terça-feira, 30 de julho de 2019

Identidade: uma palavra incontornável e perigosa

No ocidente, durante quase todo o século XX, os partidos situaram-se num espectro da esquerda à direita – comunistas, socialistas, social-democratas, democratas-cristão, liberais, conservadores. O desejado grau de intervenção do Estado e o empenho na igualdade ou na liberdade individual serviam para situar os partidos (e as pessoas) mais à esquerda ou mais à direita. Como é sabido, esta classificação ou arrumação tem óbvias limitações e falhas – desde logo, há uma discussão interminável sobre os conceitos de igualdade e liberdade e sobre a compatibilidade entre os dois. E, no entanto, é uma classificação útil. As pessoas precisam de opostos para pensarem e para se posicionarem.
A credibilidade do socialismo marxista caiu nas ruas da amargura quando deixou de ser possível ignorar ou disfarçar o que se passava em regimes grotescos como a União Soviética. Há muito que a própria social-democracia começou a ser questionada. A crise de 1973 mostrou que, afinal, o crescimento económico não era eterno e sem crescimento o Estado-Providência, como antes se dizia, fica sob ameaça. Além disso, tornaram-se evidentes alguns dos efeitos perversos de prestações sociais generosas, como os desincentivos à procura de emprego e ao empreendedorismo. A esquerda começou então a voltar-se para as reivindicações identitárias. Como acontece há décadas, a tendência nasceu nos EUA e, lentamente, foi alastrando pelo resto do ocidente. 

A identidade é um conceito moderno. “Quem sou eu, afinal?” não era uma questão que atormentasse os indivíduos em sociedades rurais, em que todos viviam em pequenas comunidades com valores bem estabelecidos. A questão da identidade emergiu em sociedades urbanas, desenraizadas, com indivíduos isolados e solitários. No século XVIII, há já uma extensa literatura sobre a relação do indivíduo com uma sociedade opressora – Jean-Jacques Rousseau é talvez o exemplo mais conhecido. Em suma, a questão da identidade tornou-se incontornável.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Recordando…


Há  sessenta  anos, no dia 29 de Julho  de 1959, completei  a  licenciatura  em  Ciências  Históricas e Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a defesa da tese que para o efeito elaborara: A arqueologia do  Concelho de Torres Vedras. Contribuição para o seu estudo até à época Lusitano-Romana. Era  o primeiro  final da minha  vida  escolar – voltaria  à escola mais vezes – mas esse primeiro passo ficou bem gravado na minha memória.

Para quem não saiba – e muitos não saberão – vou dizer em que consistia uma licenciatura nesses anos 50 do século XX. A entrada na Universidade dependia da aprovação de um dos cursos terminais do ensino liceal, de sete anos, que estavam agrupados em alíneas. A alínea d) era a que conduziria ao curso que eu escolhera, a alínea e) dava acesso a Direito e a f) aos muitos cursos da Faculdade Ciências ou Engenharias. Quem obtivesse a média de 14 valores, entrava directamente na Universidade; quem não a alcançasse teria de fazer um exame de admissão.

No caso do meu curso, ele consistia em quatro anos de “cadeiras”, como se dizia então, umas anuais, outras semestrais. Ao todo eram 26 – 13 de matérias de História e 13 de matérias de Filosofia. Todas elas tinham exames de frequência e final – provas escritas, as orais eram muito raras – e havia uma época de recurso para quem reprovasse no final do ano (ou quisesse melhoria de nota). Terminadas todas as cadeiras com aprovação, o aluno teria, para obter o grau de licenciado, de elaborar uma tese original com tema de sua escolha e defendê-la perante um júri que tinha, alem disso, a tarefa de interrogar oralmente o candidato em quatro matérias: História de Portugal, História das Civilizações, História da Filosofia Moderna e Contemporânea e Psicologia. Havia ainda uma prova escrita prévia de Lógica…

Depois dos quatro anos do curso, o ano seguinte era reservado para a elaboração da tese e preparação dos exames. Em rigor, quem quisesse poderia requerer o exame no 4º ano, mas como se compreende era uma tarefa muito difícil, ainda que não impossível: o Doutor Oliveira Marques fê-lo (creio que em 1958). Eu nem sequer considerei a hipótese! O tema da tese que escolhi exigia muito trabalho no exterior, quer em museus, colecções particulares, quer em bibliotecas e mesmo em trabalho de campo. Eu tinha-me rendido à arqueologia pré-histórica e por isso procurei fazer um trabalho exaustivo, que acabou por ficar materializado em dois grossos volumes – um de texto e outro de gravuras, o primeiro com 294 páginas e o segundo com 99.


