quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Retrocesso e progresso

A propósito da nova exigência de ter um cartão associado às contas bancárias em Portugal para se poder efectuar pagamento de serviços, recebi hoje um telefonema da minha gerente de conta do Novo Banco. Fiquei feliz porque é mulher e o meu primeiro gerente era homem, logo o rácio 50% que o PM Costinha queria implementar foi concretizado, apesar de a empresa ser privada. Pena o PS não conseguir arranjar uma mulher que consiga liderar a malta socialista.

Então o telefonema foi acerca de eu ter pedido um cartão de débito, que já me foi enviado, só que enviaram para a minha morada no Texas porque ainda não tinham processado o pedido de alteração de morada que tinha feito mais de um mês antes, quando aí estive. Para que não andasse um cartão de débito com o meu nome à solta no Texas tivemos de activar o cartão e depois cancelá-lo para eu poder pedir um cartão novo, dado que a minha morada já está regularizada. Pelo sim, pelo não, enviei dinheiro a mais este mês para pagar a minha parte da mensalidade dos cuidados do meu pai porque calculei que algo podia correr mal que comprometesse o uso da conta em Janeiro para efectuar o pagamento. Já sabem que eu sofro de ansiedade...

Aproveitei para dizer à minha gerente que achava o preço da minha conta muito caro (€60 por ano), mas ela disse-me que não há contas grátis--é como os almoços. Na minha ideia, se pago tanto por uma conta e se me dou ao trabalho de me deslocar a uma agência para mudar a morada, altura em que apresento os documentos com a morada nova e comprovo a minha identidade junto de uma pessoa física, a morada devia ser alterada imediatamente no sistema ou, pelo menos, entrar em vigor no dia seguinte, depois do sistema fazer a sua actualização diária. Não faz sentido esperar um mês para efectuar a mudança. Quando se fala em produtividade baixa em Portugal, isto é um bom exemplo.

Entretanto, nas minhas contas americanas, é tudo bipolar: ou muito pouco ou muito sofisticado. Por exemplo, para fazer pagamentos de serviços acontece frequentemente o banco não conseguir fazer transferência directa para o prestador e então dizem que vão ter de enviar um cheque pelo correio. A sério que nós ainda usamos cheques. E quem paga o selo é o banco, que não me cobra nada nem da transação, nem sequer pago custos de manutenção da conta, dado que tenho pelo menos um depósito mensal.

Na minha conta à ordem do Capital One até processam o meu salário assim que recebem a ordem de depósito, logo fico com o dinheiro disponível na conta um a dois dias antes do normal: dizem que é para minha conveniência. E pagam 4,3% de juros ao ano na conta a prazo. Como não há balcões da Capital One em Memphis, trato tudo pelo telefone ou pela Internet. Reparei há dias que também dá para fazer associar contas em outros bancos à minha conta de forma a que eu possa transferir dinheiro facilmente e sem pagar nada.

As mudanças mais sofisticadas aconteceram porque os bancos normais viram que estavam a perder negócio para as aplicações digitais como a Venmo, a CashApp, a Paypal, etc. Por exemplo, o senhor que corta a minha relva nem conta bancária tem e recebe o pagamento via PayPal; para aceder aos fundos tem um cartão de débito da PayPal. A manicurista também recebe pela PayPal e a minha cabeleireira recebe por Zelle. Duvido que os americanos larguem os cheques num futuro próximo. O mote deles é "if it ain't broke, don't fix it."

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Pensamentos avulsos

  1. Hoje, quando vi uma foto de Pedro Nuno Santos ao lado de outra de José Luís Carneiro, acendeu-se uma lâmpada no meu cérebro: os portugueses não gostam de votar em homens com barba. Aliás, nunca houve nenhum Primeiro-Ministro ou Presidente da República barbudo. Lembram-se de quando Marcelo tinha barba? A única coisa que ganhou foi a liderança do PSD e perdeu a corrida a Presidente da Câmara de Lisboa. Ou seja, PNS pode ganhar a liderança do PS, mas não penso que irá muito mais longe.

    Pelos meus cálculos, André Ventura barbudo também não irá muito mais longe na política nacional: talvez consiga ser ministro de alguma coisa, mas mais do que isso é difícil. Claro que seria muito mais gratificante derrotá-lo em termos das ideias idiotas com que se decide projectar, mas quem não tem cão caça com gato e eu não sou esquisita.

  2. Por falar em eleições, Trump anunciou que iria ser um ditador desde o primeiro dia, caso ganhasse as eleições. Como se nós já não contássemos com uma vingançazita. Entretanto, bastantes republicanos estão interessados em que a Nikki Haley progrida nas primárias e que Chris Christie desista da corrida. Seria curioso ver se ela conseguia derrotar Trump. Também seria bom ter outra mulher candidata à Presidência.

    Note-se que Trump tem um ponto fraco: a sua guerra comercial com a China causou uma descida forte do preço das commodities agrícolas e houve bastante incerteza durante esse período, para além de perdas monetárias com a perda de volume exportado para a China. Como a maior parte do seu eleitorado está em zonas rurais, também seria interessante ver se os agicultores, sabendo agora do que a casa gasta, o iriam apoiar outra vez nas urnas.

  3. Ainda o Kissinger. Tentei ler o obituário dele no NYT e aquilo é super-comprido -- não sei se cheguei perto do fim, quando decidi adiar o exercício. Nele até se citava o Presidente Obama na revista The Atlantic:
    President Barack Obama, who was 7 years old when Mr. Kissinger first took office, was less enamored of him. Mr. Obama noted toward the end of his presidency that he had spent much of his tenure trying to repair the world that Mr. Kissinger left. He saw Mr. Kissinger’s failures as a cautionary tale.

    “We dropped more ordnance on Cambodia and Laos than on Europe in World War II,” Mr. Obama said in an interview with The Atlantic in 2016, “and yet, ultimately, Nixon withdrew, Kissinger went to Paris, and all we left behind was chaos, slaughter and authoritarian governments that finally, over time, have emerged from that hell.”

    ~ NYT, 29/11/2023

    É uma ideia simpática achar que todo o mal que os EUA fizeram se deveu apenas à proximidade de Kissinger dos vários governos americanos, mas os americanos não precisaram de Kissinger para lançar duas bombas atómicas, por exemplo, ou para invadir o Iraque. Ou seja, não há grande garantia que, se não existisse, as coisas teriam sido bem melhores. Pelo contrário, veja-se o papel de Kissinger no desenvolvimento da China. Quantas vidas não salvou e quantas pessoas não saíram da pobreza?

    O legado de Kissinger é complexo e não pode ser caracterizado de positivo ou negativo porque foi ambas as coisas, mas não se pode negar que o homem se interessava por estudar o mundo e tinha uma visão multicultural, para além de ter sido um intelectual a sério.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Serviço público

No dia 28 de Novembro, recebi um email do Novo Banco a indicar que, como não tenho um cartão de crédito ou de débito associado à minha conta, a partir de 19 de Dezembro não vou poder fazer transferências da minha conta que sejam agendadas pela página de Internet do Novo Banco e em 28 de Dezembro acontecerá o mesmo às transações agendadas por via da app. Para transferir dinheiro, é necessário ter um cartão "associado" à conta. Enviei um email ao banco a pedir esclarecimentos na Sexta-feira, mas ainda não recebi resposta. Hoje tentei agendar uma reunião com o banco, mas não aceitam números de telefone americanos no formulário da app, apesar de a minha morada ser americana. Aliás, eu abri a minha conta nos EUA, na época em que o BES tinha escritórios aqui. Desde então o serviço deteriorou bastante, apesar das novas tecnologias de informação.

Diz o Novo Banco que esta mudança é devida a "questões regulamentares", o que remete a culpa para o Banco de Portugal. Alguém pergunte ao Centeno se faz sentido obrigar os clientes de bancos a ter cartões bancários para efectuar transferências, dado que um cartão não é garantia de nada e frequentemente representa um custo para o utilizador. Para além disso, um cartão bancário aumenta a probabilidade que a pessoa seja roubada. Utilizar um cartão de débito não é seguro porque pode ser duplicado; quanto aos cartões de crédito também podem ser roubados. Depois, os bancos estão a fazer tanto dinheiro em juros e custos de transacção que o regulador devia estar mais preocupado com os consumidores do que em promover os produtos dos bancos.

Para quem reside fora de Portugal, ainda faz menos sentido esta restrição, dada a dificuldade em se mudar a nossa morada. Por exemplo, quando estive em Portugal no mês passado fui ao Novo Banco mudar a minha morada, que já estava obsoleta há mais de cinco anos. Porquê só agora? Porque para mudar era preciso um comprovativo oficial de morada fiscal, só que sendo eu emigrante, a minha morada fiscal é a morada do meu procurador fiscal.

Quando cheguei ao banco, a senhora que estava ao balcão da frente pediu-me o tal do comprovativo oficial de morada e quando eu disse que morava nos EUA, ela presumiu (erradamente) que os americanos também emitiam comprovativos oficiais de morada via um inexistente Portal das Finanças americano. Mostrei a minha carta de condução americana e lá mudaram, mas ela ainda me disse que não sabia se seria suficiente porque não era um comprovativo oficial de morada. O Guterres, o Sócrates, o Costa não chegaram a Primeiro Ministro prometendo maior simplidade burocrática?

Adiante, a razão de eu não ter cartão de débito é fácil de comprender: foi enviado para a minha morada antiga no Texas, logo nunca foi activado e nunca apareceu na minha conta do banco, logo cancelei porque estava farta de pagar por um cartão que eu não tinha. Só que com esta mudança, tive de pedir um cartão de débito na semana passada -- aqui entre nós, acham que o dito tem tempo de chegar aos EUA antes de 19 de Dezembro e de ser activado? É que todos os meses tenho de pagar a conta dos cuidados do meu pai num lar de terceira idade e não sei se deva enviar dinheiro a mais em Dezembro caso não consiga em Janeiro. Convinha isto ficar esclarecido antes porque senão desisto de pagar com o Novo Banco e começo a pagar via Wise, ou coisa que o valha.

Entretanto, hoje comecei a perguntar aos meus amigos portugueses se tinham conhecimento destas mudanças: um que está nos EUA e vai frequentemente a Portugal não sabia de nada; os que estão em Portugal têm uma vaga ideia, mas nem sabem se as suas contas à ordem estão associadas a um cartão para que as transações não sejam canceladas. Não tenho visto nenhuma discussão na Comunicação Social de uma mudança que me parece bastante problemática. Quando entrar em vigor, veremos as consequências.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Um período grave

Bem sei que, ultimamente, não me tem dado para escrever, ou melhor, escrevo imenso na minha cabeça, mas depois não chego a executar o acto. Tenho tido alguma consistência a escrever para a minha vizinha, talvez uma ou duas vezes por mês, apesar de, ultimamente, com as viagens e o ritmo de trabalho, as missivas se terem espaçado. Hoje apeteceu-me vir aqui e não por uma razão apenas.

