quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Os invisuais invisíveis

No oitavo ano deu-me uma pancada qualquer e decidi escolher Música como área de estudo para o nono ano. Foi uma escolha muito idiota porque, apesar de gostar muito de música, eu não consigo diferenciar as notas musicais, tenho imensa dificuldade em ler pautas de música -- acho que isso se deve a uma dificuldade de aprendizagem que eu devo ter --, e não sei tocar nenhum instrumento. Ah, e eu desafino tanto a cantar, que até faço o William Hung parecer um cantor espectacular ao meu lado.

Quase ninguém escolhia a área de Música e, na minha turma, havia muito poucos "músicos"; no entanto tínhamos a Margarida Bomtempo que, se não me falha a memória, era descendente do João Domingos Bomtempo. De resto, havia pessoas com deficiências -- uma menina cega e um menino paraplégico --, e muitos alunos que tinham reprovado o nono ano. A turma tinha 18 pessoas, mas era extremamente unida.

Tornei-me bastante amiga da Luisinha, que era a menina cega. Regularmente, servi-lhe de guia e ela dizia-me que eu tinha muito jeito porque ela conseguia "ler" os movimentos do meu corpo para ter uma ideia do piso, se íamos parar, etc. Ela ensinou-me a ler Braille e escrevia-me cartas que me enviava pelo correio -- são chamados cecogramas --, que eu decifrava e, até me tornar fluente, confirmava a minha tradução via telefone ou pessoalmente. Mais tarde, na faculdade, cheguei a gravar notas das aulas de francês para a Luisinha estudar. Depois de eu vir para os EUA, perdi o seu contacto.

Andar com a Luisinha em Coimbra era uma experiência interessante. Muita gente olhava e frequentemente as senhoras mais velhas diziam "Coitadinha da menina!", "Ai, benza-a Deus!", etc. Também havia pessoas que se zangavam comigo e me diziam, quase a gritar, para eu dizer à menina que havia escadas à frente, que a menina ia cair. Asseguro-vos que a "menina" nunca caiu comigo. A minha incompetência como guia não era uma coisa real, era mais impressão de quem nos via por eu não estar sempre a dar indicações à Luisinha aos berros para descasar os transeuntes. Quando se serve de guia, acaba por se criar uma certa cumplicidade entre os movimentos das pessoas; não é necessário estar sempre a falar.

O Jornal de Negócios tem a manchete "Uma economista, um sociólogo e uma jurista cega ao lado de Vieira da Silva" e nas redes sociais já se diz que esta publicação é politicamente incorrecta e deplorável. Não sei se algo mudou nos últimos 25+ anos, desde que eu conheci a Luisinha, mas não me recordo de as pessoas cegas se sentirem insultadas com o termo "cego". No entanto, há um termo politicamente correcto, que é "invisual".

A propósito do "invisual", vou contar-vos um episódio que aconteceu à Luisinha. Uma vez, ela entrou num transporte público e o motorista, muito preocupado com ela, levantou-se e avisou os restantes passageiros, em alta voz, para abrirem caminho porque tinha entrado uma menina invisível. Quando a Luisinha me contou isto, ela e eu quase morremos a rir à gargalhada. Pela reacção ao JdN, noto que, ao fim destes anos todos, o público em geral ainda não está habituado a lidar com pessoas com deficiências físicas de forma normal. Se há coisa que eles não querem é pena.

5 comentários:

  1. CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde; ed. DGS – Direcção-Geral de Saúde, 2004, pgs. 215-216:

    «... A OMS reconhece, em particular, que os termos utilizados … podem, apesar de todos esforços, estigmatizar e rotular... No entanto, ainda permanece a difícil questão de qual a melhor maneira de se fazer a referência aos indivíduos que enfrentam algum grau de limitação ou restrição funcional...

    Por diversas razões, quando se referem a indivíduos, algumas pessoas preferem utilizar o termo "pessoas com incapacidade’ enquanto outras preferem "pessoas incapacitadas". À luz desta divergência, não há uma prática universal a ser adoptada... Em vez disto, A OMS CONFIRMA O PRINCÍPIO IMPORTANTE DE QUE AS PESSOAS TÊM O DIREITO DE SEREM CHAMADAS DA FORMA QUE MELHOR DESEJEM.

    Além disso, é importante destacar que a … não é, de forma alguma, uma classificação de pessoas. Ela é uma classificação das características de saúde das pessoas... Para lidar adicionalmente com a preocupação legítima da rotulagem sistemática das pessoas, as categorias … são expressas de maneira neutra para evitar o menosprezo, o estigma e as conotações inadequadas.

    No entanto, esta abordagem traz consigo o problema que poderia ser chamado de "saneamento de termos" - os atributos negativos da condição de saúde de uma pessoa e a maneira como as outras pessoas reagem a essa condição são independentes dos termos utilizados para definir a condição. Seja qual for o termo atribuído à incapacidade, ela existe independentemente dos rótulos.

    O problema não é apenas uma questão de linguagem, mas também, e principalmente, uma questão das atitudes dos outros indivíduos e da sociedade em relação à incapacidade. O que é necessário é elaborar um conteúdo correcto e utilizar correctamente os termos e a classificação.
    ...»

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  2. Isidro, a palavra é cego, como se pode verificar pelo nome da ACAPO: Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal.

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  3. Creio que o que causou polémica não foi o "cega" em sim - foi a versão original dizendo "Uma economista, um sociólogo e uma cega ao lado de Vieira da Silva" (a "jurista" veio depois, se calhar até por causa da polémica - até pelo url se pode ver que não estava no título original).

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  4. A primeira versão é obviamente completamente idiota porque não se comparam maçãs e laranjas: ser cego não é nenhuma habilitação profissional. Às vezes não percebo o que é que os jornalistas têm na cabeça. (Já a expressão "jurista cega" dá mais informção do que "economista" e "sociólogo" porque, embora não seja nenhuma garantia de competência acrescida, é óbvio que dá um bocado mais de trabalho tirar um curso de direito quando se é cego e, portanto, presume-se que se trata duma pessoa, no mínimo, determinada).

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