Foi precisamente há sessenta anos, neste dia 29, que defendi a minha tese. O arguente foi o Prof. Manuel Heleno, que era o professor catedrático da área, e as coisas correram bem, sendo menores as objecções feitas ao que escrevera. O resultado não correspondeu inteiramente ao que desejava, mas a culpa não foi da tese, mas de uma prova que me correu francamente mal, a de História de Portugal. Não quero desculpar-me, mas a Professora Virgínia Rau devia ter dormido mal na noite anterior e resolveu brindar-me com questões que me deixaram literalmente a “ver navios”… Em suma, tive 14 valores como nota final de licenciatura.

Mesmo assim festejei. Alcançara o diploma que me permitiria trabalhar como professor. Mas acalentava, confesso, a possibilidade de continuar a estudar e evoluir em arqueologia. Tal não aconteceu – são outras histórias que nem vale a pena recordar aqui. Dois meses depois, iniciava a minha carreira como professor no Liceu Nacional de Santarém. A arqueologia continuou a ser um hobby, durante alguns anos, e depois foi substituída pelo empenho total nas coisas da educação.  

Perdoe-se-me esta evocação muito pessoal. Mas sessenta anos é mesmo muito tempo, e os velhotes gostam destas coisas…

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Possibilidades

Como o nosso ilustre PM acha que se governa não governando, incentivo os meus ilustres conterraneos lusos a exigir que se eleja um@ PM fofinh@ nas próximas eleições. Não, fofinh@ não quer dizer obeso; fofinh@ quer dizer um cão ou um gato jeitoso, ou um homem atencioso e bem-parecido. E também pode ser uma mulher incompetente para que possamos começar a preencher as quotas femininas.

Agora continuar como está, é dejá vu a mais.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Os recursos desumanos

“O problema afeta praticamente todas as regiões do país e todos os sectores. É preciso pessoal qualificado nas áreas das tecnologias de informação e comunicação, na indústria, na agricultura, no turismo, na construção civil.”

Pedro Siza Vieira, Ministro Adjunto da Economia, Expresso, 20/7/2019

Permitam-me discordar. De há uns tempos para cá, os governos portugueses só vêem tecnologia como uma ferramenta de cobrança de impostos. Os restantes ministérios não usam tecnologia. Por exemplo, no início do ano, o Ministério das Finanças enviou emails a informar os contribuintes que tinham de limpar as matas de que eram proprietários. Ficamos logo a saber que o ministério ao qual compete administrar o território não tem recursos para cumprir a sua missão e sabemos que o estado ainda não sabe quem tem matas, logo como é que vai castigar os prevaricadores? Se forem ver as páginas de Internet de outros ministérios, encontram links partidos, coisas desatualizadas, etc.

Esta fixação em saber o que as pessoas gastam online para cobrar os impostos leva a que o público no geral desconfie das novas tecnologias para efeitos produtivos, i.e., que contribuam para o crescimento da economia. Há sítios em Portugal onde as lojas passaram a negociar apenas em dinheiro. Agora que os bancos cobram um balúrdio para ter uma conta, levantar dinheiro, etc., para já não falar na falta de confiança que todos os buracos bancários inspiram, mais incentivo há para evitar a economia virtual. Se o Facebook permitir mesmo às pessoas guardar dinheiro em libras facebookianas ou se aparecer um outro mecanismo semelhante, temo que os bancos portugueses fiquem sem parte dos seus depósitos.

domingo, 21 de julho de 2019

Discriminação de sardinhas e outros

Há uns anos, uma amiga portuguesa ofereceu-me algumas sardinhas da Bordallo Pinheiro. Tenho o guitarrista e a fadista, que são vendidos em conjunto, e o marco de correio e o postal, que são individuais. Calhou no outro dia ir ao Target (é uma loja tipo Continente, mas não vende tantos produtos frescos) e na secção de saldos encontrei um peixe de cerâmica branco decorado com desenhos a azul, que me recordou de Portugal, e que serve para decorar a borda dos vasos de plantas (tem uma cavidade na parte de baixo para ser montado no vaso). Como também tinha um burado na parte de baixo pensei imediatamente que podia pendurar na parece ao lado das minhas sardinhas e foi o que fiz.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Fruta estranha

"Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

Here is fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop"


Assunto quente

Neste momento, o assunto mais quente nos EUA é o caso do billionário Jeffrey Epstein, que é acusado de abuso sexual de menores. É difícil ouvir falar do assunto sem nos contorcermos com desconforto e parece que nem tudo se sabe, pois há questões acerca de como ele se tornou tão rico e também há ligações a pessoas bastante poderosas ou famosas, como Kevin Spacey, Bill Clinton, e Donald Trump.