Há umas semanas, fiquei incrédula quando vi que há quem ache que a demissão de António Costa representa algum tipo de golpe judicial, como se ele tivesse sido forçado a demitir-se. Tenho uma opinião completamente contrária, pois o governo PS já teve bastantes escandâlos em que a demissão de António Costa era o mínimo esperado e, como nas outras vezes não se demitiu, é surpreendente que o tenha feito. Ou seja, o seu comportamente passado não dá credibilidade à ideia de que ele não tinha outra hipótese. Para mim é evidente que ele pretere os interesses do país aos próprios e do partido, logo a sua demissão deve ter sido motivada por algo que desconhecemos.

Galamba finalmente demitiu-se para que, logo a seguir, na Comunicação Social aparecessem conjecturas acerca da possibilidade de Pedro Nuno Santos o poder salvar. É como se alguém atirasse barro à parede para tirar a temperatura dos ânimos. Como é que alguém do calibre de Galamba chega onde está e lá fica tanto tempo, sem que sequer tenha o benefício da nossa ignorância acerca da sua incompetência? Podia-se invocar a lei dos grandes números, mas, num país tão pequeno, onde o PS já governa há tantos anos, talvez se deva cunhar a lei do pequeno número de amigos. Só que um Primeiro Ministro não pode ter amigos, dizia António Costa para se distanciar da pocilga política que criou. Fica a nota para quem vier a seguir.

Aqui na minha parte do mundo, as coisas estão curiosas. Os Democratas acham que a questão do aborto lhes dá apoio político, mas no meu caso--e note-se que eu não sou uma pessoa representativa do eleitorado americano--retira-lhes apoio. Como já aqui escrevi, sinto que a questão do aborto faz de nós mulheres reféns políticos, especialmente pelo partido Democrata. Não há nenhum assunto pertinente ao corpo dos homens que seja tão contencioso como a questão do aborto para as mulheres, logo a ideia da igualdade entre homens e mulheres está cada vez mais no reino da utopia.

Talvez num futuro próximo no qual a gestão de bebés possa ser feita fora do corpo das mulheres, o debate mude de figura, mas não sou tão optimista. O que penso estar a acontecer é uma reversão à média e, se formos a ver, historicamente, as mulheres nunca usufruiram verdadeiramente de igualdade e os períodos em que tiveram mais direitos nunca duraram muito.

Neste contexto, votar Democrata não ajuda as mulheres porque dá-se uma cheque em branco aos Democratas que eles usam noutros assuntos que não o do avanço das mulheres na sociedade. Depois há o facto curioso de a sociedade americana se tornar muito mais activa no sentido de preservar direitos quando os Republicanos estão na Presidência. Esta curiosidade não é única daqui porque, em Portugal, os governos de Direita também têm maior resistência da sociedade portuguesa do que os governos de Esquerda. Talvez a malta da Esquerda saiba resistir melhor do que os de Direita.

Finalmente, há a questão Israel-Gaza/Palestina. Neste conflito, a maior parte das vítimas são mulheres e crianças e os Estados Unidos não têm qualquer problema em enviar armas a Israel sem exigir que se salvaguardem as convenções internacionais que regem conflitos e os direitos humanos. Se Trump se comportasse assim, os americanos sairiam à rua. Há muitas mulheres americanas que estão contra Biden neste conflito, ou seja, o melhor dos cenários para os Democratas é Biden morrer antes das eleições. Se ele for a votos, perde com certeza mesmo contra Trump.

Enquanto escrevia este post, saiu a notícia de que Henry Kissinger morreu aos 100 anos. Pode-se não gostar do homem, mas tinha um calibre intelectual que hoje em dia raramente se encontra; se quiserem ler o seu pensamento, têm acesso a algumas entrevistas dele aqui. Em 2018, Kinssinger dizia ao FT "We are in a very, very grave period." Ainda estamos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Decepcionante

Estou extremamente decepcionada com os comentadores portugueses. Ainda não vi ninguém perguntar o porquê de António Costa salvar a todo o custo o pêlo do Galamba. Se fosse nos EUA já alguém teria especulado que Galamba deve saber algo acerca de António Costa que António Costa não quer que venha a público, ou seja, Costa deve estar a ser alvo de chantagem. É a única explicação lógica para António Costa não ter demitido Galamba. E MRS "a vê-los passar", completamente impotente por vontade própria.

domingo, 12 de novembro de 2023

Indefinidamente

No discurso de hoje, António Costa pinta-se de vítima--não viu nada, como de costume, mas quando foi confrontado com o que supostamente não tinha visto também não agiu: não demitiu imediatamente Galamba, que carrega às costas como se a sua vida dependesse disso, em vez de salvaguardar a reputação da República. Depois anda em negociações com o PR para escolher o seu substituto, e acha que Centeno é o melhor candidato. Centeno, como de costume, presta-se ao serviço necessário para manter o PS no poder.

Nada do que se tem passado em Portugal nos últimos dias abona a favor de Portugal ser considerado uma democracia. Se Costa se demite e a demissão é aceite pelo PR, mas Costa continua em funções, então Costa não se demitiu. Se há uma demissão e, como o LA-C refere, não há um protocolo de continuidade de governação que é observado, então todo este teatro não faz qualquer sentido.

A não ser que o plano seja António Costa começar a distanciar-se do governo para se candidatar a Belém e Centeno seja visto como a melhor hipótese de manter o PS no poder por mais uns bons tempos. Que o PS não sai do poder já era um dado adquirido, dado que o PS não precisa de maioria para governar indefinidamente.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Piada à americana

Na semana passada, fui a Singapura em trabalho e tive oportunidade de assistir a uma conferência em que um dos oradores tentava iserir algum humor no seu tópico, numa altura em que o humor está a preço de saldo, dados os acontecimentos de Israel e Gaza. Dizia ele, a propósito do ano que vem, que as perspectivas não estavam muito animadoras porque nas próximas eleições 40% do eleitorado vota Biden, 36% vota Trump e 80% preferia não votar em nenhum dos dois.

Conversei, no dia seguinte, com um dos meus conhecidos que é republicano, mas detesta Trump e não votou nele, que se questionava como é que num país de 350 milhões (eu corrigi-o e disse-lhe que era mais próximo de 330, mas a estimativa mais recente é 335,6), estes dois candidatos são o melhor que se pode arranjar. Exacto, exacto, é essa mesmo a pergunta que faço, respondi-lhe, acrescentando que não entendia como é que os Democratas que eram tão Democratas não arranjavam uma candidata mulher. Ele dizia-me que até não se importaria de votar na Nikki Haley e eu também não, se a alternativa fosse Biden.

Entretanto, após o meu regresso às terras do Tio Sam, liguei a rede do telemóvel mesmo a tempo de apanhar a reacção das minhas amigas americanas (e democratas) a um discurso de Biden. Estavam todas encantadas, que sorte termos o Tio Biden como presidente. Eu não respondi, aliás deixei de participar na conversa porque acho completamente estéril. Os apoiantes de Biden desligaram o cérebro e estão tão cegos como os de Trump e nem uns nem outros reconhecem que a política externa de um e outro é mais parecida do que diferente: uma América isolada, com o resto do mundo às turras entre si e sem nenhuma orientação.

Há uma facção alargada de pessoas que acha que o imperialismo americano é indesejável e muitas vezes violento, com os EUA a meterem-se onde não devem; mas a alternativa também não é pacífica e uma política isolacionista americana é desestabilizadora. E ainda vai ficar pior: os americanos estão a gastar a Reserva Estratégica de Petróleo, umas das ferramentas que lhes permitia gerir o preço internacional de petróleo e que permitiu várias décadas de preços estáveis e relativa paz.

A ideia americana é ser menos dependente de conbustíveis fósseis dentro de poucos anos, com incentivos a que a frota automóvel passe a ser eléctrica, mas uma política destas combinada com políticas nacionalistas prejudica quem é mais pobre. As barreiras ao comércio internacional são cada vez maiores, o que contribui para subidas de preços, e a inflação cria incentivos a políticas ainda mais nacionalistas.

Finalmente, há o aspecto humanitário, talvez o mais importante. Se continuarmos a deixar que estas agressões proliferem, um conflito maior é quase inevitável -- para lá caminhamos, quem dera que fosse piada.

domingo, 17 de setembro de 2023

Mandem para mim!

Se vocês não querem a estátua do Camilo a abraçar a Ana nua, podem enviar para minha casa. A sala de jantar está cheia de mulheres nuas porque faço colecção e é uma ideia bastante divertida ter mulheres nuas onde se come. E para bom entendedor, meia palavra basta...

Notas:
Bem sei que alguma da arte tem vidro que reflecte, mas foi porque as peças foram compradas assim. Os que comprei sem moldura e mandei arranjar estão com vidro anti-reflexo. Só em molduras para as três peças inferiores na parede da La Femme Nue gastei quase $1500 -- bem sei que é mais do que muitos portugueses ganham num mês, mas quem vos manda eleger governos incompetentes?

Ah, a escultura de alabastro comprei na Etsy e veio da Grécia. Encontro muito pouca coisa portuguesa por lá, mas já comprei uns tapetes.

Pois é, ensanduíchado entre os dois livros de fotografia do Richard Avedon estão dois livros do Tito Mouraz, fotógrafo português que eu adoro!

Sim, sim, a escultura por cima dos livros é parecida com uma gata, mas também é uma mulher nua porque cada um vê o que quer.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Por acaso, aconteceu e correu muito bem

A minha cabeleireira habitual cortou um dedo num prato partido, logo não me podia atender este mês. Lá fui ver se a Ulta tinha vaga no salão, apesar de já lá não ir há um ano. Deixei de ter paciência para pintar o cabelo em casa, é o que é. Também está na moda não pintar o cabelo, mas ainda não entrei nessa onda. Quando frequentava a Ulta com mais assiduidade, costumava marcar com uma senhora que até tinha ascendencia portuguesa, pois a família era de Macau. Depois ela mudou-se para a Califórnia porque o filho queria-a mais próximo dele, e deixei de ter alguém regular por aquelas bandas. Dixei de lá ir depois de ter sido atendida por um senhor de cujo serviço não gostei. Para além de ter mau hálito, era um bocado trapalhão e não me lavou bem a cabeça e não tirou a tinta toda, nem foi muito exacto a aplicar o produto em redor da cara, logo fiquei toda manchada.

