quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Re: A vergonha do aborto gratuito

O João Miguel Tavares resolveu trazer à ordem do dia a questão do aborto. Não vale a pena ter pruridos, este assunto estará sempre na ordem do dia pelo que é tonto fugir ao debate.

JMT, sem nunca pôr em causa que o aborto deve ser legal ― dando a entender que votou ‘Sim’ no referendo sobre o mesmo ―, defende que não faz qualquer sentido equiparar um aborto a um nascimento. Por exemplo, defende que uma mulher que aborta não deve ter direito “a licenças até 30 dias pagas a 100%.” Se isto é verdade, na verdade está-se a subsidiar o aborto.* Estou totalmente de acordo com JMT: não há qualquer motivo para que o aborto seja tratado de forma diferente de qualquer outro caso médico, excepto na necessária celeridade. Isto inclui, obviamente, o pagamento de taxas moderadoras e as excepções previstas às mesmas para agregados familiares de baixos rendimentos. 

Mas JMT vai mais longe e defende que os hospitais públicos não façam abortos. Quem o quiser fazer deverá recorrer a clínicas privadas. Isto é, na minha opinião, um autêntico disparate.
  1. O que JMT propõe quase que corresponde à situação que havia antes da legalização. Também nessa altura quem quisesse ir abortar a uma clínica privada na fronteira de Espanha com Portugal podia fazê-lo. Ou seja, ninguém estava a mais de duas horas de distância de o poder fazer. O que JMT propõe basicamente implica que quase todas as mulheres do interior ficassem numa situação de facto semelhante à anterior.
  2. Se deixamos isto para clínicas privadas elas terão de estar licenciadas e obedecer a uma série de normas legais. Isto, obrigatoriamente, vai fazer com que o aborto fique caro. Muito sinceramente, não faço ideia de quanto custa um aborto numa clínica privada mas suponho (corrijam-me, por favor) que fica na casa dos 400€. Isto, basicamente implica que quem não tem 400€ terá de recorrer ao aborto clandestino. Ou seja, fica-se numa situação igual à que havia antes do referendo.
  3. O João pede para nos pormos no lado de quem é contra o aborto por acreditar que se está a matar um ser humano. Se nos pusermos nessa posição, parece-me que a ideia de isto ser um assunto que é tratado concorrencialmente é particularmente difícil de aceitar. Como aceitar que no plano de negócios de uma empresa se tenha como meta aumentar em 30% o número de abortos realizados num ano. Que incentivos teriam estas empresas a empenhar-se em reduzir os casos de abortos repetidos? Simplesmente nenhuns.
  4. Sendo este assunto tratado no quadro do Serviço Nacional de Saúde, isto é tratado como um problema de saúde pública. Os dados dos abortos realizados ficam na posse do Estado, os dados sobre as pacientes são tratados, as pessoas são aconselhadas. Tudo isto permite promover políticas públicas mais eficazes e direccionadas que visem combater o aborto. Se isto é entregue aos privados, o único incentivo é o de maximizar os lucros. 

* Devo dizer que não conheço os detalhes da lei, pelo que me estou a fiar no que JMT escreveu.

Adenda: Entretanto chamaram-me a atenção para esta notícia. Penso que daqui é razoável inferir que de um ponto de vista agregado e orçamental o problema das licenças pagas é praticamente irrelevante, o que, obviamente, não altera a questão moral, mas ajuda a pôr em perspectiva. Se o principal problema de um subsídio é promover um comportamento indesejado, esse problema não se parece verificar no caso concreto do aborto.

Adenda 2: Entretanto dizem-me "que a licença só é atribuída quando aborto resulta em impedimento para trabalhar. Ou seja, não é automático; é preciso justificação médica." Assim sendo, e partindo do princípio que é assim com todas as doenças, nem neste ponto concordo com João Miguel Tavares. Volto a dizer que desconheço os detalhes sobre as licenças por doença.