O caso veio à baila devido a uma investigação do Miami Herald, que foi publicada em Novembro acerca de uma investigação das autoridades na Florida, em 2007, na sequência da qual as autoridades federais se preparavam para acusar Epstein, mas que não tinha sido levada a termo por ter sido negociado um acordo em termos muito favoráveis para Epstein.

Em 2003, a jornalista Vicky Carter, escreveu um exposé sobre Epstein para a Vanity Fair, que não chegou a ser publicado na sua versão original. Ontem, no Morning Edition, Carter falou da interferência de Epstein na publicação da peça e de os relatos das vítimas terem sido eliminados porque, em troca, Epstein ofereceu fotos para a publicação da peça.

Graydon Carter, o editor da Vanity Fair, em defesa própria disse que, na altura, não tinha confiança no trabalho de Carter. Fiquei muito chateada que tenha oferecido uma razão tão porca -- ela era incompetente --, quando sabemos hoje que a incompetência ou cobardia foi dele. Cá para mim, ainda acaba por se demitir um dia destes porque este não deve ter sido o seu único "lapso".

terça-feira, 9 de julho de 2019

Risco pessoal

Ontem, o Twitter decidiu sugerir para minha apreciação um monte de tuítes xenófobos e racistas. Suponho que tenho de agradecer ao Público por ter inspirado tanta generosidade. Perguntava alguém no Twitter se gostaríamos de ter ciganos como vizinhos porque parece que ter ciganos vizinhos é mau. Não é; aliás, eu cresci numa vizinhança em que havia uma família cigana composta de uma senhora viúva e doente crónica que tinha dois filhos. A minha mãe dizia-me que era muito boa pessoa e como a senhora cigana vendia roupa na feira, de vez em quando comprávamos algumas peças. Mesmo quando a família se mudou para outra vizinhança continuámos a ir visitá-la para comprar roupa.

Se é disto que têm medo, podem ficar descansados porque nada nos aconteceu apesar da proximidade. No entanto, há males bem piores no mundo e também havia na vizinhança onde cresci. Por exemplo, tive um vizinho pedófilo, que já tinha estado preso por ter violado alguém, mas que entretanto se exibia em público ou quando apanhava alguma criança só aproveitava a ocasião. Depois havia um polícia que se embebedava e batia na mulher, mas não era o único homem que o fazia. Homens que batiam em mulheres em Portugal era o pão nosso de cada dia e, infelizmente, não é uma espécie em vias de extinção. E até aposto que não sou a única pessoa que cresceu numa vizinhança com pessoas deste calibre, que nem eram ciganas.

Eu percebo que há ciganos maus, mas também percebo que há não-ciganos piores -- não, isto não é um caso de "whataboutistmo", é mesmo um caso de avaliação de risco pessoal -- e cada indivíduo deve responder pelos actos que comete, em vez de culparem toda uma etnia. Por falar em pessoas más, no ano passado, a ONU publicou um estudo em que concluía que o lar é o sítio mais perigoso para uma mulher: em todo o mundo, das 87 mil mulheres vítimas de homicídio, cerca de 50 mil morreram por causa do seu parceiro ou de um familiar, ou seja, quase seis mulheres por hora, em média. Acham mesmo que era de ciganos que estas vítimas deviam ter medo?




quarta-feira, 3 de julho de 2019

Elisa destemida

No dia 30 de Junho, a Elisa Martinuzzi assinou uma peça na Bloomberg acerca do bailout do banco italiano Monte Paschi e especula que Mario Draghi não terá dito tudo o que era pertinente acerca do caso. Quando a intervenção no banco se deu, Mario Draghi trabalhava no banco central italiano.

Esta discussão sobre o que sabia e não sabia Mario Draghi e o que ele disse vs. o que não disse recordaram-me as polémicas em redor de Victor Constâncio, quando este estava no Banco de Portugal, que voltámos a visitar nas últimas semanas, mas achei estranho que tendo Constâncio o cargo que tem no BCE a imprensa estrangeira não tenha noticiado nada. É como se as notícias portuguesas não chegassem ao mundo.

Na peça da Elisa, achei engraçada esta passagem, que sublinhei no excerto seguinte:
"The financial shockwaves set off by the collapse of Lehman Brothers Holdings Inc. in September 2008 placed added pressure on Monte Paschi. The bank took to masking its burgeoning losses with a series of complex derivatives deals. Those transactions were hidden from public view until I later reported on them. Once they were disclosed, Monte Paschi had to restate its accounts twice.