Não tinha má impressão dos cabeleireiros homens, pois os anteriores que tive foram todos espectaculares, mas deixou-me pausa esta má experiência. Tentei marcar desta vez com uma mulher, mas a primeira que tentei não trabalhava no fim-de-semana; passei ao nome seguinte da lista que era um homem e tinha vaga para Domingo, o que para mim era perfeito, mas fiquei um bocado reticente, a pensar que podia ser mais outra má experiência.

Chegou o dia da minha consulta e à hora marcada fui ao balcão informar que já tinha chegado. O meu cabeleireiro mandava avisar pela recepcionista que ia chegar 10 minutos atrasado, mas na realidade o atraso foi de uns 20 minutos. Deram-me a garrafinha de água de praxe, e eu esperei. Quando chegou fiquei surpreendida que fosse um senhor negro, dado que nunca tinha visto um a trabalhar lá. Ainda por cima, constatei que eu nunca tinha sido atendida por uma pessoa de cor. Nunca me tinha calhado até então.

Perguntou-me qual a receita da minha cor e, realmente, a senhora que eu costumava ver tinha-me enviado a receita, mas não a guardei--também não a apaguei, mas a mensagem foi apagada nas limpezas de rotina para poupar memória ao telefone. Não me preocupou muito porque eu sabia que a receita também estava no sistema informático da Ulta e disse-lhe que estava no computador. Levou algum tempo, mas lá apareceu com ela, só que não a percebeu, não sabia que produtos usar, e havia uma cor que não estava em stock. Telefonou a outra cabeleireira a perguntar o que fazer e ela deu-lhe instruções, mas ele estava bastante ansioso acerca de toda a situação, a modos que eu também fiquei com uma boa dose de paranoia--e se ele me frita o cabelo? E se me deixa metade do cabelo por pintar? Etc.

Finalmente começou a pintar-me o cabelo e ficou muito surpreendido com a minha cabeça por ter tantos brancos -- que na verdade são prateados e brilham ao sol -- dado que eu era tão jovem. Ah, bom, o primeiro apareceu aos 25 anos e eu já não sou muito jovem, já tenho mais de 50. A sério, dizia-me, não me dava mais de uns 30 e poucos. Agradeci-lhe o elogio, apesar de achar que os meus 30 foram uma grande seca. Durante a aplicação foi bastante cuidadoso e muito exacto, a modos que não fiquei com a testa toda suja. Esperei os 45 minutos de praxe, durante os quais li a The Atlantic.

Quando me lavou a cabeça esfregou-me muito bem o couro cabeludo e ensaboou duas vezes. Depois aplicou um creme hidratante e esperou 5 minutos até enxaguar. Não gosto nada quando aplicam o amaciador e depois enxaguam logo a seguir, sem esperar que actue. Achei que a maneira como ele me lavou a cabeça foi das melhores que já tive e senti o couro cabeludo bastante limpo e sem vestigios de tinta.

Passámos à parte de secar o cabelo, mas eu trato o meu cabelo tão mal, devido ao uso de elásticos para fazer totós, que as pontas estavam bastante espigadas. Perguntou-me quem é que me aparava o cabelo e quando é que tinha sido a última vez (ele pensava que era eu, porque estava tão desnivelado). Na verdade, já nem me lembrava da última vez que tinha pedido para me darem um corte de manutenção, mas se ele quisesse e pudesse cortar, eu agradecia. Lá passou ao corte e ficou bastante bem, com um escadeado muito natural.

Conclusão, apesar dos solavancos com a progressão do serviço, o produto final foi excelente. Espero que fique no salão por bastante tempo porque eu gostaria de o ver novamente.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Joaquim Feio (1952-2023)

Mutatis mutandis, faço minhas as palavras do Fernando Alexandre no Facebook:

Foi com o Professor Joaquim Feio que tive algumas das melhores aulas de Economia na FEUC. Nas aulas de História de Pensamento Económico, uma opção a que assistíamos uma meia dúzia de alunos, dizia-nos que as aulas dele eram uma espécie de BBC, canal cultural. A aula sobre fisiocracia foi uma das melhores aulas a que já assisti. Foi com ele que conheci Albert Hirschman ou Peter Drucker - por causa dele li uma fascinante autobiografia de Drucker. Sobre Keynes, que idolatrava, aprendi muito dentro e fora das aulas, dado que o Professor Feio partilhava generosamente o seu enorme conhecimento com os alunos que nele estivessem interessados. Tive também o privilégio de ter longas conversas com ele, com as quais muito aprendi sobre economia e sobre muitos outros assuntos. Uma das pessoas verdadeiramente cultas com que me cruzei na academia e muito importante na minha formação. Foi com muita tristeza que tomei conhecimento da sua morte.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

A americana é do piorio

Dizia um nosso ilustre leitor, há uns posts atrás, que a Rita portuguesa era mesmo bem portuguesa porque se tinha atrasado na submissão do forumulário de IRS. Coitadinha da Rita portuguesa, uma santinha, ou não tivesse ela o nome de duas, que até doente tentou entregar a tempo, mas a página de Internet da AT levou-a pelos maus caminhos. Mesmo assim só entregou com horas de atraso.

Já a Rita americana em vez de tratar dos impostos a tempo e horas, que este ano até era a 17 de Abril, porque o tradicional dia 15 calhava no Sábado, andou a engonhar e, uns pares de dias antes, enviou um email para o seu contabilista a pedir para entregar um pedido de extensão do prazo. Depois levou meses a tratar da coisa. Só tratou no último dia de Julho e foi porque o contabilista lhe disse que era melhor tratar antes de ele ir de férias, senão ela tinha esperado até Outubro, quando terminasse o prazo da extensão, preguiçosa como é, só faz aquilo que lhe agrada. Como hoje.

Hoje, quinta-feira, dia do relatório semanal das exportações agrárias americanas, que sai às 7:30 da manhã, a Rita americana já estava em frente do computador minutos antes, até porque também sai, à mesma hora, o mapa de monitorização da seca. É um dia espectacular, com tanto número e mapas coloridos com que brincar. Então a Rita americana passa o dia inteiro a pastorear números e a enviar emails e mensagens com quê, perguntam? Ora, mais números.

Já passava das 17:30 quando a Rita americana se apercebeu que já ia além da hora de terminar o serviço, mas que felicidade! E ainda estava esperta que nem uma alface salpicada de gotas de orvalho, aliás, pensava ela que ainda nem eram 15:00. Os olhos já estavam cansados e secos, as pernas precisavam de dar um esticão, mas a Rita americana insistia que não: ainda era preciso processar mais outro relatório, o da CFTC que saiu à tarde, e enviar mais um email à equipa a pedir comentários para o relatório que vai ser finalizado no Domingo de manhã -- é ao Domingo para ter a informação meteorológica mais actualizada para a próxima semana. Há quem vá à missa, a Rita americana vai ao Microsoft PowerPoint, o que dá no mesmo.

Por ano, a Rita americana tem direito a duas semanas de baixa médica, mas na semana dos impostos portugueses, quando estava febril e quase a delirar, não tirou sequer uma hora. E férias? Tem direito a 4 semanas de férias por ano (20 dias úteis), mais dois dias por motivos pessoais, e ainda só tirou 4 dias e meio o ano inteiro. E as férias de Setembro, que estava a planear fazer, a Rita americana já as adiou até Outubro, mas ainda nem sequer comprou o bilhete de avião. Ao menos, quando chegar a Outubro, já não terá de entregar os impostos.

É do piorio, a Rita americana. Só faz o que lhe dá na telha e não tem vergonha de andar sempre a adiar coisas.

domingo, 27 de agosto de 2023

Quarta-feira, depois do almoço

Foi na Quarta-feira, depois do almoço, que morreu a K. aos 94 anos. Na Quinta-feira à noite recebi o e-mail da minha vizinha onde me dizia que decerto eu já tinha ouvido da sua morte, mas eu ainda não sabia. Eram melhores amigas não porque tivessem sido melhores amigas, mas porque as duas eram as últimas sobreviventes do seu círculo de amizades. Agora resta apenas a minha vizinha que está triste por ser a última, mas o plano é chegar aos 100 anos porque um vizinho lhe deu uma garrafa de vinho caro e ela quer bebê-la na celebração--falta ano e meio.

Os últimos meses foram difíceis. Costumavam telefornar-se diariamente, mas a K. já estava esquecida e contava à minha vizinha coisas que ambas sabiam porque as tinham vivido. A minha vizinha ficava frustrada e dizia não saber o que se passava, que estava preocupada com a amiga. Já para o fim, a K. queria falar com ela, mas ela não sabia se a devia ir ver porque, há muitos anos, alguém das relações delas estava a morrer e a K. não achava bem que fossem visitar a pessoa. Para tentar resolver o impasse, disse-lhe que obviamente que tinha de ir, dado que a K. a queria ver.

A última visita correu bem, falaram quase 45 minutos e a K. estava lúcida, mas com bastantes dores e durante o tempo inteiro não se tinha mexido. Inquiri do porquê de não a mudarem de posição, dado que estando deitada ia ficar com feridas no corpo. "Rita, não interessa se ela terá feridas ou não. Ela já não vai melhorar." respondeu-me. A K. estava pronta para morrer, dizia que queria paz. Quando se despediram, a minha vizinha agradeceu à K. a sua amizade, ao que ela retorquiu "You're welcome." Riram-se porque era uma resposta tipicamente à K. Qualquer outra pessoa teria reciprocado o sentimento, mas ela não estava para essas coisas.

Quando conheci a K. e ela soube que era de Portugal, declarou-se a fã número um do António Lobo Antunes. Adorava os seus livros e já os tinha lido várias vezes--era uma leitora voraz. Também gostava muito de José Saramago, especialmente do livro "All the Names" ("Todos os Nomes"), que a vi mencionar a várias pessoas. Por sugestão dos leitores da DdD, recomendei-lhe os livros do Gonçalo M. Tavares que comprou imediatamente e leu. O último livro que lhe sugeri foi "Empty Wardrobes" (Os Armários Vazios") da Maria Judite de Carvalho: assim que lhe falei dele foi à Amazon e encomendou.

Eu e ela partilhamos o mesmo dia de aniversário, mas com 43 anos de diferença. No ano em que nasci, calhou o nosso aniversário ser à Quarta-feira, e eu apareci depois do almoço.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Claro que mudou

Tenho acompanhado com alguma surpresa a discussão em torno do estado da nação. Os diagnósticos feitos são os mesmos de sempre: (a) situação demográfica má e agora pior devido ao aumento da emigração; (b) carga fiscal elevada; (c) fraca produtividade do trabalho; e (d) salários baixos. A única coisa que mudou no discurso é que agora a taxa de desemprego está a níveis baixos. Como receita de crescimento, os de Esquerda propõem aumentar despesa em educação e saúde e os de Direita receitam uma descida de impostos, como se essas coisas tivessem valido ao país no passado.