Adenda 3: Já me esclareci relativamente aos subsídios. Considero que não faz sentido que as baixas por aborto tenham um regime mais favorável do que os de quaisquer outras baixas médicas. Assim não faz sentido equiparar o regime à licença de parentalidade. O regime a aplicar é o regime geral de baixas médicas.

11 comentários:

  1. Ponto 1 e ponto 2: Optaste por passar por cima da minha sugestão para a sociedade civil e os movimentos pró-escolha se organizarem para financiar os abortos a quem não pode pagar. É verdade que em Portugal ninguém se consegue associar para qualquer outra coisa que não seja jogar à bola, mas não deixa de ser triste que a super-convicção das pessoas só vá até ao grito e ao slogan - quando se trata de efectivamente fazer alguma coisa, o Estado que trate disso.

    Ponto 3 e ponto 4: o Estado, pelos vistos, faz cerca de 20 mil abortos por ano. São 55 abortos por dia. É muita coisa. Não percebo como é que se desincentiva o aborto atribuindo-lhes benefícios que as doenças não têm, e permitindo a uma mulher realizar 10 ou 20 abortos gratuitamente, se assim o entender. Dizer que o aborto é gratuito para o Estado poder aconselhar as mulheres a não abortar é pura e simplesmente uma história da carochinha.

    Adenda 2: também era o que faltava, ficar a gozar licença de aborto sem estar impedido de trabalhar. A questão dos 100% está no facto de a portaria (n.º 741-A/2007) que regula a coisa colocar tudo no mesmo saco da "mulher grávida". Tanto uma mulher que vai ter um filho como uma mulher que vai abortar são "mulheres grávidas", e por isso partilham direitos, além de não se fazer quaisquer distinções entre razões para abortar. A questão dos 100% está em receber o ordenado sem fazer os habituais descontos, ou seja, ter o privilégio de receber o ordenado bruto - muito mais do que se estivesse a trabalhar. Mais um desincentivo ao aborto, como se vê.

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    1. Olá, tudo bem contigo?
      “Ponto 1 e ponto 2: Optaste por passar por cima da minha sugestão para a sociedade civil e os movimentos pró-escolha se organizarem para financiar os abortos a quem não pode pagar.”
      É verdade, optei por passar por cima desta sugestão sim. Pareceu-me que não era para levar muito a sério. Que achas de incluir uma alínea na declaração de IRS que permita às pessoas transferirem parte dos seus impostos para pagar abortos, assim como podem transferir para a igreja?
      “Dizer que o aborto é gratuito para o Estado poder aconselhar as mulheres a não abortar é pura e simplesmente uma história da carochinha.”
      Eu não disse que era gratuito por isso, aliás até acho que devem pagar o raio da taxa moderadora. Digo, isso sim, é que essa é uma vantagem de estar no Estado. E não há como negar. Uma política pública bem direccionada exige informação de qualidade e acesso à população alvo. Num assunto tão delicado como este seria difícil fazê-lo sem ser no Estado. As clínicas privadas recusariam a prestar essa informação ao Estado (e muito bem, que estes assuntos devem ser tratados com confidencialidade). Com o que tu defendes, arriscamo-nos a ter uma epidemia de abortos e nem nos darmos conta, nada fazendo para estancar a epidemia.

      Adenda 2: Estamos de acordo que o regime a aplicar deve ser o da baixa médica e não o equivalente à parentalidade. Estás, no entanto, enganado a respeito de uma coisa. O subsídio de parentalidade, neste momento, já não é o bruto. Deves ter sido dos últimos a beneficiar desse regime. De qualquer forma, aqui estamos de acordo e vou deixar isso claro na adenda.

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    2. “A questão dos 100% está em receber o ordenado sem fazer os habituais descontos, ou seja, ter o privilégio de receber o ordenado bruto - muito mais do que se estivesse a trabalhar. Mais um desincentivo ao aborto, como se vê.”
      Vamos por partes. Reafirmo que o regime a defender devia ser o regime geral de baixas médicas. Mas se o incentivo é assim tão grande, como justificas que o número de licenças em 2012 seja menor do que o de 2005? No mínimo, tens de concordar que é um incentivo que não incentiva muito. Se houvesse muitas mulheres a abortar para beneficiarem desse incentivo, o número teria de ser maior, não?

