primo podia muito bem estar a censurar os pontos do bordado com que ela ocupava uma hora todas as tardes. Já uma outra, na qual diz que devemos ouvir se queremos ser ouvidos, não lhe causava incómodo, porque enquanto bordava era costume postar-se Monsieur Moule à sua frente, segurando os papéis onde se encontravam inscritas as suas mais recentes moralidades. E ia lendo os parágrafos que escrevera, e treinando a ênfase com que iria lê-los, e praticando os gestos com que acompanharia a leitura. Madeleine não só escutava como via. Umas frases exigiam uma mão patética no peito, a saber, triste aquele que aos apelos do coração prefere os roncos do estômago. Outras pediam um dedo esticado na direcção do ouvinte, mal vão os tempos quando se prefere a libação à oração. Madeleine achava Monsieur Moule dicotómico. Das suas frases diria que lhes faltava elegância. E que aos gestos sobrava banalidade. Ainda bem, suspirava, que tinha nas mãos o bordado. Poupava-lhe ter que fixar os olhos no censor. Perdia alguns gestos, é verdade. Mas, como se disse, eram gestos banais, logo, na verdade, não perdia nada. Evitava também que Monsieur Moule se desse conta dos sorrisos divertidos pela tontice e irritados pelo mau gosto que lhe retorciam a face. Um dia Monsieur Moule lera, com voz severa e mão ao alto, a censura veemente é a fonte da reforma do vizinho, e ela resistira a revirar os olhos de impaciência. Noutro afirmara, os homens poupados e as mulheres castas são os parafusos que mantêm sólida a ponte espiritual da vida. Mesmo aqui, mantivera-se estóica, apesar do tom de mestre-escola e dos dedos formando um copo, ou uma taça, enfim, todos sabemos de que gesto se trata. O seu auto-controlo venceu também quando o ouviu clamar mais vale ir ao poço três vezes do que ir uma, afirmação enigmática que só não a deixara intrigada porque a voz cava e trémula do orador se fazia acompanhar de um punho fechado ameaçando quem se atrevesse a contestar-lhe a contabilidade. Também foi difícil o desafio colocado pelo adágio, come pastéis e verás. Mas, tinha que acontecer, chegou aquela hora fatal em que o mais impávido sucumbiria, ainda que mordesse os lábios até ao sangue e às lágrimas, ou cravasse as unhas nos pulsos até à ferida, tentando assim opor a severidade da dor à pulsão da gargalhada. Essa hora fatal fora aquela em que Monsieur Moule comunicou solenemente ao mundo, representado pela sofredora Madeleine, que nunca devemos dormir de barriga para cima, pois deste modo fazemos do umbigo o senhor e das partes traseiras o escravo. Caiu-lhe o bordado ao chão enquanto se torcia de riso, atirando a cabeça para trás com tão sonora hilaridade que nem a um intelectual como Monsieur Moule poderia escapar o que pensava Madeleine dos seus esforços. Saiu violentamente porta fora, não sabemos se em fúria se em vexame. E enquanto rebolava sobre o tapete persa ocorreu a Madeleine que nem sempre tinha razão o primo nas suas sentenças. Afinal, escutara durante muito tempo, mas chegada a sua vez de ser escutada fugira-lhe a audiência.
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