Em Junho deste ano, a Universidade do Porto publicou um estudo acerca da economia não registada em Portugal, no qual se estimava que tivesse atingido 34,37% do PIB. Se isto é verdade então o problema não é tanto os impostos serem muito altos, mas sim haver uma parte significativa da população que consegue escapar a pagar impostos, logo a carga fiscal acaba por ser concentrada em menos contribuintes. A conclusão do estudo é curiosa: a solução está em

"que o governo tome medidas adequadas e abrangentes para tornar a economia oficial mais atrativa e competitiva – face à ENR, mas também face aos países concorrentes –, de um modo geral, para que as pessoas (trabalhadores e empresários) não tenham de recorrer à ENR para obter níveis de rendimento mais condignos ou até mesmo emigrar (deslocalizar, no caso das empresas)”, destaca Óscar Afonso, autor da investigação e diretor da FEP."

Fonte: UP

Ou seja, o crime compensa e quem não paga pode continuar a não pagar. Ainda por cima, o estado gastou mundos e fundos a desenvolver uma Autoridade Tributária das mais sofisticadas do mundo e, no final do dinheiro gasto, serve apenas para assediar quem já paga impostos. Ainda por cima, ironicamente os contribuintes é que suportaram o custo de um sistema que os persegue e que não consegue apanhar quem não paga. Ironicamente, se a economia paralela fosse declarada, Portugal teria um rácio de dívida pública-PIB mais baixo e haveria mais receitas fiscais para amortizar a dívida e até para melhorar a qualidade da saúde e da educação pública em Portugal. E sendo uma economia de menos risco, também poderia conseguir financiar-se a custos menores.

Onde é que está a economia paralela ou não registada e quem são as pessoas que afinal até são bastante produtivas para gerar mais de 34% do PIB registado? O estudo acha que é uma economia de vícios: corrupção, branqueamento de capitais, fraude, etc., mas acho este diagnóstico suspeito. Se eu tivesse que sugerir a área que aumentou bastante de actividade recentemente e que provavelmente uma parte significativa vive à margem, diria que é a economia digital, especialmente através das redes sociais, o que nos leva a outra ideia.

Portugal já tinha grande tendência para a economia dos biscates e agora, na era dos influencers, condutores de Uber, senhorios da Airbnb e do Instagram, personal coaches, etc., ainda tem mais e por isso o desemprego baixou -- não só em Portugal como noutros países. Não é verdade que a economia portuguesa não tenha mudado, mudou bastante e até se internacionalizou ainda mais. Basta participar nos workshops de influencers portugueses para encontrar pessoal a assistir que está espalhado por todo o mundo.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Os narizes grandes e tortos

O primeiro jantar de Dallas nas minhas últimas férias foi no restaurante Paradiso, no bairro de Bishop Arts. Sentámo-nos no bar no interior do restaurante, mas estava tão cheio que para além do barulho que nos forçava quase a gritar para manter uma conversa, não me senti muito à vontade na nossa era covídica. Quando chegou a altura para nos sentarmos na mesa de jantar, fui da opinião que devíamos ficar no jardim, que eu adoro. Ao final da tarde, as melgas estavam que nem melgas, mas assim que o sol se pôs desapareceram e deu para apreciar o quão agradável a noite estava.

Eramos quatro nessa noite porque uma não fez a viagem e a outra só chegaria no dia seguinte. A conversa estava animada e a minha companheira de quarto parecia super-feliz. Quando estava a ler o menu tirei-lhe uma foto de perfil porque gostei de a ver e também "tínhamos" de partilhar as fotos do que estavamos a fazer não só com as duas do grupo que não estavam lá, mas também com a minha antiga vizinha de Houston, a tal que tem 98 anos, e a sua melhor amiga que, por coincidência, faz anos no mesmo dia que eu.

Quando viu que lhe tirei a foto, ficou chateada. Não gosta que lhe tirem a foto porque fica mal em fotos e tem o nariz grande. Nunca me tinha apercebido que o nariz dela era grande, aliás achei que a foto tinha ficado muito gira. Dei às outras amigas para apreciar e toda a gente concordou que a foto estava boa, mas a amiga do nariz discordou e disse-me que eu não entendia porque era gira ("cute"), etc.

Então mencionei que o meu nariz não era simétrico porque as minhas narinas não têm o mesmo tamanho. Acrescentei que como eu, que me vejo ao espelho todos os dias, demorei quase 50 anos a aperceber-me que o meu próprio nariz tinha "problemas", deduzi que o risco dos outros repararem era muito pequeno. A minha conclusão é muito falaciosa porque, logo a seguir, uma das outras amigas disse que eu tinha o nariz torto. E realmente tenho o cano do nariz com um bocadinho mais de osso de um lado do que do outro. Com a constatação que o meu nariz é torto ficou a situação ultrapassada e pudemos finalmente ficar felizes com a foto que despoletou toda esta conversa.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Leituras de verão, etc.

Em Junho, quando fui passar uma semana ao Texas, calhou ouvir na ida o podcast The Literary Life, que tinha uma entrevista com a Anne Berest acerca do seu livro novo, de título "The Postcard", dado que a tradução americana acabou de ser publicada nos EUA. Adorei a entrevista e, quando passei por Houston, aproveitei para ir à Livraria Brazos, uma livraria independente, comprar uma cópia. A Anne Berest é de ascendência judia e o livro relata muito do que aconteceu à sua família durante a Segunda-Grande Guerra Mundial e o período que a antecedeu, mas também tem coisas mais recentes.

Não sei se posso classificar isto de coincidência, mas na Segunda-feira de Juneteenth, uma das minhas amigas insistiu em passar pelo Museu do Holocausto e Direitos Civis de Dallas. Apesar de eu já ter visitado várias vezes o Museu dos Direitos Civis de Memphis, que fica no Motel Lorraine, onde o Martin Luther King, Jr. foi assassinado, nunca tinha ido a um Museu do Holocausto para ver uma colecção permanente porque sempre achei que iria ser demasiado triste. Tinha ido só ao Museu do Holocausto de Houston quando mostraram o filme sobre o Aristides Sousa Mendes, mas só para ver o filme e a palestra que se seguiu. (Valia bem a pena fazer uma versão nova deste filme. É um projecto que calharia bem na Netflix.) Reticentemente, acedi a ir com a minha amiga.

O museu de Dallas está mais focado para a parte do que aconteceu politicamente e militarmente na Europa, numa visão mais macro. Não há muitas histórias de pessoas específicas, mas há uma instalação em que podemos entrevistar um sobrevivente dos campos de concentração através de um holograma da pessoa. Isto porque entevistaram os sobreviventes e fizeram 1000 perguntas a cada um. Depois quando fazemos uma pergunta, há um algoritmo que selecciona a parte do seu testemunho que serve melhor de resposta.

A sobrevivente que nos calhou era uma senhora que foi violoncelista e tinha tocado na orquestra do campo de concentração -- foi isso que a salvou. Tinha uma disposição muito pragmática e era uma pessoa muito directa. Uma das perguntas que lhe fizeram foi o que ela diria a pessoas que negam o holocausto e ela responde que é preciso ser muito estúpido para negar uma coisa que está tão bem documentada. Depois quando visitei Houston decidi ir ao Museu do Holocausto sozinha. Esse museu tem uma perspectiva mais micro e é dedicado à história oral dos sobreviventes que foram para Houston. Também tem uma pequena cabine onde se pode entrevistar um sobrevivente vendo-se a pessoa por um écran.

Não foi planeado, mas tenho dedicado este verão a este tema e terminei o livro da Anne Berest, que tem mais de 400 páginas, muito rapidamente. Talvez agora esteja mentalmente preparada para a obra de Eli Wiesel. E como não vos posso oferecer um livro, deixo aqui a entrevista da Anne Berest. Vale bastante a pena.

sábado, 8 de julho de 2023

A produtividade da função pública

Há uma semana, depois de várias tentativas, consegui submeter a minha declaração de IRS. Foi azar estar doente e ter adiado para o último dia e a AT decidir sugerir que eu precisava de uma chave digital, o que me destrambelhou por completo, quando me bastava a palavra-chave de acesso à conta da Autoridade Tributária, como tem sido em anos anteriores, para além de que Sextas-feiras são um dos dias mais ocupados no meu trabalho e eu trabalho até às 17 horas, que são 23 horas aí. Desde 2008 que cumpro as minhas obrigações fiscais a tempo e horas em Portugal e fico chateada quando falho nestas coisas.

sábado, 1 de julho de 2023

Um país com imensa piada

É Sexta-feira, dia 30 de Junho, o que quer dizer que é altura de entregar o IRS. Tinha planos de o fazer mais cedo, mas fiquei doente esta semana e atrasei-me, então deixei para o último dia. Só que não dá para entregar porque é necessário autenticar não sei o quê e ninguém me disse que tinha de tratar da autenticação.

Antes de chegar a essa parte, houve uma situação gira. Eu faço uma contribuição mensal para uma organização com fins não lucrativos em Portugal e essa contribuição é declarada à AT que a mete no anexo H. Quando tentei submeter a declaração de IRS disse-me que por eu não ser residente não tenho direito a essa dedução no IRS. Claro, direitos não tenho, apenas obrigações e agora nem essas me deixam satisfazer.

Fui ao meu email ver se tinha recebido alguma correspondência electrónica da Autoridade Tributária a aconselhar-me a tratar da autenticação, mas não encontrei nada. Também não recebi nada do meu procurador fiscal nesse sentido. Estranhei porque há uns anos era frequente receber correio electrónico da AT a mandar-me ir limpar as matas que eu pudesse ter em Portugal. Claro que não tinha matas nenhumas, mas a AT decidiu errar por excesso de zelo, não fosse eu esquecer-me das matas que não tinha.

Não pensem que sou completamente desleixada porque, em 2015, comprei uma maquineta para o meu cartão de cidadão, que nunca funcionou com o PIN que me deram. Para além de que era preciso um software que tinha de instalar no computador e isso já lá vão três computadores. Aliás, o computador onde estou a escrever agora nem sequer tem porto USB para ligar a dita máquina que não funciona.

Chateia-me muito que o governo português trate os portugueses tão mal, mas não é culpa do governo que haja um punhado de portugueses que vote em gente tão medíocre para os governar. Também fico chateada com os partidos da oposição que nem sequer chegam a ter votos para governar porque são incapazes de apresentar um plano eleitoral coerente e, sejamos honestos, quando os que lá estão são tão maus, não é muito difícil pensar em como fazer melhor. E fazer melhor não é andar a assediar minorias, nem a imaginar que mais causas sociais estão nos extremos que possam ser adoptadas. Mas estou a digressionar.

