quarta-feira, 3 de maio de 2023

Um Narciso desdentado

Pela terceira vez desde que saí de Portugal, já não vou aí há quase cinco anos. A última vez que aí estive foi em Junho de 2018. Ultimamente tenho pensado que preciso de aí, mas o caos em que o país se encontra é bastante desmotivador. A seguir ao 25 de Abril de 1974, quando Portugal estava no limbo, Mário Soares era considerado "the only game in town" na óptica de Frank Carlucci, mas à medida que Soares envelheceu, o PS foi-se deteriorando. E como o PS governa 75% do período do século XXI, Portugla vai pelo mesmo caminho.

Talvez eu esteja enganadam mas penso que dificilmente Mário Soares se reveria na máquina de poder em que o partido se tornou. Apesar de tudo, Mário Soares era um homem de ideais. O PS de hoje nem serve para ideais, nem sequer para ideias. E, prova que caiu um santo do altar, chego à conclusão que até José Sócrates, um enorme canalha e aldrabão, foi melhor Primeiro-Ministro do que António Costa.

Sócrates falhou na execução, certamente de propósito, mas não se pode dizer que o país não vivesse uma época em que se notava que havia um poder executivo com ideias que, se bem executadas, poderiam vir a dar frutos. O PS de hoje não tem isso, existe apenas para servir os interesses de quem está filiado no partido. Não seria muito díficil fazer oposição a um partido que desceu a tão baixo nível, no entanto não há oposição em Portugal.

Mesmo quando os partidos falham, a CRP contempla o papel de um Presidente que pode intervir no sentido de evitar que o país vá por um caminho errado. Pensar-se-ia que, estando Portugal no imbróglio em que está, com a qualidade da democracia em queda livre e a rápida deterioração das instituições, ter uma pessoa na Presidência da República que foi professor de Direito Constitucional seria uma previdência do destino: quem melhor para garantir que a Constituição e os interesses da República seriam salvaguardados?

Em vez disso, MRS prefere o papel de Narciso que se entretém a olhar para a sua figura, a admirar a sua beleza, à medida que se tornou desdentado e muito àquem de conseguir roer a noz que lhe é servida. Agora está bem lixado se não se apressar. Para além do país estar completamente em (des)governo, as pessoas que levaram a República a tal estado estão no processo de rever a Constiuição, o tal documento que dá a MRS os poderes que ele não quer usar. Por quanto tempo os terá?

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Ser livre é...

Antes da mini-crise financeira que assolou os EUA e a Europa há um mês, na conversa semanal com as minhas amigas americanas mencionei que não iria votar em Biden uma segunda vez (talvez se a alternativa a Biden for Trump reconsidere, mas acho improvável que Trump consiga avançar muito). Caiu o Carmo e a Trindade em cima de mim. O Biden é tão bom presidente, está tudo óptimo, o que é que eu poderia apontar de mal ao homem, que na ideia delas era o melhor para o país...

Se o país depende do futuro de um fulano com 80 anos, o país está tramado; se um país com 330 milhões de pessoas não tem centenas, e talvez milhares, que possam ser tão ou melhores do que Biden, então o país entra em colapso daqui a cinco anos porque ele só teria no máximo mais um mandato. Mas deixemos a estatística de lado e passemos ao meu rol de queixas.

A primeira é que não me esqueci que votei nele contrariada porque preferia que tivesse sido outro candidato, ou melhor, eu quero mesmo é uma candidata. Mas as minhas amigas, que são muito feministas e anti-patriarcado, advertem-me que uma mulher não é viável porque não é elegível e o que importa é ganhar. Para mim, ser contra o patriarcado e preferir o Biden a qualquer outro candidado é incongruente.

Quanto ao desempenho dele como presidente, acho-o melhor do que o Trump, mas mesmo assim mau. A saída do Afeganistão foi desastrosa. O pacote fiscal para lidar com a pandemia contribuiu para a aceleração da inflação e o aumento da dívida pública. A questão do acesso das mulheres a cuidados reprodutivos é pior agora do que com o Trump, apesar de Biden ter tido maioria no Congresso--não me venham falar do SCOTUS porque se as coisas andam no SCOTUS é porque os Democratas se recusaram a legislar sempre que tiveram maioria absoluta. A economia tem tido um bom desempenho, mas não considero que seja devido às políticas de Biden. Para além disso, a economia de Trump também foi boa antes da pandemia e a recuperação da pandemia iniciou-se com Trump, Biden apenas apanhou um processo em andamento.

Eu percebo que haja pessoas que olhem para a política e achem que a melhor maneira de servir o país onde vivem é votar sempre no mesmo partido ou nos canditados sugeridos pelo partido, mas na minha cabeça querer que o mesmo partido tenha sempre o poder não é democracia, é ditadura partidária.

Evitei o Zoom semanal durante umas semanas e, quando regressei a conversa tinha mudado para as questões de censura, em especial por causa de um livro que tinha sido banido em algumas escolas. Era uma questão de liberdade de expressão, dizia uma das minhas amigas. Eu achei que não porque havia conteúdo que seria razoável não ter nas escolas, logo há excepções à liberdade de expressão. E depois, o livro foi publicado e pode ser comprado, logo a liberdade de expressão do autor foi respeitada. Enquanto em tentava argumentar que não achava a liberdade de expressão um bom ataque ao sucedido, a minha amiga foi-se embora da conversa.

Afinal, quem sou eu para pensar que sou livre de exprimir a minha opinião e continuar a ter uma audiência?

domingo, 23 de abril de 2023

Ainda o Boaventura

Durante a minha licenciatura em Economia na FEUC, o nome e a pessoa de Boaventura de Sousa Santos apareceu frequentemente. Nos idos anos 90, ele era capaz de ser a estrela não só em termos de sucesso académico, como didático, dado que os seus estudantes gostavam bastante das suas aulas. Houve algumas vezes, em que vi salas de aulas que tinham as mesas fora do sítio, tendo sido configuradas em forma de O quadrado, e soube que tinha sido por causa dele. A ideia, explicou-me uma aluna, era ter uma forma mais egalitária de ensinar, em que o professor não fosse colocado num pedestal a olhar para os alunos sentados. Nós de economia, que tinhamos professores que nos ensinavam de forma tradicional, eramos uns seres menores. Nunca ouvi ninguém dizer que ele se aproveitava das alunas então.

