segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A desordem

Antes da Grande Depressão era comum haver crises financeiras nos EUA e descoordenação de políticas governamentais, e, muitas vezes, as próprias políticas serviram como desestabilizadores da economia americana. Com a introdução de estabilizadores automáticos na economia, através da criação de uma "safety net", que é essencialmente uma forma de manutenção de um consumo mínimo da economia, a duração e profundidade das crises atenuou-se. Talvez a expressão máxima deste fenómeno tenha sido a forma tão rápida como a economia americana recuperou da pandemia.

Toda essa infraestrutura de suporte da economia está a ser desmantelada pela administração Trump e, para além disso, todo o aparatus federal que facilita negócios, como as garantias do governo federal para obtenção de seguros em zonas de risco de catátrofe, ou até de financiamento na obtenção de casa está sob ameaça. Até o pessoal dos parques naturais responsável por encontrar pessoas perdidas ou que tenham sofrido acidentes, está a ser despedido, porque não é considerado essencial.

O pessoal do Internal Revenue Service vai ser reduzido durante a época alta de processamento de impostos de rendimento. A FEMA (Federal Emergency Management Agency), que foi o calcanhar de Aquiles de George W. Bush por causa das falhas de resopsta ao furacão Katrina, também vai sofrer cortes com a época de tornados praticamente aí, e a 1 de Junho a começar a época de furacões. Na agricultura, a USAID não vai comprar as commodities americanas que servem para apoiar os países mais pobres, mas mais cortes são previstos. Depois há também o detalhe de o governo federal americano recolher e produzir dados e relatórios que medem a actividade económica e as condições reais não só nos EUA, como em outros países, sendo provável que muitos desses relatórios e dados tenham os dias contados devido aos cortes no pessoal de tantas agências.

Os meus contactos em universidades americanas, indicaram-me que as universidades e pequenas empresas ligadas a pessoal das universidades que dependem de financiamento para investigação e disseminação de informação científica já começaram a cortar pessoal e em gastos de viagens e contratação de pessoal. Na semana passada, foi anunciado que Trump vai despedir os directores do serviço postal nacional (USPS) e vai colocar o serviço sob o Departament of Commerce.

Os americanos não conseguem funcionar assim, pois é um povo que gasta imenso dinheiro em recolha e analise de dados e gestão de risco. Quando estas medidas de Trump e Musk começarem a ser sentidas em termos de incerteza, a actividade econonómica irá desacelerar e talvez até parar. Na Sexta-feira, o processo pode já ter começado: os primeiros relatórios de entidades privadas que tentam antecipar os relatórios oficiais do governo americano já indicam que a actividade econonómica está a desacelerar.

O último inquérito de actividade da S&P indica que a actividade económica expandiu mais lentamente, a um nível equiparável ao de Setembro de 2023. O inquérito das expectativas de inflação dos consumidores aceleraram para 3.5%, o nível mais alto dos últimos 30 anos. O mercado accionista fechou em queda e os bonds, que oferecem mais estabilidade, em alta (yields das treasuries baixaram, logo o seu preço aumentou). Esta semana é provável que a correcção continue, dado que Musk irá continuar a despedir funcionários públicos federais (na Sexta-feira enviou outro email a pedir que os empregados indiquem o que fazem para que seja avaliado se devem ficar no emprego), para além da retórica de entrave ao comércio internacional de Trump.

A administração também está a tentar fazer mudanças em entidades que são consideradas independentes do poder executivo, o que levanta a possibilidade de haver mudanças a nível da Reserva Federal e afectando a política monetária americana. Com os despedimentos da função pública, qualquer implementação da política fiscal está comprometida. Mesmo que daqui a semanas ou meses haja vontade de passar políticas fiscais de apoio à economia, não há como as concretizar. Aguarda-nos caos e desordem, mas pode ser que algumas pessoas consigam *finalmente* entender o papel do governo federal na economia americana.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Um oitavo de polegada

Ontem de manhã telefonou-me uma amiga que votou no Trump e que eu tenho evitado porque não sei o que pensar. Não sei se deva ter pena ou se deva ficar zangada com estas pessoas. Tentei ser seca e evasiva, até que ela me perguntou da economia e eu não me contive e disse que achava que estavamos prestes a ter uma crise enorme. Ela responde que não, que acha que as taxas de juro até vão baixar. Claro que não, disse eu, porque a política de comércio internacional de Trump é inflacionista. Ah mas o Trump vai acabar com o desperdício, responde-me.

É verdade que há desperdício, mas o governo federal também gasta imenso dinheiro em controle de desperdício; aliás o custo de encontrar e controlar desperdício no governo federal é mais alto do que o desperdício que ocorre e que se evita. Nesta administração, acha-se que o remédio para se eliminar desperdício é parar tudo: já se começou a despedir a função pública e a suspender gastos em investigação, daqui a umas semanas é quase certo que nem toda a gente irá receber pensões, nem apoio financeiro para gastos médicos ou educação ou apoio a aquisição de casa, nem que se possa contar com o governo para assistência em caso de catástrofes naturais, etc. Ou seja, está a demantelar-se todo o sistema de controle de risco e de estabilização da economia americana que foi criado no último século.