Não é muito claro em que século é que Portugal está. Por um lado, tem um sistema fiscal todo XPTO a fazer de conta que vive no século XXI, mas para se tratar de alguma coisa, é preciso deslocarmo-nos presencialmente, como se ainda vivessemos nos séculos XIX e XX. A modos que eu, supostamente cidadã portuguesa, não tenho os documentos em dia porque tenho de ir presencialmente a um consulado, sendo que o que trata de mim está a mais de 12 horas de carro. Mesmo que queira lá ir, é preciso marcar vez com muita antecedência porque não há empregados suficientes para dar vazão ao serviço.

Há anos, o PR Marcelo disse que o governo tinha de normalizar a situação dos emigrantes para exercermos a nossa cidadania e facilitar a participação no processo democrático português, mas desde então nenhum progresso foi feito, ou seja, os nossos direitos constitucionais foram revogados. Isto acontecer sob um PR que foi professor de Direito Constitucional não deixa de ter imensa piada.

P.S. Voltei a tentar o processo de autenticação, mas parece que não existo para ser autenticada. Nesse caso, dá para eu não pagar IRS, nem IMI? Piadas à parte, não sei como vou descalçar esta bota. O melhor é enviar um email aos senhores autoritários da tributação.

domingo, 25 de junho de 2023

Barco de Esperança

Reencontro-me a arrumar a biblioteca que recebi do meu pai. Não tinha acabado na tentativa anterior, porque não tinha paredes suficientes para tantas estantes de que precisava. Vai daí, optei por uma solução radical, dividir uma divisão grande em duas recorrendo a estantes feitas à medida que fazem de parede divisória. Livros de um lado e do outro.
E lá estou eu de volta às memórias que alguns livros me trazem. Entre as dezenas ou centenas de livros que hoje passaram pela minha mão, estava a “Filha do Labão” de Tomás da Fonseca. Abro o livro e percebo que o meu pai o leu, e usou, enquanto combatia na Guerra da Guiné. Com certeza que à falta de um caderninho de apontamentos, o meu pai recorreu à primeira folha do livro, que estava em branco, para escrever a primeira versão de um poema. O Barco da Esperança Assisti a este método algumas vezes: vinha-lhe um poema à cabeça e tinha logo de tomar nota. Faltava-lhe confiança na memória. Muitas vezes o vi fazer isso em guardanapos nos cafés, ou em toalhas de mesa de papel. 
Aquela versão de 6 de agosto de 1965, em Bissau, terá sido a primeira versão. Tem algumas emendas e acaba por ser razoavelmente diferente do poema que acabou por ser publicado, já mais depurado e trabalhado, e que reproduzo a seguir.

A primeira vez que tive consciência deste seu processo mental foi numas férias na Praia de Mira. Passeávamos à beira mar, com o meu pai bastante calado, muitas vezes parecendo contar pelos dedos. Contava as sílabas métricas dos versos dos poemas que ia fazendo. Quando alcançava um resultado digno de impressão, perguntava-me se queria um gelado e íamos ao café mais próximo comprá-lo, onde pedia por uma esferográfica e uma folha de papel, às vezes, o tal guardanapo, para anotar a sua criação. 


quarta-feira, 3 de maio de 2023

Um Narciso desdentado

Pela terceira vez desde que saí de Portugal, já não vou aí há quase cinco anos. A última vez que aí estive foi em Junho de 2018. Ultimamente tenho pensado que preciso de aí, mas o caos em que o país se encontra é bastante desmotivador. A seguir ao 25 de Abril de 1974, quando Portugal estava no limbo, Mário Soares era considerado "the only game in town" na óptica de Frank Carlucci, mas à medida que Soares envelheceu, o PS foi-se deteriorando. E como o PS governa 75% do período do século XXI, Portugla vai pelo mesmo caminho.

Talvez eu esteja enganadam mas penso que dificilmente Mário Soares se reveria na máquina de poder em que o partido se tornou. Apesar de tudo, Mário Soares era um homem de ideais. O PS de hoje nem serve para ideais, nem sequer para ideias. E, prova que caiu um santo do altar, chego à conclusão que até José Sócrates, um enorme canalha e aldrabão, foi melhor Primeiro-Ministro do que António Costa.

Sócrates falhou na execução, certamente de propósito, mas não se pode dizer que o país não vivesse uma época em que se notava que havia um poder executivo com ideias que, se bem executadas, poderiam vir a dar frutos. O PS de hoje não tem isso, existe apenas para servir os interesses de quem está filiado no partido. Não seria muito díficil fazer oposição a um partido que desceu a tão baixo nível, no entanto não há oposição em Portugal.

Mesmo quando os partidos falham, a CRP contempla o papel de um Presidente que pode intervir no sentido de evitar que o país vá por um caminho errado. Pensar-se-ia que, estando Portugal no imbróglio em que está, com a qualidade da democracia em queda livre e a rápida deterioração das instituições, ter uma pessoa na Presidência da República que foi professor de Direito Constitucional seria uma previdência do destino: quem melhor para garantir que a Constituição e os interesses da República seriam salvaguardados?

Em vez disso, MRS prefere o papel de Narciso que se entretém a olhar para a sua figura, a admirar a sua beleza, à medida que se tornou desdentado e muito àquem de conseguir roer a noz que lhe é servida. Agora está bem lixado se não se apressar. Para além do país estar completamente em (des)governo, as pessoas que levaram a República a tal estado estão no processo de rever a Constiuição, o tal documento que dá a MRS os poderes que ele não quer usar. Por quanto tempo os terá?

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Ser livre é...

Antes da mini-crise financeira que assolou os EUA e a Europa há um mês, na conversa semanal com as minhas amigas americanas mencionei que não iria votar em Biden uma segunda vez (talvez se a alternativa a Biden for Trump reconsidere, mas acho improvável que Trump consiga avançar muito). Caiu o Carmo e a Trindade em cima de mim. O Biden é tão bom presidente, está tudo óptimo, o que é que eu poderia apontar de mal ao homem, que na ideia delas era o melhor para o país...

Se o país depende do futuro de um fulano com 80 anos, o país está tramado; se um país com 330 milhões de pessoas não tem centenas, e talvez milhares, que possam ser tão ou melhores do que Biden, então o país entra em colapso daqui a cinco anos porque ele só teria no máximo mais um mandato. Mas deixemos a estatística de lado e passemos ao meu rol de queixas.

A primeira é que não me esqueci que votei nele contrariada porque preferia que tivesse sido outro candidato, ou melhor, eu quero mesmo é uma candidata. Mas as minhas amigas, que são muito feministas e anti-patriarcado, advertem-me que uma mulher não é viável porque não é elegível e o que importa é ganhar. Para mim, ser contra o patriarcado e preferir o Biden a qualquer outro candidado é incongruente.

Quanto ao desempenho dele como presidente, acho-o melhor do que o Trump, mas mesmo assim mau. A saída do Afeganistão foi desastrosa. O pacote fiscal para lidar com a pandemia contribuiu para a aceleração da inflação e o aumento da dívida pública. A questão do acesso das mulheres a cuidados reprodutivos é pior agora do que com o Trump, apesar de Biden ter tido maioria no Congresso--não me venham falar do SCOTUS porque se as coisas andam no SCOTUS é porque os Democratas se recusaram a legislar sempre que tiveram maioria absoluta. A economia tem tido um bom desempenho, mas não considero que seja devido às políticas de Biden. Para além disso, a economia de Trump também foi boa antes da pandemia e a recuperação da pandemia iniciou-se com Trump, Biden apenas apanhou um processo em andamento.

Eu percebo que haja pessoas que olhem para a política e achem que a melhor maneira de servir o país onde vivem é votar sempre no mesmo partido ou nos canditados sugeridos pelo partido, mas na minha cabeça querer que o mesmo partido tenha sempre o poder não é democracia, é ditadura partidária.

Evitei o Zoom semanal durante umas semanas e, quando regressei a conversa tinha mudado para as questões de censura, em especial por causa de um livro que tinha sido banido em algumas escolas. Era uma questão de liberdade de expressão, dizia uma das minhas amigas. Eu achei que não porque havia conteúdo que seria razoável não ter nas escolas, logo há excepções à liberdade de expressão. E depois, o livro foi publicado e pode ser comprado, logo a liberdade de expressão do autor foi respeitada. Enquanto em tentava argumentar que não achava a liberdade de expressão um bom ataque ao sucedido, a minha amiga foi-se embora da conversa.

Afinal, quem sou eu para pensar que sou livre de exprimir a minha opinião e continuar a ter uma audiência?

domingo, 23 de abril de 2023

Ainda o Boaventura

Durante a minha licenciatura em Economia na FEUC, o nome e a pessoa de Boaventura de Sousa Santos apareceu frequentemente. Nos idos anos 90, ele era capaz de ser a estrela não só em termos de sucesso académico, como didático, dado que os seus estudantes gostavam bastante das suas aulas. Houve algumas vezes, em que vi salas de aulas que tinham as mesas fora do sítio, tendo sido configuradas em forma de O quadrado, e soube que tinha sido por causa dele. A ideia, explicou-me uma aluna, era ter uma forma mais egalitária de ensinar, em que o professor não fosse colocado num pedestal a olhar para os alunos sentados. Nós de economia, que tinhamos professores que nos ensinavam de forma tradicional, eramos uns seres menores. Nunca ouvi ninguém dizer que ele se aproveitava das alunas então.

Recordo-me de uma vez ver o BSS passar pela faculdade todo vestido em couro preto, até a boina. Era über-cool, o homem, naquela altura com uns 50 anos. O texto dele "Um Discurso sobre as Ciências Sociais" fazia parte do nosso currículo de Introdução às Ciências Sociais. Infelizmente, nunca consegui ler aquilo. Sempre que tentei, mal passei das primeiras páginas e até é uma coisa que eu tento ler de vez em quando porque trouxe o livro para cá, mas não dá. Quanto às mesas e cadeiras, tê-las alinhadas à frente de um professor que nos ensina de pé, dá perfeitamente para eu aprender. Aliás, nem eu queria ser igual aos meus professores, prefiro pensar que naquela altura eles estavam bastante acima de mim e por isso havia bastante a aprender deles. Mas agora com estas acusações de assédio, não consigo tirar da cabeça que se calhar ele metia as mesas assim para ver as pernas da alunas, dado que a maioria eram mulheres.

Que estas acusações viessem agora à luz não me choca, mas o que me fez cair o queixo foi a carta que ele escreveu, a tal de sete páginas, onde na primeira menciona o "mau comportamento" de uma das investigadoras, que identifica pelo nome. Os processos disciplinares são coisas internas de uma organização e não são informação pública, até porque, por poderem manchar a reputação profissional de alguém e terem consequências a longo prazo, devem ser matidos em sigilo para não dar aso a processos em tribunal. Um processo disciplinar não é uma situação equilibrada, pois a pessoa que está a ser sujeita ao mesmo tem muito menos poder do que a organização. O comportamento de BSS demonstra mesmo isso, ele acha que pode e manda e faz o que lhe dá na telha.