Recordo-me de uma vez ver o BSS passar pela faculdade todo vestido em couro preto, até a boina. Era über-cool, o homem, naquela altura com uns 50 anos. O texto dele "Um Discurso sobre as Ciências Sociais" fazia parte do nosso currículo de Introdução às Ciências Sociais. Infelizmente, nunca consegui ler aquilo. Sempre que tentei, mal passei das primeiras páginas e até é uma coisa que eu tento ler de vez em quando porque trouxe o livro para cá, mas não dá. Quanto às mesas e cadeiras, tê-las alinhadas à frente de um professor que nos ensina de pé, dá perfeitamente para eu aprender. Aliás, nem eu queria ser igual aos meus professores, prefiro pensar que naquela altura eles estavam bastante acima de mim e por isso havia bastante a aprender deles. Mas agora com estas acusações de assédio, não consigo tirar da cabeça que se calhar ele metia as mesas assim para ver as pernas da alunas, dado que a maioria eram mulheres.

Que estas acusações viessem agora à luz não me choca, mas o que me fez cair o queixo foi a carta que ele escreveu, a tal de sete páginas, onde na primeira menciona o "mau comportamento" de uma das investigadoras, que identifica pelo nome. Os processos disciplinares são coisas internas de uma organização e não são informação pública, até porque, por poderem manchar a reputação profissional de alguém e terem consequências a longo prazo, devem ser matidos em sigilo para não dar aso a processos em tribunal. Um processo disciplinar não é uma situação equilibrada, pois a pessoa que está a ser sujeita ao mesmo tem muito menos poder do que a organização. O comportamento de BSS demonstra mesmo isso, ele acha que pode e manda e faz o que lhe dá na telha.

O único factor redentivo do homem é que as suas alunas finalmente interiorizaram o que ele ensinou e fizeram-lhe frente.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Entretenimento

Interrompo o entretenimento nacional de decidir onde será o próximo aeroporto através de consulta pública -- ou será concurso de popularidade do governo?, talvez um ersatz de eleições dado que hoje em dia as sondagens já não são tão fidedignas e, para além disso, já temos vasta experiência de que estudos de benefício-custo para informar obras públicas durante governos socialistas valem menos do que papel higiénico -- para vos informar de uma mini-série muito interessante que está disponível na Netflix, que se chama Transatlantic. O tema é o trabalho de Varian Fry em França para salvar pessoas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Foi através dele que grandes personalidades intelectuais conseguiram escapar aos nazis, como André Breton, Max Ernst, Hannah Arendt, Marc Chagall, etc.

É mesmo entretenimento, dado que a história é ficionalizada, apesar de ter algumas partes que são baseadas em factos históricos e as personagens serem baseadas em pessoas reais, mas as relações entre elas serem ficionalizadas. A Netflix disponibilizou um pequeno documentário sobre a produção da série que vale a pena ver também.

Alguns pontos interessantes é que a série critica as grandes potências de então e faz alguma equivalência com o que se passa actualmente em termos de política de refugiados na Europa e no mundo. Depois eu não conhecia a história de Varian Fry, nem de Mary Jayne Gold, mas já estive a ver uma entrevista dela para a história oral do U.S. Holocaust Memorial Museum e fiquei mais educada acerca do assunto.

Finalmente, Lisboa e Portugal saem com uma reputação bastante boa, dado que Portugal não só não é criticado, como é visto como um porto seguro numa altura bastante conturbada da história mundial. Claro que nós portugueses sabemos a verdade de que o regime tinha bastante simpatia para com os alemães. Que o diga a família de Aristide de Sousa Mendes, cuja história daria uma óptima série da Netflix, apesar de já existir um filme menor sobre o assunto. Estima-se que Aristides de Sousa Mendes tenha salvado umas 30 mil almas. Varian Fry salvou cerca de 2000 e Oskar Schindler, cuja história inspirou o filme do Spielberg, umas 1300. Parece que o tratamento cinematográfico é inversamente proporcional ao número de sobreviventes.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A próxima bazuca?

A propósito da compra do Credit Suisse por parte do UBS, o Matt Levine, na Bloomberg (este link funciona por sete dias; depois disso, só com assinatura da Bloomberg), escreveu uma peça fantástica onde explica como funcionam os bancos, o que valem, quem são os credores, os accionistas, etc. Vale a pena ler por pelo menos duas razões: a primeira é que o artigo refere a venda da Credit Suisse e os portugueses são accionistas do Credit Suisse porque uma pequena parte do fundo da Segurança Social estava lá investido e a segunda para se entender melhor o que pode correr mal com a banca portuguesa à medida que as taxas de juro sobem.

Relativamente ao investimento da Segurança Social, o Credit Suisse já andava metido em escandâlos desde 2014, logo não se compreende como é que o estado português achou boa ideia ter lá dinheiro. A Ministra ainda sacode a água do capote, dizendo que era exposição mínima ou ínfima, mas para um país com o perfil etário de Portugal em que o Fundo da Segurança Social é claramente insustentável, dar-se ao luxo de investir numa organização que está em apuros e arriscar perder o que quer que seja é sinal de negligência e má gestão.

Note-se que, no final do ano passado, especulou-se que o Credit Suisse estivesse à beira do colapso e, no mês passado, o banco anunciou a maior perda anual desde 2008, logo o estado teve tempo suficiente para rever a sua alocação. Já agora, quantos mais investimentos haverá no fundo de pensões que também são considerados de exposição ínfima, mas que têm risco considerável? (Eu considero risco considerável qualquer empresa que apareça nas notícias acusada de má gestão e que até seja multada por má gestão. Aliás, como é que se pensa que entidades que sabemos que estão a ser mal-geridas sejam um investimento diversificador de risco, como defende a Ministra?)

Quanto à banca portuguesa, com a inflação alta, não tarda as pessoas começarem a procurar alternativas onde meter o dinheiro. Em 1984, quando a inflação atingiu os 30%, tivemos o escândalo da D. Branca, a "banqueira do povo", será que foi coincidência? Mesmo que não suceda um esquema de Ponzi, é bom que o Banco de Portugal faça umas análises de sensibilidade para ver outras coisas que podem correr mal.

