Aqui vos deixo uma reflexão, obviamente muito pessoal, no dia em que, em Luanda, começou o julgamento de perigosos "inimigos do Estado"...
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O acto de colonizar,
submeter um povo ao poder de um outro foi recorrente ao longo da História. Seja
pela crença em uma superioridade racial, étnica, moral ou de outro tipo, seja
por mais prosaicas motivações económicas, tantas vezes eivadas do auxílio das
religiões, parece estar na essência da matéria humana a dominação do outro. A
afirmação do poder, do «micro-poder» (Foucault), tem contribuído em muito para
uma certa auto-estima amiúde disfarçada de uma colossal falta de positiva
auto-percepção do “self”.
Nas relações
internacionais, na política internacional, todos sabemos que a “real politik”,
os jogos de interesses – mais ou menos legítimos – são, na verdade, a única
regra conhecida e respeitada pelos Estados. O mesmo facto pode ser terrorista
ou manifestação de uma lícita defesa da integridade territorial em função dos
interesses económicos que ligam esses mesmos Estados. As balanças comerciais
são, nas relações entre Nações, a verdadeira moeda de troca e o paradigma de
avaliação da correcção ou não de uma medida. Também por isso o Direito
Internacional Público é olhado de soslaio e, amiúde, converte-se em lei
darwiniana.
Dir-se-á que, sobretudo
no pós-II Guerra, com a constituição da ONU, sucessora da incapaz Sociedade das
Nações, os colonialismos, por razões económicas, mascaradas de
bem-intencionados credos humanistas, passaram a ser malquistos pela comunidade
internacional que afirmava, então, o direito à auto-determinação dos povos.
Isto enquanto muitos Estados, à cabeça dos quais o Reino Unido, se assumia como
o mais pragmático – como é seu timbre – e procurava aproveitar as vantagens que
ainda podia retirar desta mutação, reforçando a Commonwealth.
É nesta sequência que um
regime ditatorial e autoritário como o de Portugal do Estado Novo começa a ser
pressionado política e militarmente, incapaz de se defender face às investidas
de outras potências que, ou atacavam directamente, ou financiavam movimentos de
libertação. Todos sabemos o que se seguiu: a Guerra Colonial, a queda do regime
em Portugal e o advento da Democracia.
A descolonização foi
desde logo assumida como um desígnio nacional pelo MFA e, melhor ou pior – não
é este o local ou o tempo para o avaliar –, os colonos regressaram àquilo que
deixava de ser “Metrópole”, com sonhos desfeitos, para uma vida que mal
conheciam, para um país a acordar de uma noite de quase cinquenta anos e que,
no essencial, não havia chegado com essa intensidade ao Sol ardente da África
Portuguesa.
Angola, de entre as
demais «Províncias Ultramarinas», declara a sua independência em 11 de Novembro
de 1975 (pela voz de Agostinho Neto), abrindo caminho para o processo negocial
com o poder provisório saído dos Cravos. Também é de todos conhecido que, no
essencial fruto das suas riquezas naturais, esse recém-criado Estado soberano
foi, ao longo de décadas, campo de batalha de uma guerra fratricida e tabuleiro
de xadrez dos dois blocos da “Guerra Fria”. A quem dá os primeiros passos como
Nação independente, o pior que pode acontecer são os “amigos de conveniência”
e, aí, os EUA e a ex-URSS foram esses companheiros de jornadas que parecem
amparar a queda mas, na verdade, o que desejaram foi apoderar-se estrategicamente
do petróleo, dos diamantes, das madeiras exóticas e de tantas outras riquezas
com que a Pátria angolana foi bafejada.
Seguiram-se acordos de
curto alcance no terreno, patrocinados por Portugal ou por outros Estados, mas
só mesmo a morte de Jonas Savimbi, em 2002, reacendeu alguma esperança. Isto
sem prejuízo do então jovem José Eduardo dos Santos ter assumido a liderança do
MPLA e do país em 1979, a qual mantém até à actualidade.