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    3. Em termos lógicos, não ser um desincentivo não é equivalente a ser um incentivo. Eu não disse que era um incentivo. Disse que não era um desincentivo.

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    4. Em termos lógicos é verdade. Em termos retóricos, como sabes muito bem com toda a certeza, duas negativas correspondem a um sim.

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    5. "permitindo a uma mulher realizar 10 ou 20 abortos gratuitamente"

      De facto, este deve ser um problema de primeira ordem, gravíssimo, e extremamente representativo. Estou certo de que o articulista tem dados à mão para o corroborar.

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    6. "permitindo a uma mulher realizar 10 ou 20 abortos gratuitamente"

      É óbvio que uma observação destas só poderia vir de alguém que não têm capacidade para gerar uma vida dentro de si, carrega-la 9 meses e faze-la nascer com um sofrimento prendado pela mãe natureza.
      Têm sempre uma certa piada quando são os indivíduos que nunca saberão o que isso é, a comentar e a passar sentenças sobre o aborto.Como se a decisão de interromper uma gravidez fosse da mesma magnitude que escolher o pastel de nata e o galão do pequeno almoço...

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  2. Apenas para elucidar na questão dos subsídios.
    Caso pessoal: sofri um aborto espontâneo (de uma gravidez desejada) que não tendo resultado na expulsão "natural" do feto acabou por ser tratado de forma similar ao aborto voluntário (perguntei e de acordo com o que me explicou a médica assistente eliminaram 1 ou 2 medicamentos mas no que toca ao que provoca a tal expulsão é igual). O atendimento é rápido (no meu caso num serviço de urgência) e passaram-me uma baixa de 15 dias, chegando a perguntar se queria 30. É verdade que precisei efectivamente de ficar em casa 2 dias porque a hemorragia é enooorme mas tirando essa prazo estava fisicamente bem para qualquer tipo de trabalho ou actividade.
    Concordo com o aborto voluntário mas tal como o JMT discordo em absoluto que exista um período de licença (não é baixa) tão alargado e recebendo a 100%, qualquer das situações não se justifica. Não é justo quando comparado com outras situações médicas e é totalmente absurdo quando temos um SNS com dificuldades óbvias de sustentabilidade.
    As minhas desculpas por não assinar o texto mas esta é uma situação que prefiro nomear apenas para um circulo próximo de pessoas.

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  3. É relevante discutir com seriedade a necessidade de conter custos e travar o recurso ao aborto. Como se notou na introdução das taxas m. houve uma redução no recurso as urgencias não afectando os necessitados de serem observados mas cortando os que só porque sim abusam dos serviços desde que gratuitos. Sabemos que todos devem ser responsabilizados pelos seus actos e apesar de ser confortavel saber que alguem vai corrigir se der para o torto, convem "convencer" as irresponsaveis que tambem há modo de serem responsabilizadas; até porque os recursos não vão dar mesmo para tudo, a menos que estejamos de acordo em queos descontos sejam a maior parte do ordenado.

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  4. Caro LA-C,

    Desculpe-me discordar do seu ponto 2. Se o aborto privado for caro, a "sociedade civil" que entre em acção. Não me parece que organizações políticas ou militantes (no acepção democrática do termo), que se mobilizaram para apoiar a legalização do aborto, não fossem capazes de criar uma associação sem fins lucrativos que financiasse a IVG de pessoas com menores recursos.

    Da mesma forma que se eu tiver um acidente e ficar com uma cicatriz o Estado (e bem) não me paga a cirurgia plástica, também não o deve fazer para o IVF puramente electivo.

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  5. "É verdade que em Portugal ninguém se consegue associar para qualquer outra coisa que não seja jogar à bola..."
    Uma frase profundamente injusta, para além de falsa.
    IsabelPS

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