Por exemplo, imagine-se que alguns bancos em Portugal decidem pagar uma boa taxa de juro e os portugueses começam a tirar dinheiro de outros bancos em que têm contas que não pagam juros para ir para as que pagam, será que os bancos mais fracos têm margem para perder um montante significativo de depósitos? Em 2021, as remessas dos emigrantes representavam 1,5% do PIB português. Se os emigrantes decidirem enviar significativamente menos em remessas, será que afecta a liquidez de algum banco português? Depois há também a questão da qualidade do portefólio de empréstimos do banco, especialmente se há empréstimos com taxas de juro variáveis, qual a percentagem de empréstimos que pode falhar até um banco ficar em sarilhos? Qual a exposição da banca portuguesa ao mercado obrigacionista ou a outros activos de risco? E mais cenários haverá que merecem ser investigados.

Não é certo que estejamos à beira de uma crise, mas seria bom que houvesse alguma preparação para a evitar--aliás, seria bom que Portugal não tivesse mais uma crise. Entre a emigração e a baixa natalidade, o país já tem pregos suficientes no caixão. Ou será que a estratégia continua a de sempre: esperar que as coisas corram mal para a UE enviar outra bazuca?

quarta-feira, 22 de março de 2023

Toda a gente tem culpa

No espaço de duas semanas, quatro bancos necessitaram de intervenções. Primeiro foi o Silvergate Capital Corp. no dia 8 de Março, um banco com fortes ligações aos mercados das criptomoedas que anunciou que ia desfazer-se e liquidar o banco. Depois o Sillicon Valley Bank decidiu que era boa ideia angariar capital com uma oferta de acções e vendendo grande parte das obrigações que tinha disponível para venda, o que causou uma corrida ao banco e o colapso do mesmo dois dias depois, na Sexta-feira, 10 de Março. O terceiro banco em apuros foi o First Republic Bank, cujas acções cairam a pique na Segunda-feira. Para evitar a sua queda e evitar um bail-out à custa dos contribuintes, orquestrou-se uma intervenção de 12 bancos grandes americanos que depositaram no FRB $30 mil milhões. Concomitantemente, do outro lado do Atlântico, o Credit Suisse ia ao charco.

Agora que o leite se entornou, muita gente aponta o dedo à Administração Trump por ter passado legislação que permitiu ao SVB crescer sem estar sujeito a supervisão mais apertada, mas durante dois anos Biden teve o benefício de um Congresso democrata e nada fez para alterar o que Trump fez. Também não é claro que mesmo com supervisão mais apertada o resultado fosse diferente porque a Reserva Federal identificou o problema do SVB há mais de um ano e fez recomendações ao banco. Outra candidada a culpas é mesmo a Reserva Federal que dizem aumentou as taxas de juro muito rapidamente, o que depreciou o preço das obrigações, só que a gerência do SVB foi negligente nesse aspecto e não fizeram o hedging do seu portefólio obrigacionaista.

Eu diria que a Administração Biden também foi responsável porque, por exemplo, emitiu obrigações com juros bastante atraentes. Há quase um ano, as iBonds pagavam 9,62% nos primeiros seis meses e, quando o NYT escreveu uma peça onde mecionava isso, a página de Internet da Tesouraria americana foi abaixo porque um monte de gente foi emprestar dinheiro ao governo. Em Outubro, voltou a ir abaixo no último dia para comprar obrigações que pagavam os tais 9,62%, dado que as seguintes só pagam 6,89%. Eu própria, ainda antes do primeiro crash da página, tirei $10 mil da minha conta à ordem num banco regional e meti em iBonds e só foi essa quantia porque é o limite que se pode comprar anualmente. Ou seja, sou culpada.

Mas a minha culpa não fica por aí. Uns meses mais tarde, o Capital One, onde também tenho conta à ordem e que faz parte do grupo de bancos grandes que está sob uma supervisão mais apertada, anunciou que estava a oferecer uma conta a prazo que pagava 3% ao ano (agora já paga 3,4%) e que, se nós transferissemos dinheiro de uma outra instituição para essa conta, davam-nos um bónus de $100 ao fim de três meses para além dos juros. Que fiz eu então? Transferi mais $10 mil da minha conta à ordem no banco regional para a conta a prazo que abri no Capital One. Em minha defesa, ainda tentei ver se o banco regional tinha alguma conta a prazo atractiva, mas não diziam nada na página de Internet, logo abri no Capital One. Obviamente que tanto o banco regional como o Capital One têm culpa da situação. E não satisfeita com a minha culpabilidade ainda fui mais longe e reduzi a parte do meu salário que é depositada na minha conta do banco regional e meti mais na conta à ordem do Capital One para poder transferir dinheiro para a conta a prazo regularmente.

Está-se a ver que a cadeia de incentivos é tal que seria difícil que os bancos que não pagam juros escapassem a qualquer perturbação e, como o mercado bancário americano é bastante dinâmico e há concorrência, é natural que acabássemos na situação em que estamos.

sábado, 18 de março de 2023

Inflação alimentar

A propósito da inflação alimentar, há vários pontos que me parecem pertinentes. O primeiro é que as margens nas grandes superfícies não são uniformes, nem sequer as lojas actualizam os preços tão frequentemente quanto a variação real dos preços de mercado. Nos panfletos de promoções semanais, é natural que esses preços sejam tão baixos que a loja perca dinheiro, só que o objectivo das promoções é cativar o cliente para que ele visite a loja, compre um leque variado de produtos e a loja acabe por fazer dinheiro no volume final, em vez de em todos os produtos. Isto leva a que se a loja perde dinheiro em alguns produtos, é porque o tem de fazer em outros, logo é natural que as margens sejam mais elevadas em algumas coisas.