O único factor redentivo do homem é que as suas alunas finalmente interiorizaram o que ele ensinou e fizeram-lhe frente.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Entretenimento

Interrompo o entretenimento nacional de decidir onde será o próximo aeroporto através de consulta pública -- ou será concurso de popularidade do governo?, talvez um ersatz de eleições dado que hoje em dia as sondagens já não são tão fidedignas e, para além disso, já temos vasta experiência de que estudos de benefício-custo para informar obras públicas durante governos socialistas valem menos do que papel higiénico -- para vos informar de uma mini-série muito interessante que está disponível na Netflix, que se chama Transatlantic. O tema é o trabalho de Varian Fry em França para salvar pessoas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Foi através dele que grandes personalidades intelectuais conseguiram escapar aos nazis, como André Breton, Max Ernst, Hannah Arendt, Marc Chagall, etc.

É mesmo entretenimento, dado que a história é ficionalizada, apesar de ter algumas partes que são baseadas em factos históricos e as personagens serem baseadas em pessoas reais, mas as relações entre elas serem ficionalizadas. A Netflix disponibilizou um pequeno documentário sobre a produção da série que vale a pena ver também.

Alguns pontos interessantes é que a série critica as grandes potências de então e faz alguma equivalência com o que se passa actualmente em termos de política de refugiados na Europa e no mundo. Depois eu não conhecia a história de Varian Fry, nem de Mary Jayne Gold, mas já estive a ver uma entrevista dela para a história oral do U.S. Holocaust Memorial Museum e fiquei mais educada acerca do assunto.

Finalmente, Lisboa e Portugal saem com uma reputação bastante boa, dado que Portugal não só não é criticado, como é visto como um porto seguro numa altura bastante conturbada da história mundial. Claro que nós portugueses sabemos a verdade de que o regime tinha bastante simpatia para com os alemães. Que o diga a família de Aristide de Sousa Mendes, cuja história daria uma óptima série da Netflix, apesar de já existir um filme menor sobre o assunto. Estima-se que Aristides de Sousa Mendes tenha salvado umas 30 mil almas. Varian Fry salvou cerca de 2000 e Oskar Schindler, cuja história inspirou o filme do Spielberg, umas 1300. Parece que o tratamento cinematográfico é inversamente proporcional ao número de sobreviventes.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A próxima bazuca?

A propósito da compra do Credit Suisse por parte do UBS, o Matt Levine, na Bloomberg (este link funciona por sete dias; depois disso, só com assinatura da Bloomberg), escreveu uma peça fantástica onde explica como funcionam os bancos, o que valem, quem são os credores, os accionistas, etc. Vale a pena ler por pelo menos duas razões: a primeira é que o artigo refere a venda da Credit Suisse e os portugueses são accionistas do Credit Suisse porque uma pequena parte do fundo da Segurança Social estava lá investido e a segunda para se entender melhor o que pode correr mal com a banca portuguesa à medida que as taxas de juro sobem.

Relativamente ao investimento da Segurança Social, o Credit Suisse já andava metido em escandâlos desde 2014, logo não se compreende como é que o estado português achou boa ideia ter lá dinheiro. A Ministra ainda sacode a água do capote, dizendo que era exposição mínima ou ínfima, mas para um país com o perfil etário de Portugal em que o Fundo da Segurança Social é claramente insustentável, dar-se ao luxo de investir numa organização que está em apuros e arriscar perder o que quer que seja é sinal de negligência e má gestão.

Note-se que, no final do ano passado, especulou-se que o Credit Suisse estivesse à beira do colapso e, no mês passado, o banco anunciou a maior perda anual desde 2008, logo o estado teve tempo suficiente para rever a sua alocação. Já agora, quantos mais investimentos haverá no fundo de pensões que também são considerados de exposição ínfima, mas que têm risco considerável? (Eu considero risco considerável qualquer empresa que apareça nas notícias acusada de má gestão e que até seja multada por má gestão. Aliás, como é que se pensa que entidades que sabemos que estão a ser mal-geridas sejam um investimento diversificador de risco, como defende a Ministra?)

Quanto à banca portuguesa, com a inflação alta, não tarda as pessoas começarem a procurar alternativas onde meter o dinheiro. Em 1984, quando a inflação atingiu os 30%, tivemos o escândalo da D. Branca, a "banqueira do povo", será que foi coincidência? Mesmo que não suceda um esquema de Ponzi, é bom que o Banco de Portugal faça umas análises de sensibilidade para ver outras coisas que podem correr mal.

Por exemplo, imagine-se que alguns bancos em Portugal decidem pagar uma boa taxa de juro e os portugueses começam a tirar dinheiro de outros bancos em que têm contas que não pagam juros para ir para as que pagam, será que os bancos mais fracos têm margem para perder um montante significativo de depósitos? Em 2021, as remessas dos emigrantes representavam 1,5% do PIB português. Se os emigrantes decidirem enviar significativamente menos em remessas, será que afecta a liquidez de algum banco português? Depois há também a questão da qualidade do portefólio de empréstimos do banco, especialmente se há empréstimos com taxas de juro variáveis, qual a percentagem de empréstimos que pode falhar até um banco ficar em sarilhos? Qual a exposição da banca portuguesa ao mercado obrigacionista ou a outros activos de risco? E mais cenários haverá que merecem ser investigados.

Não é certo que estejamos à beira de uma crise, mas seria bom que houvesse alguma preparação para a evitar--aliás, seria bom que Portugal não tivesse mais uma crise. Entre a emigração e a baixa natalidade, o país já tem pregos suficientes no caixão. Ou será que a estratégia continua a de sempre: esperar que as coisas corram mal para a UE enviar outra bazuca?

quarta-feira, 22 de março de 2023

Toda a gente tem culpa

No espaço de duas semanas, quatro bancos necessitaram de intervenções. Primeiro foi o Silvergate Capital Corp. no dia 8 de Março, um banco com fortes ligações aos mercados das criptomoedas que anunciou que ia desfazer-se e liquidar o banco. Depois o Sillicon Valley Bank decidiu que era boa ideia angariar capital com uma oferta de acções e vendendo grande parte das obrigações que tinha disponível para venda, o que causou uma corrida ao banco e o colapso do mesmo dois dias depois, na Sexta-feira, 10 de Março. O terceiro banco em apuros foi o First Republic Bank, cujas acções cairam a pique na Segunda-feira. Para evitar a sua queda e evitar um bail-out à custa dos contribuintes, orquestrou-se uma intervenção de 12 bancos grandes americanos que depositaram no FRB $30 mil milhões. Concomitantemente, do outro lado do Atlântico, o Credit Suisse ia ao charco.

Agora que o leite se entornou, muita gente aponta o dedo à Administração Trump por ter passado legislação que permitiu ao SVB crescer sem estar sujeito a supervisão mais apertada, mas durante dois anos Biden teve o benefício de um Congresso democrata e nada fez para alterar o que Trump fez. Também não é claro que mesmo com supervisão mais apertada o resultado fosse diferente porque a Reserva Federal identificou o problema do SVB há mais de um ano e fez recomendações ao banco. Outra candidada a culpas é mesmo a Reserva Federal que dizem aumentou as taxas de juro muito rapidamente, o que depreciou o preço das obrigações, só que a gerência do SVB foi negligente nesse aspecto e não fizeram o hedging do seu portefólio obrigacionaista.

Eu diria que a Administração Biden também foi responsável porque, por exemplo, emitiu obrigações com juros bastante atraentes. Há quase um ano, as iBonds pagavam 9,62% nos primeiros seis meses e, quando o NYT escreveu uma peça onde mecionava isso, a página de Internet da Tesouraria americana foi abaixo porque um monte de gente foi emprestar dinheiro ao governo. Em Outubro, voltou a ir abaixo no último dia para comprar obrigações que pagavam os tais 9,62%, dado que as seguintes só pagam 6,89%. Eu própria, ainda antes do primeiro crash da página, tirei $10 mil da minha conta à ordem num banco regional e meti em iBonds e só foi essa quantia porque é o limite que se pode comprar anualmente. Ou seja, sou culpada.

Mas a minha culpa não fica por aí. Uns meses mais tarde, o Capital One, onde também tenho conta à ordem e que faz parte do grupo de bancos grandes que está sob uma supervisão mais apertada, anunciou que estava a oferecer uma conta a prazo que pagava 3% ao ano (agora já paga 3,4%) e que, se nós transferissemos dinheiro de uma outra instituição para essa conta, davam-nos um bónus de $100 ao fim de três meses para além dos juros. Que fiz eu então? Transferi mais $10 mil da minha conta à ordem no banco regional para a conta a prazo que abri no Capital One. Em minha defesa, ainda tentei ver se o banco regional tinha alguma conta a prazo atractiva, mas não diziam nada na página de Internet, logo abri no Capital One. Obviamente que tanto o banco regional como o Capital One têm culpa da situação. E não satisfeita com a minha culpabilidade ainda fui mais longe e reduzi a parte do meu salário que é depositada na minha conta do banco regional e meti mais na conta à ordem do Capital One para poder transferir dinheiro para a conta a prazo regularmente.

Está-se a ver que a cadeia de incentivos é tal que seria difícil que os bancos que não pagam juros escapassem a qualquer perturbação e, como o mercado bancário americano é bastante dinâmico e há concorrência, é natural que acabássemos na situação em que estamos.

sábado, 18 de março de 2023

Inflação alimentar

A propósito da inflação alimentar, há vários pontos que me parecem pertinentes. O primeiro é que as margens nas grandes superfícies não são uniformes, nem sequer as lojas actualizam os preços tão frequentemente quanto a variação real dos preços de mercado. Nos panfletos de promoções semanais, é natural que esses preços sejam tão baixos que a loja perca dinheiro, só que o objectivo das promoções é cativar o cliente para que ele visite a loja, compre um leque variado de produtos e a loja acabe por fazer dinheiro no volume final, em vez de em todos os produtos. Isto leva a que se a loja perde dinheiro em alguns produtos, é porque o tem de fazer em outros, logo é natural que as margens sejam mais elevadas em algumas coisas.