O “milagre do petróleo” e
a capitulação da UNITA e de outras forças beligerantes deram o impulso
económico que conhecemos a Angola nesta primeira década do séc. XXI. Mas à
medida que o “ouro negro” corria, mais se destacavam as enormes diferenças
entre as classes mais ricas e mais pobres, mais se concentrava o poder fáctico
num punhado de homens ligados às Forças Armadas e ao Presidente da República. À
mesmo velocidade que as ONG dedicadas à promoção e protecção dos direitos
humanos vinham, de modo independente, atestando silenciamentos, torturas, falta
de liberdade de expressão e até fraudes eleitorais, embora não reconhecidas
pelos observadores internacionais. Mesmo as Nações Unidas, de jeito tímido,
como é seu apanágio, têm feito reparos ao regime.
A relação com Portugal
converteu-se, desde o início da crise de 2008, com reminiscências anteriores,
numa espécie de “neo-colonialismo económico ao contrário”, sabida que é a
influência do dinheiro angolano em empresas essenciais ao nosso tecido
económico. A preços mais ou menos de saldo e com liquidez financeira que falta
a outros investidores, não é arriscado dizer que a economia portuguesa depende,
em (boa) parte, do capital angolano. Voltamos, pois, à “real politik”, aos
apertos de mão, ao estender da passadeira vermelha a um regime que, segundo
instâncias independentes, fica a dever muito à democracia. Regressamos aos
editoriais sanguinários do “Jornal de Angola”, agitando velhos complexos
colonialistas sempre que, em Portugal, se questiona o regime de Eduardo dos
Santos ou sempre que algumas vozes menos alinhadas lembram “desaparecimentos
selectivos” ou dramas como o de Luaty Beirão e seus companheiros. Sabotagem,
conspiração para perturbar o Estado de Direito são crimes previstos no Código
Penal angolano com a mesma legitimidade com que o são em Portugal ou em tantos
outros países do mundo.
A questão não se acha no “nomen
iuris”, nem tão-pouco na Constituição de Angola que, formalmente, afirma o
Estado como de Direito democrático, consagra um amplo leque de direitos
fundamentais, reconhece a independência dos poderes e dos órgãos de soberania,
estabelece o respeito pela independência dos juízes e das suas decisões,
proclama um regime presidencialista num quadro multipartidário e consagra
mecanismos de fiscalização e revisão constitucionais que, no essencial, nada
ficam a dever a qualquer Estado-Membro da União Europeia ou do dito “mundo
ocidental”.
Mas nós juristas também
sabemos – e nem sequer é necessário fazer do Direito profissão – que existe uma
tremenda divergência entre a “law in the books” e a “law in action”. Temos ainda
bem presente que a Constituição Política de 1933 também era, na forma,
democrática e respeitadora das garantias dos cidadãos, como o eram o Código
Penal e o Código de Processo Penal. Ora, tal não impediu a existência de uma
polícia política, de presos políticos, do Tarrafal, de Peniche e de outros
lugares para onde se ia por “delito de opinião”, julgado por Tribunais
plenários em que, de facto, inexistiam reais garantias de defesa. Tal não
impediu a censura, as gigantescas fraudes eleitorais de que 1958, com o General
Humberto Delgado, foi apenas a mais emblemática. Dito de outra forma: as leis
escritas não são garantia de nada quando a “vontade animada” de quem as aplica
é dominada pelo poder político e quando os magistrados e órgãos de polícia
criminal são meras extensões da “longa manus” do Estado.
Não acredito em teses de
“cabala” montada por uma oposição internacional que apenas quer derrubar um
regime que se disse em tempos marxista-leninista, mas que parece ter há já
longos anos metido tal ideologia na gaveta. Os tempos são de ideias bem mais
simples: de criação de uma poderosa oligarquia que transformou Luanda na cidade
mais cara do mundo, com uma fachada “limpa” de altos arranha-céus, na belíssima
baía da capital, símbolo de um país que de si mesmo pretende dar a imagem de
modernidade e de desenvolvimento.