Depois há a considerar que os produtos alimentares pouco processados são onde as grandes superfícies ganham menos dinheiro, as margens maiores são obtidas nos produtos que estão mais distantes do seu estado natural, por exemplo, coisas como biscoitos e iogurtes com sabores e granola de lado têm uma margem maior do que farinha, açucar, leite, e fruta. Uma sopa enlatada também tem uma margem maior do que os ingredientes que entram na sopa. Parte da razão é que os ingredientes frescos que se compram no supermercado são muito mais bonitos e uniformes do que os ingredientes que entram na comida processada e isso tem um custo. (As pessoas devem estar familiarizadas com este conceito dado o sucesso de a Fruta Feia, que tem preços mais em conta. A razão não é apenas estética, mas de necessidade de uniformidade para a automatização da cadeia de processamento).

Nos produtos de marca (não-branca), a grande superfície tem de ter preços consistentes com os preços da marca, logo quem determina os preços ao consumidor são as Nestlés, Yoplait (Groupe SODIAAL), etc. Nestes produtos, a grande superfície tem poder de negociação na margem que faz, até porque muitas vezes nem compra o produto, apenas arrenda o espaço na loja à marca. Já nas marcas brancas, a grande superfície controla o preço e esses preços são efectivamente mais baixos do que os de outras marcas, logo não se pode acusar as grandes superficíes de não velarem pelos interesses dos clientes.

O ano que passou é um bocado sui generis e não faz sentido passar legislação ou sequer tirar ilações de uma situação que é quase única. Temos também de ter em conta que muitas das empresas a retalho têm o papel de suavizar os preços ao consumidor, ou seja, quando os custos aumentam/sobem rapidamente, os preços a retalho aumentam/descem mais suavemente. Este efeito resulta da própria gestão da companhia, pois os contratos são negociados com antecedência e muitas vezes os custos são "hedged" para a empresa não estar sujeita aos preços das caudas da distribuição (ou seja, preços muito altos ou preços muito baixos).

Basicamente, mesmo que os preços desçam bruscamente no mercado, não é necessariamente verdade que as empresas beneficiem dessa descida porque quando contrataram os fornecimentos podem ter negociado preços mais altos do que os actuais, pois na altura da negociação era incerto se os preços iam continuar a subir ou iriam descer.

Finalmente, há a questão fiscal. Portugal tem impostos bastante altos, especialmente em combustíveis, que são bastante importantes para a estrutura de custos das empresas de venda a retalho, logo se o estado está a arrecadar mais em impostos esses custos irão ter de ser passados para o consumidor de qualquer forma.

Mas nem tudo é mau em Portugal porque, na questão de compras de frescos, os portugueses têm um leque de escolha, pois ainda há bastantes mercados e praças locais que oferecem preços variados e até a possibilidade de negociação. Ou seja, o mais provável é que a inflação alimentar até seja menor do que os dados do estado indicam.

terça-feira, 14 de março de 2023

À sombra da palmeira

Depois de umas semanas bastante intensas no trabalho, lá voei rumo ao Dubai para a reunião de estratégia. A viagem, entre os três vôos e as escalas, durou umas 24 horas e é um bastante cansativa. A primeira noite ainda tive sorte e dormi bem porque estava tão cansada, mas à segunda não escapei e não consegui dormir quase nada. Ultimamente, quando tenho insónia, costumo fazer o protocolo de Non-Sleep Deep Relaxation do Andrew Huberman e costuma ajudar-me bastante. Mesmo assim, foi duro estar mais de 36 horas sem dormir e ter de fazer apresentações e orientar uma reunião. Mas tudo é temporário e já está ultrapassado, apesar de eu ainda não ter a rotina normalizada porque cheguei a casa já quase no final do Domingo.

Tive algum receio de ir ao Dubai porque ouvem-se tantas histórias que correm mal por aquela parte do mundo (como se a minha não as tivesse e a rodos). A realidade surpreendeu-me bastante, pois a zona onde estive pareceu-me mais americana do que Miami. Fiquei em Palm Jumeirah e toda a gente falava inglês. Nos restaurantes, os menus também estavam todos em inglês e os empregados iniciavam conversa em inglês -- não vi nenhum que fosse local. A minha experiência em Miami é que o normal é iniciarem conversa connosco em espanhol em sítios como o aeroporto e restaurantes.

Como foi a minha primeira visita não me aventurei muito, nem sequer tive muito tempo para explorar, pois os dias estavam bastante preenchidos com actividades do trabalho. Um dos meus colegas dizia-me que eu devia ir ao Centro Comercial dos Emirados, mas nem considerei ir porque muitas das lojas são bastante ocidentais e encontram-se também nos EUA. A mim agradar-me ia visitar a zona mais tradicional, mas sendo eu mulher não achei prudente sair da zona turística e aventurar-me sozinha. Talvez um dia tenha esse conforto, mas por enquanto não.

Na viagem de regresso para o aeroporto apanhei um condutor do Paquistão, que me pareceu boa pessoa. Perguntou-me se eu me importava que ele ligasse a música, mas ao fim de alguns minutos desligou-a porque eu comecei a falar com ele. Já está no Dubai há 10 anos porque precisa de dinheiro para pagar a educação dos filhos. A filha mais velha vai ser médica e o filho também vai tirar um bom curso. Disse-me que muitos pais no Paquistão se preocupam em deixar propriedades para os filhos, mas na opinião dele a melhor propriedade que se pode dar é a educação. Depois falou na fraca qualidade do governo do Paquistão, na corrupção, na falta de oportunidades, mas quando os filhos tiverem terminado o curso ele planeia regressar.

Usei máscara durante a viagem de avião e em partes dos aeroportos, sempre que achei que havia muitas pessoas juntas. No regresso, quando cheguei ao aeroporto de Newark, depois do processamento de imigração, encontrei uma equipa da Concentric by Gingko que estava a recolher amostras para analisar se a pessoa tinha novas variantes de Covid-19 ou outros virus/bacterias. Algumas das amostras eram depois enviados para o CDC, para serem analisadas mais aprofundadamente. Em troca, ofereciam uma embalagem com um teste de Covid-19 para levarmos para casa. Por acaso fui selecionada para participar no estudo e suponho que eu andar de máscara pelo aeroporto deve ter tido algum peso em me seleccionarem, dado que muito poucas pessoas andavam de máscara. Ainda por cima, eu tinha as vacinas todas em dia, logo sou um bom espécime de se estudar.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Comparações

Diziam-me no outro dia que não fazia sentido comparar os EUA com Portugal porque eram realidades completamente diferentes. Não me posso considerar uma especialista em português, até porque já saí de Portugal há 25 anos e já aí não vou há quase cinco, logo a língua materna sofre, mas não me parece que faça sentido comparar coisas iguais, logo uma comparação é, por definição, algo que se faz a coisas diferentes. Depois, há também o outro lado da coisa e que é o de não haver realidades iguais, logo todas as realidades são diferentes, algumas mais do que outras.

