domingo, 30 de dezembro de 2018

Eliete, a vida normal

Até há umas semanas nunca tinha ouvido falar em Dulce Maria Cardoso. Mas o Pai Natal foi generoso e ofereceu-me o último romance da escritora: “Eliete”. Eliete tem 42 anos, o corpo exibe os primeiros sinais de decadência, é casada com o Jorge, um informático, tem duas filhas, é agente imobiliária, tem carro e casa, vive em Cascais. Na final do Europeu de 2006, no meio da alegria geral, descobre a sua solidão. Quase automaticamente, inscreve-se com um perfil falso no Tinder - apesar da pesada “máquina da traição” ter sido accionada antes, provavelmente quando começou a fantasiar com outros homens, confessa Eliete. O Tinder não lhe traz a felicidade, e Eliete mantém o casamento de mais de 20 anos. Eliete é uma mulher mediana. Não se distingue pela beleza, nem pela inteligência. Não tem sonhos, nem ambições – uma das suas poucas ambições de adolescência era deixar de usar óculos.
”Eliete” não é apenas a confissão de uma espécie de Madame Bovary de Cascais. É também o retrato desencantado de um país, que ainda não se libertou da herança e do fantasma de Salazar. Um Portugal dos pequeninos. Um Portugal onde continuam a existir “os herdeiros, os incultos e gananciosos governantes e o inculto e submisso povo”. Um Portugal onde a Guidinha com cinco negativas no segundo período do 9.º ano é mudada pelos pais para um colégio privado e as notas disparam. A Guidinha nunca teve jeito para línguas, mas sabia falar a única língua que interessava: a língua dos meninos e das meninas da Linha, com a afectação que punha nas palavras, “os gritinhos e a aniquilação de parte das sílabas”. O domínio desta língua até a dispensava de utilizar os pergaminhos de família para arranjar “um dos bons empregos da CEE”. Anos depois, a Guidinha estaria, de facto, a trabalhar no Parlamento Europeu. 
“Eliete” é um dos livros do ano. 

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Every Morning

I read the papers,
I unfold them and examine them in the sunlight.
The way the red mortars, in photographs,
arc down into the neighborhoods
like stars, the way death
combs everything into a gray rubble before
the camera moves on. What
dark part of my soul
shivers: you don’t want to know more
about this. And then: you don’t know anything
unless you do. How the sleepers
wake and run to the cellars,
how the children scream, their tongues
trying to swim away–
how the morning itself appears
like a slow white rose
while the figures climb over the bubbled thresholds,
move among the smashed cars, the streets
where the clanging ambulances won’t
stop all day–death and death, messy death–
death as history, death as a habit–
how sometimes the camera pauses while a family
counts itself, and all of them are alive,
their mouths dry caves of wordlessness
in the smudged moons of their faces,
a craziness we have so far no name for–
all this I read in the papers,
in the sunlight,
I read with my cold, sharp eyes.

~ Mary Oliver, via Poetry Magazine (March 1986)

P.S. Estava a pensar em oferecer um livro da Mary Oliver a uma amiga em Portugal; mas, quando fui ao site da Wook, não encontrei nenhuma tradução para português do trabalho dela. Pena...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Winter is coming

Amanhã celebra-se o solstício de Inverno, que é tradicionalmente celebrado pelos povos nativos das Américas com vários rituais. Um pouco por todo o mundo, às 22:23 de Portugal, irá haver uma meditação global.

É mesmo de uma meditação que iremos precisar porque as coisas estão bastante feias nos EUA. O Presidente anunciou ontem que ia ordenar a saída das tropas americanas da Síria. Acordámos hoje com notícias de Vladimir Putin a elogiar a decisão de Trump. À tarde, via Twitter, o Presidente disse que o General Jim Mattis, Secretary of Defense, que é o equivalente a um Ministro da Defesa, se ia reformar depois de uma carreira de distinção, mas pouco depois o próprio General contradisse o Presidente e, não só afirmou ter-se demitido, como tornou pública uma carta de demissão que não abona a favor do Presidente. Horas depois, Trump anunciou que as tropas também iriam sair do Afeganistão.

Nada disto faz sentido, claro, pois Trump aumentou a despesa militar e decidiu estas coisas espontaneamente, sem discutir com os seus conselheiros e, mais importante ainda, sem planear a saída. É de uma ingenuidade atroz achar que fazer um anúncio destes nestas circunstâncias promove a segurança dos militares e dos aliados dos americanos; o que garante é que o nome de Trump apareça 24/7 nas TVs durante a época de Natal.

Washington, D.C., está em choque, até porque dada a forma como Donald Trump trata as pessoas, já há pouquíssima gente que se queira submeter a uma experiência humilhante para substituir estas pessoas. Mas há uma complicação maior: John Kelly e Jim Mattis fizeram um pacto em que um deles estaria sempre nos EUA disponível para verificar as ordens da Casa Branca. John Kelly foi despedido por Trump e agora Mattis demitiu-se, ou seja, não há baby-sitter de serviço.

Esta semana tem sido também uma razia na bolsa, que está com bastante volatilidade, apesar de a Reserva Federal ter aumentado as taxas de juro de referência, o que deveria dar a indicação de que a economia estaria em condições de suportar tal aumento. Em contrapartida, a divida pública americana a 10 anos está em alta, com as yields a descer (o preço sobe e as yields descem, pois são inversamente proporcionais). Aliás, recentemente deu-se uma inversão e as yieds de curto prazo estão mais altas dos que as de longo prazo, o que costuma acontecer antes de uma recessão e basicamente indica que o curto prazo é mais arriscado do que o longo prazo. Numa situação normal, o longo prazo deveria ser mais arriscado do que o curto prazo. Dados os acontecimentos de hoje, que se deram após o encerramento da bolsa americana, amanhã vai tudo estar atento ao comportamento do mercado.

Em Portugal, felizmente, somos governados por um génio político. Os coletes amarelos que se preparem porque o inverno está à porta.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Um parque

Enquanto estive fora de Memphis, a cidade completou o projecto de renovação e ampliação do Patriot Lake, em Shelby Farms Park, que agora se chama Hyde Lake. O projecto custou $52 milhões e inclui a construção de um centro de visitas, um espaço de eventos, e uma marina onde se pode alugar canoas. Quando coloco fotos do lago no Facebook, as minhas amigas americanas ficam surpreendidas com o que vêem e pensam que fui de férias para algum sítio, mas estou dentro de Memphis. O parque é mesmo bonito e dá para ver uns pôres-do-sol fabulosos, para além de garças, patos, tartarugas, gansos selvagens, etc.