Todavia, esse mesmo
desenvolvimento parece ser para uns poucos, muito poucos mesmo. Nisto, Angola,
como outros países africanos e de outras latitudes, não é caso único. Mas já o
é quando está tão mal classificado no índice de desenvolvimento humano da ONU,
quando não tinha de ser assim. Quando não o devia ser. E isto, como se disse,
por culpas próprias das classes dirigentes (por inexperiência, ao menos numa
primeira fase, é certo – relembre-se que Kant falava na passagem das “trevas à
luz”) e alheias de potências externas que se têm servido de Angola. Portugal
incluído, claro está.
Bem conhecemos a velha
questão filosófico-política sobre a legitimidade de impor a todos os Estados um
regime democrático e respeitador dos direitos fundamentais, a qual ganhou novo
fôlego depois das consequências em parte nefastas que a dita “Primavera árabe”
tem trazido. Não estando a democracia inscrita na ordem natural das coisas, a
igualdade entre seres humanos, essa sim, creio firmemente estar. Não releva se
para o efeito recorremos ao chamado “Direito natural” ou a outras construções
jurídicas. O que é indiscutível é que cada povo tem direito a decidir sobre o
seu futuro e, portanto, sobre o seu regime político-institucional.
Se a Constituição e as
leis angolanas proclamam a escolha por um Estado de Direito, só resta aos
actores políticos e aos cidadãos respeitar as suas traves-mestras. E são elas
que, enquanto ser humano, me preocupam.
Vale isto por dizer que
celebrar quarenta anos de auto-determinação de um Povo que, por ter um
território, um poder político e uma soberania, a que se junta uma cultura,
tradições, língua(s) própria(s) e aspiração a ser independente, só podia,
efectivamente, constituir-se como Estado de pleno direito, é, por si só, motivo
de regozijo.
Não obstante, sob pena de
as comemorações serem de circunstância, não nos devemos furtar a uma objectiva
análise da realidade, por muito “politicamente incorrecta” que ela possa ser.
Esse é o maior tributo aos mortos em combate pela Pátria angolana, pelos que
caíram durante a guerra civil, pelos órfãos, pelos estropiados. E, sobretudo,
pelas crianças e jovens de Angola que, segundo nos é dado conhecer, anseiam por
mais liberdade, por um exercício pleno da sua cidadania.
Restam ainda traumas na
descolonização e, por consequência, nas relações entre Portugal e Angola? Por
certo que sim. Como já escrevi, falta a “descolonização mental” e o nosso país,
seguindo uma sua (má) tradição (que nestes tempos vale cada vez menos…), não
discute os assuntos mais traumáticos, varrendo-os para os armazéns da História.
“Estranha forma de vida” esta. Maldita maneira de encarar o passado, não o
discutindo. Esquecendo que as feridas só se curam com reflexões sobre as suas
causas e consequências. Há ainda ressentimentos de parte a parte: os mesmos que
autorizam dirigentes políticos de ambos os Estados a invocarem “ilegítima interferência
na soberania de Angola” quando se clama por mais Justiça e mais Liberdade.
Ressoam as rimas de MCK: “Irmãos, qual é a liberdade que nos deram/se
a arrogância política não cessa?/Quem fala a verdade vai p’ó caixão/que raio de
democracia é essa?/Nos livrámos dos 500 anos de chicote/mas não utilizamos a
cabeça / depois da queda do colono/em vez de uma independência/deram-nos quase
meio século de má governação.”.
Estes não são valores
propriedade de nenhum povo ou Governo. São axiomas de cidadania, como a tem
exercido, de modo irrepreensível, de entre outros, José Eduardo Agualusa. E são
as suas palavras que me guiam neste brinde que faço a Angola, nesta análise
sincopada a um país ao qual desejo todo o bem: “Quem eu sou não ocupa muitas
palavras: angolano em viagem, quase sem raça.”.
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