Tenho andado a pensar nisto porque calhou ver vários portugueses a pedir informações acerca de como emigrar para os EUA e outros tantos já nos EUA a responder. Enquanto que os que querem sair têm uma certa preocupação com as condições climáticas e querem um sítio de clima ameno, os que já saíram aconselhavam sítios em que os impostos eram baixos, quer dizer, estados onde não havia imposto estadual sobre o rendimento, dado que imposto federal há em todo o lado. Achei o contraste bastante interessante.

A propósito da comparação de países, tenho empregados domésticos novos. As duas senhoras que antes cá trabalhavam casaram-se e uma até está grávida. Esta deixou de fazer limpezas por causa do bebé, e a outra decidiu apenas organizar as limpezas e também ajuda o marido que tem uma companhia de ar condicionados, se percebi bem. Então os empregados novos é um casal, ele e ela e são mesmo casados. Vieram da Colômbia no ano passado e trabalham para a outra senhora que cá costumava vir, que também é de lá. Nenhum dos três fala inglês.

Na Colômbia, este casal trabalhava para um governo local, mas mudou o partido no poder e eles foram despedidos. Para se ter um bom emprego, tem de se pertencer ao partido certo, disseram-me, o que me recordou de uma amiga portuguesa que, há dias, me dizia que foi a entrevistas de emprego em Portugal em que lhe perguntaram de que partido era. Fiquei chocada, é uma coisa que eu pensei já não se fazia em Portugal depois da Revolução. Afinal, mudaram-se os tempos, mas não as vontades.

Hoje perguntei aos empregados novos se gostavam de estar nos EUA e disseram-me que sim, que havia muitas oportunidades, o que não deixo de pensar ser irónico. A senhora andou na universidade e estudou Administração, mas o que a apaixona mesmo é contabilidade e trabalhar em Excel: gosta muito de tabelas dinâmicas, contou-me ela, que deve ser o que nós em inglês chamamos de "pivot tables" em Excel. Agora que penso nisso, se ela tivesse computador, podia aprender a usar o Tableau. Tenho de lhe dizer; pode ser que um dia lhe sirva de alguma coisa.

Descreveram-me o que era viver na Colômbia, para além de ser preciso ser do partido certo, há cunhas e subornos. Ah, percebi, é como Portugal. A grande diferença é que é mais violento do que Portugal. Os colombianos têm ideia que os europeus são todos muito civilizados e bem comportados, mas tive de lhes dizer que o sul da Europa é bastante diferente do norte. No sul também há cunhas, favores, corrupção, etc. É parecido com a América Latina, que, por alguma razão, fala espanhol e português.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Casas baratas e país às baratas

Há várias razões para o imobiliário em Portugal ter ficado bastante caro. Do lado da procura, podemos mencionar as seguintes: depois da crise da dívida soberana e como forma de estabilizar a banca portuguesa e conseguir fundos para a economia, o governo português decidiu promover a compra de casas em Portugal por parte da comunidade emigrante. O aparecimento do Airbnb e a dinamização de grupos de emigrantes portugueses no Facebook também incentivou a aquisição e a a renovação de casas como oportunidade de negócio tanto por emigrantes como por residentes em Portugal.

O fenómeno dos emigrantes portugueses gastarem dinheiro em casas em Portugal não é novo, já tinha acontecido durante o Estado Novo, só que enquando que os emigrantes de outrora construiam casas nas aldeias onde tinham as suas famílias, hoje em dia os emigrantes procuram casa em áreas mais urbanas e com boas oportunidades de lazer, ou seja, há uma concentração de procura em sítios como Lisboa e no Porto. Suspeito que o número de vistos Gold deve ter tido menos impacto no imobiliário do que o da comunidade emigrante. Dos meus amigos portugueses nos EUA, vários têm casa e nenhum a tem arrendada a outras pessoas. Recentemente, também houve políticas de incentivo ao retorno de emigrantes para Portugal e estas pessoas não foram para aí para ter menos poder de compra do que os residentes.

Depois há também os imigrantes que procuram Portugal como um sítio onde conseguir melhor qualidade de vida do que nos países de origem. As redes sociais e a imprensa internacional estão cheias de páginas a promover Portugal junto dos estrangeiros não só como destino de férias, mas também como sítio onde se viver. Mesmo sem a promoção oficial, é natural que Portugal não escapasse a esta tendência que parece ser internacional. Por exemplo, o Cheap Old Houses começou sendo uma página no Instagram onde se fazia publicidade a casas americanas com interesse arquitectónico a precisarem de ser renovadas, mas expandiu a geografia de interesee e agora tem uma lista internacional de casas baratas e até tem direito a programa de TV na HGTV. Há muitas contas de expatriados que promovem o seu estilo de vida noutros países: a Jamie Beck, americana, mudou-se para Provence, na França; a Stephanie Jarvis, inglesa, comprou um castelo a precisar de obras na França e criou um canal no YouTube para financiar o trabalho; a Gayle McNeill, inglesa, vendeu a sua casa em Inglaterra e mudou-se para o Algarve com o marido. E por aí fora...

Do lado da oferta, não se pode dizer que haja falta de casas em Portugal, dado que, segundo um estudo da OCDE, Portugal até tem mais casas per capita do que a maioria de países da OCDE, dado que está em quarto lugar, atrás da Grécia, França, e Itália. No entanto, talvez as casas que existem não se adequem às necessidades de quem procura casa. Os segmentos da população que têm maior dificuldade em mudar de/encontrar casa são as pessoas de mais baixos rendimentos, inclusive os reformados e os jovens que iniciam a vida profissional. Para estes, casas mais pequenas e de menor custo poderiam ajudar a resolver o problema. Talvez interessasse ao estado promover a renovação de prédios devolutos, mas aproveitando-os para fazer apartamentos mais pequenos, quiçá estúdios, que permitam aumentar a densidade populacional, sem sacrificar a privacidade.

