segunda-feira, 7 de maio de 2012

Cálice/cale-se

O fim dos anos 60 e início dos anos 70 no Brasil foram anos de forte repressão. Durante os “anos de chumbo” vários artistas foram presos e muitos foram parar ao exílio. Entre as vítimas estão artistas que venero, como Chico Buarque, preso nos anos 60 e exilado em Itália no início dos 70, Caetano Veloso e Gilberto Gil, também presos nos anos 60 e também desterrados, neste caso em Inglaterra, nos anos 70.

Quando presos já eram celebridades. Um dos que prendeu Chico Buarque pediu-lhe, no acto, que assinasse um autógrafo para levar à sua filha. Caetano Veloso descreve no seu livro “Verdade Tropical” os seus tempos de prisão. Há um episódio que sobressai. Imaginem Caetano Veloso de cuecas, sob um sol escaldante, com uma metralhadora encostada às costas, a cantar, sozinho e a cappella, para o director da prisão, uma canção romântica.

Os anos negros no Brasil marcaram os artistas com a censura. Chico Buarque disse um dia que duas em cada três músicas eram censuradas. Tinha de retorcer tanto a escrita para driblar a censura que hoje, quando lê algumas letras passadas, já nem sabe o que queria dizer com elas. A censura era tão desmedida que chegou a ter todas as músicas de um álbum censuradas. Nesse álbum, Sinal Fechado, nenhuma das letras tinha a sua assinatura.

É também destes anos a sua primeira colaboração com Gilberto Gil. Em 1973, já os dois tinham regressado do exílio, a editora desafiou-os a cantar juntos num festival. Gil e Buarque eram líderes de movimentos musicais distintos e rivais. Um dueto improvável da época. Desse encontro saiu “Cálice”. A ideia do cálice partiu de Gilberto Gil que, em época pascal, se sentia seduzido pelo sacrifício de Cristo,
           Pai! Afasta de mim esse cálice
           De vinho tinto de sangue.

Foi Chico Buarque quem se apercebeu que “cálice” e “cale-se” tinham a mesma sonoridade (especialmente no sotaque brasileiro), aproveitando a ambiguidade para fazer desta música uma canção de combate,
           Como é difícil acordar calado
           Se na calada da noite eu me dano
           Quero lançar um grito desumano
           Que é uma maneira de ser escutado.

Chegados ao festival, já a canção tinha sido censurada. Chico Buarque e Gilberto Gil vão para o palco e tocam a música sem, no entanto, a cantarem. Apenas a entoam e vão largando gemidos desconexos, ficando bem claro que estavam a ser censurados. Durante a actuação, o microfone de Chico é desligado. No fim, desabafasei bem que não posso cantar nem o “Cálice” nem a “Ana de Amesterdã”. Não cantarei, desligar o som não está no programa. 

Poucas semanas depois, em concerto próprio, Gilberto Gil é desafiado a cantar Cálice. Não se lembrava da parte da letra de Chico Buarque. Alguém do público acena com a letra e passa-a a Gilberto, que a canta. É obrigado a cantá-la duas vezes. A gravação desse momento pode ser encontrada no youtube.
Mais tarde, penso que em 1978, já quando a ditadura militar amansava, a música foi liberada e Chico pôde cantá-la. Cantou-a com Milton Nascimento uma versão com letra e música já consolidadas.

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