Depois há a considerar que os produtos alimentares pouco processados são onde as grandes superfícies ganham menos dinheiro, as margens maiores são obtidas nos produtos que estão mais distantes do seu estado natural, por exemplo, coisas como biscoitos e iogurtes com sabores e granola de lado têm uma margem maior do que farinha, açucar, leite, e fruta. Uma sopa enlatada também tem uma margem maior do que os ingredientes que entram na sopa. Parte da razão é que os ingredientes frescos que se compram no supermercado são muito mais bonitos e uniformes do que os ingredientes que entram na comida processada e isso tem um custo. (As pessoas devem estar familiarizadas com este conceito dado o sucesso de a Fruta Feia, que tem preços mais em conta. A razão não é apenas estética, mas de necessidade de uniformidade para a automatização da cadeia de processamento).

Nos produtos de marca (não-branca), a grande superfície tem de ter preços consistentes com os preços da marca, logo quem determina os preços ao consumidor são as Nestlés, Yoplait (Groupe SODIAAL), etc. Nestes produtos, a grande superfície tem poder de negociação na margem que faz, até porque muitas vezes nem compra o produto, apenas arrenda o espaço na loja à marca. Já nas marcas brancas, a grande superfície controla o preço e esses preços são efectivamente mais baixos do que os de outras marcas, logo não se pode acusar as grandes superficíes de não velarem pelos interesses dos clientes.

O ano que passou é um bocado sui generis e não faz sentido passar legislação ou sequer tirar ilações de uma situação que é quase única. Temos também de ter em conta que muitas das empresas a retalho têm o papel de suavizar os preços ao consumidor, ou seja, quando os custos aumentam/sobem rapidamente, os preços a retalho aumentam/descem mais suavemente. Este efeito resulta da própria gestão da companhia, pois os contratos são negociados com antecedência e muitas vezes os custos são "hedged" para a empresa não estar sujeita aos preços das caudas da distribuição (ou seja, preços muito altos ou preços muito baixos).

Basicamente, mesmo que os preços desçam bruscamente no mercado, não é necessariamente verdade que as empresas beneficiem dessa descida porque quando contrataram os fornecimentos podem ter negociado preços mais altos do que os actuais, pois na altura da negociação era incerto se os preços iam continuar a subir ou iriam descer.

Finalmente, há a questão fiscal. Portugal tem impostos bastante altos, especialmente em combustíveis, que são bastante importantes para a estrutura de custos das empresas de venda a retalho, logo se o estado está a arrecadar mais em impostos esses custos irão ter de ser passados para o consumidor de qualquer forma.

Mas nem tudo é mau em Portugal porque, na questão de compras de frescos, os portugueses têm um leque de escolha, pois ainda há bastantes mercados e praças locais que oferecem preços variados e até a possibilidade de negociação. Ou seja, o mais provável é que a inflação alimentar até seja menor do que os dados do estado indicam.

terça-feira, 14 de março de 2023

À sombra da palmeira

Depois de umas semanas bastante intensas no trabalho, lá voei rumo ao Dubai para a reunião de estratégia. A viagem, entre os três vôos e as escalas, durou umas 24 horas e é um bastante cansativa. A primeira noite ainda tive sorte e dormi bem porque estava tão cansada, mas à segunda não escapei e não consegui dormir quase nada. Ultimamente, quando tenho insónia, costumo fazer o protocolo de Non-Sleep Deep Relaxation do Andrew Huberman e costuma ajudar-me bastante. Mesmo assim, foi duro estar mais de 36 horas sem dormir e ter de fazer apresentações e orientar uma reunião. Mas tudo é temporário e já está ultrapassado, apesar de eu ainda não ter a rotina normalizada porque cheguei a casa já quase no final do Domingo.

Tive algum receio de ir ao Dubai porque ouvem-se tantas histórias que correm mal por aquela parte do mundo (como se a minha não as tivesse e a rodos). A realidade surpreendeu-me bastante, pois a zona onde estive pareceu-me mais americana do que Miami. Fiquei em Palm Jumeirah e toda a gente falava inglês. Nos restaurantes, os menus também estavam todos em inglês e os empregados iniciavam conversa em inglês -- não vi nenhum que fosse local. A minha experiência em Miami é que o normal é iniciarem conversa connosco em espanhol em sítios como o aeroporto e restaurantes.

Como foi a minha primeira visita não me aventurei muito, nem sequer tive muito tempo para explorar, pois os dias estavam bastante preenchidos com actividades do trabalho. Um dos meus colegas dizia-me que eu devia ir ao Centro Comercial dos Emirados, mas nem considerei ir porque muitas das lojas são bastante ocidentais e encontram-se também nos EUA. A mim agradar-me ia visitar a zona mais tradicional, mas sendo eu mulher não achei prudente sair da zona turística e aventurar-me sozinha. Talvez um dia tenha esse conforto, mas por enquanto não.

Na viagem de regresso para o aeroporto apanhei um condutor do Paquistão, que me pareceu boa pessoa. Perguntou-me se eu me importava que ele ligasse a música, mas ao fim de alguns minutos desligou-a porque eu comecei a falar com ele. Já está no Dubai há 10 anos porque precisa de dinheiro para pagar a educação dos filhos. A filha mais velha vai ser médica e o filho também vai tirar um bom curso. Disse-me que muitos pais no Paquistão se preocupam em deixar propriedades para os filhos, mas na opinião dele a melhor propriedade que se pode dar é a educação. Depois falou na fraca qualidade do governo do Paquistão, na corrupção, na falta de oportunidades, mas quando os filhos tiverem terminado o curso ele planeia regressar.

Usei máscara durante a viagem de avião e em partes dos aeroportos, sempre que achei que havia muitas pessoas juntas. No regresso, quando cheguei ao aeroporto de Newark, depois do processamento de imigração, encontrei uma equipa da Concentric by Gingko que estava a recolher amostras para analisar se a pessoa tinha novas variantes de Covid-19 ou outros virus/bacterias. Algumas das amostras eram depois enviados para o CDC, para serem analisadas mais aprofundadamente. Em troca, ofereciam uma embalagem com um teste de Covid-19 para levarmos para casa. Por acaso fui selecionada para participar no estudo e suponho que eu andar de máscara pelo aeroporto deve ter tido algum peso em me seleccionarem, dado que muito poucas pessoas andavam de máscara. Ainda por cima, eu tinha as vacinas todas em dia, logo sou um bom espécime de se estudar.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Comparações

Diziam-me no outro dia que não fazia sentido comparar os EUA com Portugal porque eram realidades completamente diferentes. Não me posso considerar uma especialista em português, até porque já saí de Portugal há 25 anos e já aí não vou há quase cinco, logo a língua materna sofre, mas não me parece que faça sentido comparar coisas iguais, logo uma comparação é, por definição, algo que se faz a coisas diferentes. Depois, há também o outro lado da coisa e que é o de não haver realidades iguais, logo todas as realidades são diferentes, algumas mais do que outras.

Tenho andado a pensar nisto porque calhou ver vários portugueses a pedir informações acerca de como emigrar para os EUA e outros tantos já nos EUA a responder. Enquanto que os que querem sair têm uma certa preocupação com as condições climáticas e querem um sítio de clima ameno, os que já saíram aconselhavam sítios em que os impostos eram baixos, quer dizer, estados onde não havia imposto estadual sobre o rendimento, dado que imposto federal há em todo o lado. Achei o contraste bastante interessante.

A propósito da comparação de países, tenho empregados domésticos novos. As duas senhoras que antes cá trabalhavam casaram-se e uma até está grávida. Esta deixou de fazer limpezas por causa do bebé, e a outra decidiu apenas organizar as limpezas e também ajuda o marido que tem uma companhia de ar condicionados, se percebi bem. Então os empregados novos é um casal, ele e ela e são mesmo casados. Vieram da Colômbia no ano passado e trabalham para a outra senhora que cá costumava vir, que também é de lá. Nenhum dos três fala inglês.

Na Colômbia, este casal trabalhava para um governo local, mas mudou o partido no poder e eles foram despedidos. Para se ter um bom emprego, tem de se pertencer ao partido certo, disseram-me, o que me recordou de uma amiga portuguesa que, há dias, me dizia que foi a entrevistas de emprego em Portugal em que lhe perguntaram de que partido era. Fiquei chocada, é uma coisa que eu pensei já não se fazia em Portugal depois da Revolução. Afinal, mudaram-se os tempos, mas não as vontades.

Hoje perguntei aos empregados novos se gostavam de estar nos EUA e disseram-me que sim, que havia muitas oportunidades, o que não deixo de pensar ser irónico. A senhora andou na universidade e estudou Administração, mas o que a apaixona mesmo é contabilidade e trabalhar em Excel: gosta muito de tabelas dinâmicas, contou-me ela, que deve ser o que nós em inglês chamamos de "pivot tables" em Excel. Agora que penso nisso, se ela tivesse computador, podia aprender a usar o Tableau. Tenho de lhe dizer; pode ser que um dia lhe sirva de alguma coisa.

Descreveram-me o que era viver na Colômbia, para além de ser preciso ser do partido certo, há cunhas e subornos. Ah, percebi, é como Portugal. A grande diferença é que é mais violento do que Portugal. Os colombianos têm ideia que os europeus são todos muito civilizados e bem comportados, mas tive de lhes dizer que o sul da Europa é bastante diferente do norte. No sul também há cunhas, favores, corrupção, etc. É parecido com a América Latina, que, por alguma razão, fala espanhol e português.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Casas baratas e país às baratas

Há várias razões para o imobiliário em Portugal ter ficado bastante caro. Do lado da procura, podemos mencionar as seguintes: depois da crise da dívida soberana e como forma de estabilizar a banca portuguesa e conseguir fundos para a economia, o governo português decidiu promover a compra de casas em Portugal por parte da comunidade emigrante. O aparecimento do Airbnb e a dinamização de grupos de emigrantes portugueses no Facebook também incentivou a aquisição e a a renovação de casas como oportunidade de negócio tanto por emigrantes como por residentes em Portugal.

O fenómeno dos emigrantes portugueses gastarem dinheiro em casas em Portugal não é novo, já tinha acontecido durante o Estado Novo, só que enquando que os emigrantes de outrora construiam casas nas aldeias onde tinham as suas famílias, hoje em dia os emigrantes procuram casa em áreas mais urbanas e com boas oportunidades de lazer, ou seja, há uma concentração de procura em sítios como Lisboa e no Porto. Suspeito que o número de vistos Gold deve ter tido menos impacto no imobiliário do que o da comunidade emigrante. Dos meus amigos portugueses nos EUA, vários têm casa e nenhum a tem arrendada a outras pessoas. Recentemente, também houve políticas de incentivo ao retorno de emigrantes para Portugal e estas pessoas não foram para aí para ter menos poder de compra do que os residentes.