Há também ideias que estão a ser implementadas que podiam ser exploradas a maior escala. Por exemplo, no Porto há o Programa Aconchego que emparelha jovens estudantes universitários que precisam de casa com pessoas de idade que vivem em casas com espaço para os acolher (tenho uma amiga neste programa). E porque não ter um programa deste género que emparelha reformados com casa que gostariam de companhia com reformados sem casa que não se importassem em dar companhia?

Outra ideia para aumentar a oferta de casas é facilitar a renovação de casas já existentes que precisem de obras, talvez com crédito com boas condições, ou até o estado a financiar as obras com a condição da casa ser arrendada a pessoas de rendimentos mais baixos. Frequentemente o licenciamento para obras é um dos entraves, logo as autoridades locais podiam rever as regras para agilizar o processo ou até educar a população acerca das regras para que a pessoa não gaste o dinheiro em obras e depois não passa a inspeção.

A diversificação geográfica da actividade económica também pode ser usada para adequar a oferta e a procura. Hoje em dia com a Internet não se justifica que tantos empregos ainda estejam localizados em Lisboa e Porto, com o resto do país subaproveitado.

Quanto à ideia de se construir mais casas, acho má. Por um lado, com o envelhecimento da população e a baixa da natalidade, não faz sentido estar a gastar recursos em construir casas, a não ser que o plano seja mudar toda a gente que vive em zonas rurais para Lisboa e Porto e deixa-se o resto do país às moscas. Seria muito mais produtivo para o país se o financiamento fosse usado para construir negócios que gerassem empregos e dinamizassem outras regiões do país, em vez de mais casas. Até porque dificilmente quem tem dificuldade em encontrar casa agora tenha recursos para se mudar para uma casa acabada de construir, ainda por cima com o custo de construção a aumentar devido à inflação.

Mas pode ser que o problema se resolva a si próprio. Nos últimos dias apareceram vários portugueses num dos meus grupos de Facebook a perguntar como emigrar para os EUA. Ele é tecnicos de HVAC, licenciados em Desporto, soldadores, motoristas de pesados, geógrafos,... Daqui a nada, Portugal fica só com baratas e pessoal dos partidos.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Uma lata de tinta ou uma hora com um advogado

Estava a ouvir o LA-C a ser entrevistado na SIC e ele sugeriu que se fizesse um inquérito acerca do porquê de proprietários não colocarem as casas a arrendar. Como eu sou senhoria em Portugal, e também já fui nos EUA, posso falar da minha experiência -- aliás já uma vez aqui vos mostrei a diferença de como o meu apartamento português é tratado em Portugal e nos EUA para efeitos de impostos: nos EUA essa propriedade tem uma perda e eu não pago impostos de rendimento sobre ela, enquanto que em Portugal, o estado considera que a propriedade tem lucro e nos últimos dois anos paguei mais de 400 euros em IRS anualmente. No meu caso, no curto prazo é irracional eu ter o meu apartamento em Portugal arrendado porque a renda não cobre as minhas despesas, mas note-se que eu ainda estou a pagar a hipoteca e considero isso parte das despesas.

Quais os parâmetros da minha propriedade? Eu comprei por 98 mil euros em 2006 porque os meus pais queriam que eu tivesse uma casa em Portugal. Depois de os meus pais deixarem de lá viver, decidi arrendar. Na altura, a renda era de 250 euros mensais, mas com a crise financeira, tive de baixar para 200 e até chegou uma altura em que apenas cobrei 175 a um casal de reformados. Esse senhor já faleceu, mas era uma pessoa muito boa, sempre preocupado com as minhas coisas. Há sete anos, quando mudei de arrendatários decidi cobrar apenas 200 euros.

Nunca lhes aumentei a renda, nem sequer a actualizei para a inflação. Por um lado, não quero que saiam porque são boas pessoas dá-me gosto saber que têm um sítio seguro a bom preço que lhes permite dar uma qualidade de vida melhor aos filhos. Por outro lado, o dinheiro adicional que eu receberia com a actualização de renda não me aquece, nem arrefece. E, finalmente, eu sou de uma geração que recebeu imenso do estado em Portugal porque tive uma educação de boa qualidade e a custo acessível, logo acho que devo dar alguma coisa em troca ao país. Para elém disso, ter a casa a arrendar baixa o custo que paguei e talvez recupere o meu investimento se algum dia vender. Qual o papel do estado português nisto? Para além do IMI, sempre que pago a hipoteca, o estado cobra imposto de selo, e depois há o IRS que era de 28% sobre a renda líquida, mas agora baixou para 25%. A renda líquida em Portugal é a renda que recebo menos as despesas, que incluem despesas de manutenção, despesas de condomínio, 15% dos juros que pago pelo empréstimo, etc.

Vamos a contas para ver se rendas acessíveis em Portugal faz sentido. Imagine-se uma casa que já está paga e que se coloca a arrendar, logo não há despesas com hipoteca, apenas as despesas de manutenção, seguro, o IMI e depois o IRS. Alguém que queira colocar essa casa a arrendar tem de fazer algumas obras para a colocar no mercado. Uma lata de tinta custa 25 a 50 euros, segundo o Leroy Merlin. Mão de obra é acima do salário mínimo para este tipo de arranjos, mas suponha-se que se contrata alguém por uma semana para fazer as obras. Se se pagar o salário mínimo a essa pessoa (760 euros/mês vezes 14 meses, a dividir por 52 semanas), o total é pouco mais de 200 euros por essa semana. Ao trabalho adiciona-se os materiais: só para se pintar tudo vai ser uns 100-200 euros ou mais porque também há pinceis, rolos, etc. Ou seja, o custo de meter a casa no mercado é pelo menos um mês de uma renda de 300-400 euros. (Estou a ser bastante optimista, um ano tive de fazer obras no apartamento em Portugal e ficou em 527 euros.)