In response, Italian prosecutors filed criminal charges against the bank, alleging market manipulation and regulatory obstruction, and two trials are ongoing. Prosecutors are seeking jail sentences for a group of former employees, including the ex-chairman and general manager. The lender itself reached a plea bargain."

Fonte: Elisa Martinuzzi, Bloomberg

Fresquinha

Tenho uma notícia fresquinha para vós: o NYT acaba de publicar uma notícia em que relata vários casos de alegadas violações em que os juízes do Tribunal de Família deram opiniões à portuguesa e o mais engraçado disto é que um deles tem mesmo sobrenome Silva. Não é precioso?

Em 2017, ao Juiz Troiano (FYI, também é um sobrenome engraçado porque Trojan é uma marca de preservativos famosa nos EUA), que tem cerca de 70 anos e está reformado, mas que ocasionalmente preside a casos, foi apresentado o caso de um rapaz de 16 anos que, numa festa, violou uma rapariga também com 16 anos que na altura estava visivelmente inebriada e algo incapacitada, demonstrando dificuldade de andar e falar.

O rapaz filmou o acto e partilhou o vídeo com amigos, tendo mesmo enviado uma mensagem em que dizia "When your first time having sex was rape". Durante meses, o rapaz mentiu à rapariga acerca do que tinha acontecido, ao mesmo tempo que continuava a partilhar o vídeo e foi assim, pelo vídeo, que ela percebeu a dimensão do ocorrido, se bem que no dia a seguir à festa tivesse dito à mãe que suspeitava que tinha sido vítima de algo sexual.

O Juiz disse que o menino estava equivocado, aquilo não era violação porque para ser violação era preciso o acto ser tipo entre desconhecidos e o violador apontatar uma arma à vítima, coisas assim é que seguiam para tribunal com julgamento com júri. Qual quê, considerava o juiz, aquele moço vinha de boas famílias, tinha boas notas, e era escuteiro; efectivamente um rapaz deste calibre não só vai para a universidade, como é capaz de ir para uma boa universidade. O "Prosecutor" (Representante do Ministério Público) devia ter explicado à vítima e à família dela que uma aciusação destas não se fazia porque ia destruir a vida do rapaz.

Um outro caso referidona peça foi o que calhou à Juiza Marcia Silva, em 2017. Este é muito bom, ora vejam: um rapaz de 16 anos "atacou sexualmente" uma rapariga de 12, mas a juiza Silva concluiu que o rapaz não devia ser julgado como adulto porque, àparte de a rapariga ter perdido a virgindade, o Ministério Público não tinha argumentado que mais nada de mal lhe tinha acontecido -- não vos soa familiar?

Ambas as decisões, proferidas em Tribunais de Família na Nova Jérsia, foram sujeitas a recurso e foram repudiadas pelo tribunal de recurso, que permitiu que os acusados fossem julgados como adultos. No primeiro caso, o juiz de primeira instância foi instruído a não favorecer jovens de "boas famílias". No segundo, foi argumentado que uma criança de 12 anos não tem idade para dar consentimento (um à parte: todos os estados nos EUA definem uma idade de consentimento; na Nova Jérsia é 16 anos, mas a lei contempla sexo entre jovens com menos de 16 ser de mutuo acordo se tiverem idades próximas, ou seja, o indivíduo mais novo tem pelo menos 13 anos e o outro não tem mais de 17), logo presume-se imediatamente estar-se perante uma potencial violação -- esta é a leitura mais óbvia da lei.

(Outro à parte: relativamente ao conceito de "ter sexo aos 12 anos", já aqui mencionei uma vez ter ficado surpreendida quando li um artigo numa revista portuguesa sobre mulheres precoces em que uma rapariga admitia ter perdido a virgindade aos 12 anos com um rapaz muito mais velho do que ela, 18 anos, se a memória me serve bem, como se ter sexo aos 12 anos fosse normal ou sequer permitido pela lei portuguesa. A rapariga achava que era sinal de maturidade.)

O artigo também menciona um outro caso que se passou na Califórnia com o juiz Aaron Persky. Depois de o Juiz Persky ter condenado um estudante de Stanford a seis meses de prisão por ter violado uma mulher inconsciente, o juiz foi "recalled" pelos eleitores (fizeram uma eleição para o destituir do posto). Em alguns estados, os juizes são eleitos, em vez de nomeados.