Soltei os cães na minha amiga. Como é possível ainda no outro dia ela me ter perguntado porque é que não há investigação médica para certas doenças de mulheres e ela votar num traste como o Trump, é a terceira vez que vota nele, não me pode dizer que não gosta do homem. Só que não gostava do Biden e será que eu achava melhor que ela não votasse. O Biden não era o candidato, respondi-lhe, eu também não gosto dele e não votei nele nas primárias. Mas ela também não gostava da Kamala e não gosta do Trump, mas o Trump era um oitavo de polegada (3,18 mm) melhor do que os outros e vai tudo correr bem.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O elefante e a porcelana

Há uma expressão em inglês da qual gosto muito: an elephant in a china shop, i.e., um elefante numa loja de porcelana. É isso o que os primeiros dias da segunda Administração Trump têm sido. A forma como se está a atacar o funcionamento do governo federal é completamente desastrosa. As pessoas que elegeram Trump não têm noção do papel do governo federal na economia e na vida dos americanos. É de propósito que há uma certa obscuridade acerca de como as coisas funcionam, mas também há um nível de ignorância que roça a estupidez, como ilustra o facto de ser comum ver em manifestações de pessoas anti-governo ver cartazes com "Stay out of my Medicare", como se o Medicare, o programa que fornece seguro de saúde aos reformados americanos, fosse um programa divino que tivesse caído do céu e não um produto do governo federal.

Não se pode dizer que o governo deferal seja um governo perfeito, mas não é a incompetência que dizem que é e nem sequer serve apenas os americanos. Os funcionários públicos dos EUA, no geral, são das pessoas mais prestáveis e com sentido de missão. Muito deles foram voluntários em programas como o Peace Corps, em que foram para outros países para trabalhar com pessoas desfavorecidas, aprenderam outras línguas, fizeram amigos de outras culturas, etc. Nos EUA, quase ninguém sai da escola e consegue um bom emprego se não demonstrar ter uma consciência social. Isto apesar de o resto do mundo ver os americanos como uns capitalistas selvagens, sem ponta de dever cívico.

Talvez a melhor forma de ver como o resto do mundo beneficia do que os EUA fazem e estão a deixar de fazer seja mesmo suspender tudo e atirar o país e o resto do mundo para o caos. Na primeira vez que Trump governou, houve oposição que apenas impediu que as pessoas vissem as verdadeiras consequências do que Trump propunha e niguém aprendeu a lição, logo talvez assim consigamos sair deste tipo de "groundhog day". Não vai ser um processo agradável, mas dá para ver que há pessoas que vão acabar bastante mal e não acho que sejam os coitados do costume.

E quem vai salvar o país? Obviamente que vai ser o sistem financeiro, tal como aconteceu quando a Administração Bush passou anos a abusar do poder. Talvez as pessoas já se tenham esquecido do caso de Valerie Plame, por exemplo, uma agente secreta da CIA cuja identidade foi revelada por motivos políticos pelo gabinete do VP Dick Cheney. E claro, a invasão do Iraque, e outros episódios mais. Na altura, o mundo ergueu-se contra os EUA, mas se não tivesse havido o crash de 2008, duvido que o mundo tivesse ficado melhor. Aguardemos o crash.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Uma semana que vale anos

Começámos a semana com notícia de que os pagamentos do governo federal estavam congelados, mas passado um dia Trump teve de mudar de ideias. O General Mark Milley, que se opôs a Trump durante o primeiro termo, irá ser investigado e provavelmente vai ser despromovido. Depois veio a notícia na Quarta-feira de que os funcionários públicos federais tinham recebido um e-mail com um convite para se reformarem; funcionou tão bem com o Twitter, que o Musk repetiu a dose. Nessa noite, deu-se o acidente aéreo que pasou para o primeiro plano das notícias ontem.

Entretanto, as audiências já retomaram o foco em Trump: os agentes do FBI que tenham estado envolvidos em investigações relacionadas com Trump vão ser despedidos. Foi também anunciado que amanhã é o início oficial da nova guerra comercial; os alvos serão a China, o México, e o Canadá. Há uns minutos também saiu a notícia que o Justive Department despediu os "prossecutors" envolvidos na investigação do golpe de 6 de Janeiro de 2020. E ainda temos mais umas horinhas antes de terminar Sexta-feira.

O Warren Buffet já mudou o portefólio para dinheiro e mandou as acções à fava por uns tempos. Está à espera que o mercado entre em saldo, o que me parece não ter de demorar muito.