Depois há também os imigrantes que procuram Portugal como um sítio onde conseguir melhor qualidade de vida do que nos países de origem. As redes sociais e a imprensa internacional estão cheias de páginas a promover Portugal junto dos estrangeiros não só como destino de férias, mas também como sítio onde se viver. Mesmo sem a promoção oficial, é natural que Portugal não escapasse a esta tendência que parece ser internacional. Por exemplo, o Cheap Old Houses começou sendo uma página no Instagram onde se fazia publicidade a casas americanas com interesse arquitectónico a precisarem de ser renovadas, mas expandiu a geografia de interesee e agora tem uma lista internacional de casas baratas e até tem direito a programa de TV na HGTV. Há muitas contas de expatriados que promovem o seu estilo de vida noutros países: a Jamie Beck, americana, mudou-se para Provence, na França; a Stephanie Jarvis, inglesa, comprou um castelo a precisar de obras na França e criou um canal no YouTube para financiar o trabalho; a Gayle McNeill, inglesa, vendeu a sua casa em Inglaterra e mudou-se para o Algarve com o marido. E por aí fora...

Do lado da oferta, não se pode dizer que haja falta de casas em Portugal, dado que, segundo um estudo da OCDE, Portugal até tem mais casas per capita do que a maioria de países da OCDE, dado que está em quarto lugar, atrás da Grécia, França, e Itália. No entanto, talvez as casas que existem não se adequem às necessidades de quem procura casa. Os segmentos da população que têm maior dificuldade em mudar de/encontrar casa são as pessoas de mais baixos rendimentos, inclusive os reformados e os jovens que iniciam a vida profissional. Para estes, casas mais pequenas e de menor custo poderiam ajudar a resolver o problema. Talvez interessasse ao estado promover a renovação de prédios devolutos, mas aproveitando-os para fazer apartamentos mais pequenos, quiçá estúdios, que permitam aumentar a densidade populacional, sem sacrificar a privacidade.

Há também ideias que estão a ser implementadas que podiam ser exploradas a maior escala. Por exemplo, no Porto há o Programa Aconchego que emparelha jovens estudantes universitários que precisam de casa com pessoas de idade que vivem em casas com espaço para os acolher (tenho uma amiga neste programa). E porque não ter um programa deste género que emparelha reformados com casa que gostariam de companhia com reformados sem casa que não se importassem em dar companhia?

Outra ideia para aumentar a oferta de casas é facilitar a renovação de casas já existentes que precisem de obras, talvez com crédito com boas condições, ou até o estado a financiar as obras com a condição da casa ser arrendada a pessoas de rendimentos mais baixos. Frequentemente o licenciamento para obras é um dos entraves, logo as autoridades locais podiam rever as regras para agilizar o processo ou até educar a população acerca das regras para que a pessoa não gaste o dinheiro em obras e depois não passa a inspeção.

A diversificação geográfica da actividade económica também pode ser usada para adequar a oferta e a procura. Hoje em dia com a Internet não se justifica que tantos empregos ainda estejam localizados em Lisboa e Porto, com o resto do país subaproveitado.

Quanto à ideia de se construir mais casas, acho má. Por um lado, com o envelhecimento da população e a baixa da natalidade, não faz sentido estar a gastar recursos em construir casas, a não ser que o plano seja mudar toda a gente que vive em zonas rurais para Lisboa e Porto e deixa-se o resto do país às moscas. Seria muito mais produtivo para o país se o financiamento fosse usado para construir negócios que gerassem empregos e dinamizassem outras regiões do país, em vez de mais casas. Até porque dificilmente quem tem dificuldade em encontrar casa agora tenha recursos para se mudar para uma casa acabada de construir, ainda por cima com o custo de construção a aumentar devido à inflação.

Mas pode ser que o problema se resolva a si próprio. Nos últimos dias apareceram vários portugueses num dos meus grupos de Facebook a perguntar como emigrar para os EUA. Ele é tecnicos de HVAC, licenciados em Desporto, soldadores, motoristas de pesados, geógrafos,... Daqui a nada, Portugal fica só com baratas e pessoal dos partidos.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Uma lata de tinta ou uma hora com um advogado

Estava a ouvir o LA-C a ser entrevistado na SIC e ele sugeriu que se fizesse um inquérito acerca do porquê de proprietários não colocarem as casas a arrendar. Como eu sou senhoria em Portugal, e também já fui nos EUA, posso falar da minha experiência -- aliás já uma vez aqui vos mostrei a diferença de como o meu apartamento português é tratado em Portugal e nos EUA para efeitos de impostos: nos EUA essa propriedade tem uma perda e eu não pago impostos de rendimento sobre ela, enquanto que em Portugal, o estado considera que a propriedade tem lucro e nos últimos dois anos paguei mais de 400 euros em IRS anualmente. No meu caso, no curto prazo é irracional eu ter o meu apartamento em Portugal arrendado porque a renda não cobre as minhas despesas, mas note-se que eu ainda estou a pagar a hipoteca e considero isso parte das despesas.

Quais os parâmetros da minha propriedade? Eu comprei por 98 mil euros em 2006 porque os meus pais queriam que eu tivesse uma casa em Portugal. Depois de os meus pais deixarem de lá viver, decidi arrendar. Na altura, a renda era de 250 euros mensais, mas com a crise financeira, tive de baixar para 200 e até chegou uma altura em que apenas cobrei 175 a um casal de reformados. Esse senhor já faleceu, mas era uma pessoa muito boa, sempre preocupado com as minhas coisas. Há sete anos, quando mudei de arrendatários decidi cobrar apenas 200 euros.

Nunca lhes aumentei a renda, nem sequer a actualizei para a inflação. Por um lado, não quero que saiam porque são boas pessoas dá-me gosto saber que têm um sítio seguro a bom preço que lhes permite dar uma qualidade de vida melhor aos filhos. Por outro lado, o dinheiro adicional que eu receberia com a actualização de renda não me aquece, nem arrefece. E, finalmente, eu sou de uma geração que recebeu imenso do estado em Portugal porque tive uma educação de boa qualidade e a custo acessível, logo acho que devo dar alguma coisa em troca ao país. Para elém disso, ter a casa a arrendar baixa o custo que paguei e talvez recupere o meu investimento se algum dia vender. Qual o papel do estado português nisto? Para além do IMI, sempre que pago a hipoteca, o estado cobra imposto de selo, e depois há o IRS que era de 28% sobre a renda líquida, mas agora baixou para 25%. A renda líquida em Portugal é a renda que recebo menos as despesas, que incluem despesas de manutenção, despesas de condomínio, 15% dos juros que pago pelo empréstimo, etc.

Vamos a contas para ver se rendas acessíveis em Portugal faz sentido. Imagine-se uma casa que já está paga e que se coloca a arrendar, logo não há despesas com hipoteca, apenas as despesas de manutenção, seguro, o IMI e depois o IRS. Alguém que queira colocar essa casa a arrendar tem de fazer algumas obras para a colocar no mercado. Uma lata de tinta custa 25 a 50 euros, segundo o Leroy Merlin. Mão de obra é acima do salário mínimo para este tipo de arranjos, mas suponha-se que se contrata alguém por uma semana para fazer as obras. Se se pagar o salário mínimo a essa pessoa (760 euros/mês vezes 14 meses, a dividir por 52 semanas), o total é pouco mais de 200 euros por essa semana. Ao trabalho adiciona-se os materiais: só para se pintar tudo vai ser uns 100-200 euros ou mais porque também há pinceis, rolos, etc. Ou seja, o custo de meter a casa no mercado é pelo menos um mês de uma renda de 300-400 euros. (Estou a ser bastante optimista, um ano tive de fazer obras no apartamento em Portugal e ficou em 527 euros.)

Se se usar uma agência para encontrar um inquilino, eles ficam com o primeiro mês de renda, logo já perdemos dois meses de renda para despesas iniciais. O IMI mais o seguro de propriedade custam mais um mês de renda, logo o senhorio já perdeu uns 3 meses. O IRS a 25% da renda líquida vai incidir em 12 meses menos 3 meses de depesas e impostos de propriedade, ou seja, o estado leva 2,25 meses. No primeiro ano que a casa está no mercado as despesas e os impostos levam quase meio ano da renda ou mais. Se os inquilinos derem problemas e for necessário ir a um advogado, a taxa à hora é de 55-150 euros/hora. Conclusão, não faz sentido comprar uma casa para a meter a arrendar a uma renda acessível porque não se faz dinheiro para cobrir os custos do imóvel.

Nos EUA, tive uma propriedade arrendada que custou 98 mil dólares em 2004, ou seja, mais barata do que o meu apartamento em Portugal. A renda cobrada variou entre 600 a 800 dólares por mês. Em 2014, quando vendi a propriedade, o seguro e o imposto de propriedade custavam $1600 por ano, ou seja, uns dois meses de renda. Nessa altura já tinha uma agência que me geria a propriedade e cobrava 10% da renda. As obras para meter a casa a arrendar variaram entre 350 a 1000 dólares, mas quando se arrenda, os inquilinos fazem um depósito normalmente igual a um mês de renda e esse dinheiro é usado para pagar as obras, se houver obras a fazer. Se os inquilinos tratarem a casa bem, não são necessárias obras e o dinheiro é devolvido aos inquilinos. O senhorio só paga obras que não forem cobertas pelo depósito. Por lei, o depósito das casas arrendadas tem de estar numa conta à ordem à parte e só é usado quando os inquilinos saem.

No sistema americano, há outra diferença enorme e que é o cálculo da renda líquida para efeitos de impostos. Nos EUA, 100% dos juros são deduzidos da renda colectável e, para além disso, o valor da casa também pode ser amortizado. Se a propriedade dá perda depois de se considerar todos os custos, as perdas transitam para o ano seguinte e o estado só começa a receber impostos quando a propriedade começar a cobrir todas as despesas incluindo o custo de aquisição. Segundo me informaram, este detalhe da amortização em Portugal não está disponível para os pequenos senhorios, mas as empresas comerciais de imobiliário têm um sistema mais semelhante ao americano. Obviamente, essas empresas não têm grande interesse em negociar em casas de rendas baixas porque têm mais retorno se se especializarem em casas de renda mais cara.

Por mais voltas que o governo dê, não faz sentido nenhum falarem em rendas acessíveis quando o obstáculo principal é a carga fiscal a que os pequenos senhorios estão sujeitos, mais uma política de salários baixos. Baixar o IRS de 28% para 25% para um senhorio como eu reduz o IRS em 50 euros por ano. Isso dá para quê? Uma lata de tinta ou um hora com um advogado. Quem não tem a casa arrendada não a vai meter a arrendar para não pagar ao estado 50 euros por ano.

Agora tiveram a ideia de obrigar as pessoas a arrendar as suas casas. Vão obrigar como, exactamente? Basta meter uma cama e ir lá dormir uma semana por ano ou aos fins-de semana e a casa já não está vazia, é uma casa de férias.