Se se usar uma agência para encontrar um inquilino, eles ficam com o primeiro mês de renda, logo já perdemos dois meses de renda para despesas iniciais. O IMI mais o seguro de propriedade custam mais um mês de renda, logo o senhorio já perdeu uns 3 meses. O IRS a 25% da renda líquida vai incidir em 12 meses menos 3 meses de depesas e impostos de propriedade, ou seja, o estado leva 2,25 meses. No primeiro ano que a casa está no mercado as despesas e os impostos levam quase meio ano da renda ou mais. Se os inquilinos derem problemas e for necessário ir a um advogado, a taxa à hora é de 55-150 euros/hora. Conclusão, não faz sentido comprar uma casa para a meter a arrendar a uma renda acessível porque não se faz dinheiro para cobrir os custos do imóvel.

Nos EUA, tive uma propriedade arrendada que custou 98 mil dólares em 2004, ou seja, mais barata do que o meu apartamento em Portugal. A renda cobrada variou entre 600 a 800 dólares por mês. Em 2014, quando vendi a propriedade, o seguro e o imposto de propriedade custavam $1600 por ano, ou seja, uns dois meses de renda. Nessa altura já tinha uma agência que me geria a propriedade e cobrava 10% da renda. As obras para meter a casa a arrendar variaram entre 350 a 1000 dólares, mas quando se arrenda, os inquilinos fazem um depósito normalmente igual a um mês de renda e esse dinheiro é usado para pagar as obras, se houver obras a fazer. Se os inquilinos tratarem a casa bem, não são necessárias obras e o dinheiro é devolvido aos inquilinos. O senhorio só paga obras que não forem cobertas pelo depósito. Por lei, o depósito das casas arrendadas tem de estar numa conta à ordem à parte e só é usado quando os inquilinos saem.

No sistema americano, há outra diferença enorme e que é o cálculo da renda líquida para efeitos de impostos. Nos EUA, 100% dos juros são deduzidos da renda colectável e, para além disso, o valor da casa também pode ser amortizado. Se a propriedade dá perda depois de se considerar todos os custos, as perdas transitam para o ano seguinte e o estado só começa a receber impostos quando a propriedade começar a cobrir todas as despesas incluindo o custo de aquisição. Segundo me informaram, este detalhe da amortização em Portugal não está disponível para os pequenos senhorios, mas as empresas comerciais de imobiliário têm um sistema mais semelhante ao americano. Obviamente, essas empresas não têm grande interesse em negociar em casas de rendas baixas porque têm mais retorno se se especializarem em casas de renda mais cara.

Por mais voltas que o governo dê, não faz sentido nenhum falarem em rendas acessíveis quando o obstáculo principal é a carga fiscal a que os pequenos senhorios estão sujeitos, mais uma política de salários baixos. Baixar o IRS de 28% para 25% para um senhorio como eu reduz o IRS em 50 euros por ano. Isso dá para quê? Uma lata de tinta ou um hora com um advogado. Quem não tem a casa arrendada não a vai meter a arrendar para não pagar ao estado 50 euros por ano.

Agora tiveram a ideia de obrigar as pessoas a arrendar as suas casas. Vão obrigar como, exactamente? Basta meter uma cama e ir lá dormir uma semana por ano ou aos fins-de semana e a casa já não está vazia, é uma casa de férias.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

A cidade e a saúde

Se a minha mãe tivesse nascido uns anos antes, é natural que eu não existisse. Isto porque quando ela tinha uns 11 anos adoeceu com febre reumática, o que danificou as válvulas do coração e a tornou numa doente cardíaca. Aos 18 anos passou um ano no hospital. Sem dúvida que, sem a melhoria de cuidados médicos e o facto de ter nascido e crescido numa cidade, não teria sobrevivido; mas, mesmo assim, morreu aos 64 anos, abaixo da esperança de vida da sua geração, mas talvez acima da de uma pessoa com a sua condição.

O meu pai, que é homem, mas nasceu em Lisboa, sobrevive-a em quase 15 anos. A minha avó paterna teve então razão de pedir ao meu avô de sair da aldeia onde viviam, na Guarda, e de se mudarem para Lisboa, dado que, na aldeia, ela tinha perdido uns 9 ou 10 filhos e apenas um dos que lá nasceu sobreviveu (morreu aos 82 anos). Depois da família se mudar para Lisboa, nasceram mais cinco crianças e todas chegaram à vida adulta.

Quando os meus tios nasceram em Lisboa, a cidade era mais pequena, para além de ter melhores serviços médicos, tinha mais espaços verdes, menos edifícios, e menos trânsito e a poluição que daí resulta. Talvez como reação ao urbanismo do Estado Novo, ou por ignorância política, hoje em dia os jardins que são construídos, se é que são construídos e se é que são jardins, tendem a ser uns espaços abertos, em que o único verde é o da relva (ou talvez das ervas daninhas, que são ligeiramente melhor do que relva). São espaços completamentos inertes em termos de valor para a ecologia local e para a saúde dos residentes.

Saiu recentemente um estudo europeu que indica que plantar mais árvores em zonas urbanas na Europa pode reduzir o risco de morte prematura em um terço. Para além das árvores ajudarem a regular os microclimas urbanos e a dimimuir a temperatura do ar, também contribuem para o bem estar mental dos residentes e promovem actividades de lazer, o que dimimui a prevalência de obesidade e diabetes de tipo II. Nas crianças, as zonas verdes também estimulam o desenvolvimento cognitivo e da memória.

A ausência de zonas verdes é mais comum nas zonas mais pobres das cidades, os residentes mais pobres são também os que costumam ter mais problemas de saúde, e as crianças pobres têm mais dificuldades de aprendizagem. Lisboa que antes ajudava a salvar é capaz de hoje em dia contribuir para a doença. É pena que não haja dinheiro para re-pensar o planeamento urbano das cidades portuguesas. A situação tenderá a piorar, dado que com os preços altos do imobiliário, a pressão vai ser para que se construa mais e se sacrifiquem os espaços verdes.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Perdemos um carvalho

A fuga de água da minha vizinha já está a ser arranjada. Hoje -- sim, hoje, domingo -- enquanto passeava o Julian, vi um senhor de volta do contador de água. Nem chamou os detectives de fugas, nem os senhores que identificam onde estão as ligações do gás, electricidade, etc. O carvalho que provavelmente causou o problema já era, foi logo a primeira vítima. Fiquei triste de se perder aquela árvore, era tão saudável e já devia ter quase uns 30 anos, dado que a casa foi construída em 1996. Só que foi plantada mesmo ao lado do contador da água, o que não faz sentido nenhum. Claro que as raízes se iriam entrelaçar com o cano da água e, um dia, ia dar asneira.

