terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Reportagem 56


A procissão de n. snra. da b. c. e., evento milenar que todos os anos anima as ruas da vila de f., engalanadas a preceito e bem varridas, é hoje.
Os mais atentos ter-se-ão já posto a caminho, para tal recorrendo a autocarros, comboios, táxis e viaturas próprias. Há ciclovias também para aqueles que pedalam seja em nome da saúde seja em nome de outra coisa qualquer. É bem servida de transportes a vila de f., é uma das graças da n. snra. de b. c. e., afirmam os locais, e uma prova da eficácia da procissão anual, uma snra gosta sempre mais de uma boa festa do que de um pedido assim, a seco, murmurado e receoso. Dá-se graças de melhor grado quando há alegria. E as graças dadas em meio à alegria são mais profusas, por isso é a vila de f. servida de meios de transporte tão abundosos e sortidos. Assim raciocinam as gentes da vila de f., as que são pias. Porque há as outras, as ímpias. Que não são de se deixar ficar. Na boa tradição materialista e ateia do Iluminismo francês, olham para preces, padres e procissões como espécimes de uma superstição de oprimidos a quem é um dever emancipar. Torcem os narizes ao manto cerúleo da snra. Abanam a cabeça à coroa rica que lhe adorna a fronte. Fazem esgares de vómito ao semblante úbere de compaixão que aos outros comove e humilha. Enfim, enfadam-se. Gostariam de esmagar o infame, neste caso não aquele rubicundo clérigo das novelas minhotas, com arcabuzes em casa e filhas casadoiras, mas um jovem emaciado que traz as catequistas num alvoroço e os pais numa inquietação. O pobre padre, de natural tímido e reservado, tradicionalista e afeito à comodidade das funções antigas, dos dias mansos e serenos em que não havia concorrência, perde noites a aprender a tocar guitarra. Belos tempos, em que havia apenas ateus para combater. A esses já os conhecíamos, pensava o padre enquanto procurava atinar com o acorde em lá. Era só atirar-lhes com a água benta e as velhinhas viam logo a obra do demónio nas imprecações que saíam daquelas bocas gentias. Era uma batalha ganha antes de cantar o galo, que, ao cantar em seguida de acordo com expectativas fundadas em longa experiência, confirmava a bondade da criação que assim dera aos homens um despertador de confiança. Ganha assim que o espectáculo do sol que se levanta enchia os peitos de admiração e maravilha perante o génio artístico do deus uno e trino. Triunfante dado o fenómeno ímpar da multiplicação dos seres, obedientes aos preceitos divinos e à sua extravagância. Mas estivera muito mal deus ao permitir tantas igrejas diversas em seu nome e do seu filho, tantos ramais da fé, tantas sucursais da prédica, tantos balcões do milagre. Estivera mal ao abandonar o sistema de monopólio e abraçar o mercado livre. Bolas, que se me partiu uma corda.


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