Estou curiosa para saber onde é que a vizinha vai plantar a árvore substituta e se vai plantar outro carvalho ou uma zelkova, que é a árvore que eu tenho em frente da minha casa. A minha zelkova é um monstrinho, a maior da vizinhança. Muitas das outras que foram plantadas não se deram bem e a minha rua não tem as árvores todas do mesmo tamanho. A rua da vizinha tinha os carvalhinhos todos alinhados, frondosos e bonitos, que, no Outono, ficam com umas cores muito apropriadas à estação. A minha zelkova também muda de cor e eu até gosto dela, mas era mais giro se não fosse umas das poucas que ficaram viçosas.

Quanto a mim e ao meu contributo para a poupança da conta de água da vizinha, que pelas minhas contas deve ir em mais de $300, nem um cartãozinho recebi, mas talvez ainda seja cedo para esperar um agradecimento.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Fugas

Depois da tempestade de Natal e da minha consequente fuga de água, quando passeava o cão pela vizinhança caía na tentação da auto-comiseração. Olhava para as casas dos vizinhos e não via nenhuma fuga de água e perguntava ao universo o porquê de me ter saído aquela lotaria. Lá para o fim pensei que, se era para acontecer a alguém, pronto, eu faria paz com o universo e aceitaria a minha sina, até porque eu tinha meios de pagar o custo. A semana passada tivemos outra tempestade. Nevou, depois ficou tudo cheio de gelo, e desta vez não tive nenhuma fuga de água, mas também deixei uma torneira a pingar durante uma noite.

Quando o tempo melhorou, retomei os passeios com o Julian (o meu cão) e notei, há três dias, que uma vizinha possivelmente tem uma fuga de água. Afinal acontece aos outros e, se calhar, eu já tinha visto outras coisas destas antes, mas não sabia identificar. No primeiro dia em que a vi, passei e andei porque pensei que a vizinha notasse e tratasse do assunto. Ontem e hoje toquei à campainha para a avisar, mas ninguém atendeu. E se calhar ela ainda não deu conta porque chega à casa depois de escurecer. Isto está a pesar-me imenso porque começo a pensar no custo das contas de água e esgotamento, se ela não trata do problema, para além do desperdício de água. Amanhã tenho de deixar uma nota no correio.

Uma história gira aconteceu com esta vizinha que, poucos dias depois de se mudar para a casa, me apanhou a passear o cão e perguntou se era ele que fazia caca na relva dela -- foi logo na primeira vez que falou para mim. Ora, eu apanho sempre a caca do meu cão, aliás, é ilegal não apanhar e nós até temos caixotes de lixo equipado com dispensadores de sacos para apanhar os detritos dos cães espalhados pela vizinhança, cortesia da Home Owner's Association, à qual nós pagamos, claro (eu pago $162 trimestralmente). Para além disso, eu levo sempre sacos comigo, tanto no dispensador da trela, como na minha carteira. Os vizinhos até me perguntam a razão de eu passear com carteira. Aliás, uma vez fui às compras e uma senhora estava atrapalhada com o seu cão no parque de estacionamento porque não tinha um saco para apanhar o lixo e eu dei-lhe um rolo.

Adiante; lá disse à vizinha que não, não era o meu cão e, se fosse, eu teria apanhado a caca dele porque apanho sempre. Qual a parte engraçada disto? É que eu tinha comprado uma garrafa de vinho e um cartão postal para dar as boas-vindas à vizinha e depois já não dei boas-vindas nenhumas e bebi eu o vinho. É a vida, tal como a minha fuga de água e agora a dela.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Na mesma como a lesma

Aqui há uns tempos houve a ideia de se tirar a restrição de haver bidés nos quartos de banho para incentivar a construção de casas. Eu concordo com a parte de que um bidé não deve ser obrigatório em todos os quartos de banho, mas mais por design do que por necessidades de natureza económica.

Portugal tem mais casas per capita do que outros países na Europa, logo os bidés não funcionam como entrave à construção, nem sequer à compra de casa. Incentivar o país a construir mais casas é não só um desperdício de recursos, como contribui para o empobrecimento do país. É que o investimento que podia ir para outros sectores com potencial acaba por ir para o imobiliário e, por sinal, já há bastantes casas vazias em Portugal. Casas a mais faz mal ao ambiente porque retiram espaços verdes às comunidades. Sem espaços verdes, há mais aquecimento urbano, interrompe-se o ciclo da água, há mais inundações, pior qualidade do ar, pessoas mais doentes física e mentalmente, etc.

A economia funciona mal porque o estado português funciona mal. O sonho dos portugueses é comprar casa porque é uma forma de se isolarem dos efeitos nocivos das políticas do estado. Quem é proprietário, quando for velho, pode não ter grande coisa, mas tem um teto e está protegido contra a inflação das rendas de casa e, se tem filhos, tem algo para deixar aos filhos, e eles se calhar não têm grande interesse em assumir o risco de as arrendar e preferem mantê-las vazias.

O mercado imobiliário também está ligado ao mercado de trabalho. Veja-se o caso dos trabalhadores que querem ser professores do ensino público. No outro dia, conversei com uma amiga minha, que é professora e tem mais de 10 anos de experiência. Este ano foi colocada a 80 km de casa, com um horário de 14h semanais cheio de furos, sem subsídio de almoço e sem descontos para a segurança social. Esta pessoa tem condições para mudar de casa para poder ir ensinar? Ou sequer manter a sua casa actual e fazer a comuta para esta escola? Depois conclui-se que não há professores e que as rendas são caras, apesar de haver casas vazias.