sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Nem Hayek, nem Habermas

Em 2008, o académico norte-americano Cass Sunstein publicou um artigo intitulado: “Neither Hayek nor Habermas”. O tema central era a blogosfera. Com a ascensão das chamadas redes sociais, a blogosfera saiu, entretanto, de moda. Eu e o estimado leitor fazemos parte do grupo de sobreviventes deste ecossistema. Não interessa. As inquietações de Sunstein sobre os blogues podem estender-se a toda a internet. A web trouxe coisas maravilhosas. Passámos a ter acesso a carradas de informação, inimagináveis há 20 ou 30 anos. Qual é então o problema? Sunstein achava que a blogosfera levava à formação de grupos homogéneos e polarizados em termos ideológicos. Os bloggers e os seus leitores viviam em casulos ou bolhas de informação.
Em 1945, Hayek (o famoso pai neoliberalismo) publicou um artigo intitulado “The use of knowledge in society”. Para o economista e filósofo austríaco, a questão económica fundamental é: como extrair a informação que está dispersa e desorganizada na sociedade. Este problema não pode ser resolvido por nenhuma pessoa ou direcção central. Os planeadores centrais não conseguem ter acesso a toda a informação na posse de milhões de particulares. No seu todo, a informação na posse de milhões de particulares dispersos é muito maior do que aquela que qualquer especialista pode deter, por melhor que seja esse especialista – e não se trata só de um problema de quantidade, mas também de qualidade, mas adiante. Como é que se agrega então toda essa informação dispersa e se separa o trigo do joio? A solução está no sistema de preços. Os preços funcionam como um dispositivo de coordenação e sinalização conciso e preciso. Além disso, os preços têm uma capacidade de adaptação automática à mudança. Por exemplo, se um produto deixou de funcionar eficientemente, a sua procura desce e os preços também. Ora, para Sunstein a internet e a blogosfera em particular não têm nada que corresponda a um sistema de preços. Ou seja, não há nada que agregue uma quantidade brutal de opiniões e gostos. Não é possível criar um superblog que corrija os erros e reúna as verdades. Há ainda outro senão. Os bloggers não têm um incentivo económico. Raramente, estão envolvidos em actividades comerciais e, por isso, têm pouco a perder ou a ganhar. Por exemplo, se espalharem informação falsa, têm pouco a perder. O mesmo não acontece com os media tradicionais, que podem ver a sua credibilidade comprometida.

O afastamento de Sunstein em relação a Habermas era, obviamente, diferente. O filósofo alemão acreditava que, nas discussões na esfera pública, pode vencer o melhor argumento. Sunstein acha essas esperanças irrealistas. A chamada polarização de grupo (group polarization), um conceito desenvolvido por psicólogos sociais como Robert Brown, aponta na direcção contrária. Após uma discussão, as posições dos indivíduos não se aproximam, tendem antes a extremar-se. A polarização de grupo foi testada centenas de vezes em vários países e os resultados têm sido consistentemente confirmados. Sunstein refere uma experiência realizada no Colorado em 2005. Foram realizados inquéritos para aferir as opiniões de 60 indivíduos sobre uma série de temas. Depois, formaram-se 10 grupos de seis - cinco grupos de liberais (progressistas) e cinco de conservadores. Resultados? De acordo com os inquéritos, as opiniões de conservadores e liberais não eram muito distantes. Todavia, a partir do momento que, dentro de cada grupo, começaram a discutir, tanto os liberais como os conservadores mais moderados deslizaram para os extremos. 
Sunstein avança com três possíveis explicações para a polarização, ou seja, para a concentração nos extremos. Primeira, em qualquer grupo com uma determinada inclinação, a maioria das pessoas tende a deslizar por aí abaixo. Felizmente, a maioria das pessoas ouve as outras. Mas se dentro do grupo a maioria acha, por exemplo, que o governo é péssimo, então a tendência é para prestar atenção a toda a informação que confirma essa posição e ignorar ou desvalorizar a que aponta em sentido contrário. Em segundo lugar, queremos ser bem vistos pelos outros. Por conseguinte, a partir do momento em que percebemos qual é posição maioritária dentro do grupo, tendemos a ajustar as nossas posições, pelo menos ligeiramente, na direcção dessa posição dominante. Por fim, há uma relação entre confiança, extremismo e apoio dos outros. À medida que ganham confiança, as pessoas tendem a tornar-se mais extremistas. Se os outros nos aplaudem, mais confiantes nos tornamos. E quanto mais confiantes nos tornamos...
A polarização de grupo foi estudada em pequenos grupos. Todavia, Sunstein achava que se podia aplicar à blogosfera. E, se tiver razão, também se pode, como é evidente, aplicar às redes sociais. Além da propensão natural dos indivíduos para o extremismo, as redes sociais permitem que cada um escolha a informação que recebe, desamigue, bloqueie, siga ou deixe de seguir, etc. Além disso, os algoritmos informáticos só deixam entrar a informação que confirma as nossas opiniões e preconceitos.
Em suma, como mostra a polarização de grupo, não foram as redes sociais que criaram os extremismos. As redes sociais alimentam e ampliam o extremista que há em nós.

6 comentários:

  1. Artigo muito interessante, claro e incisivo.
    Transportamos para a rede a nossa humanidade em que, parece, são os nossos defeitos mais amplificados do que as nossas virtudes.
    Eis a civilização...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelo seu comentário. Em poucas palavras resumiu bem a questão. É mesmo isso.

      Eliminar
  2. Só um pequeno ajuste: "Além disso, os algoritmos informáticos só deixam entrar a informação que confirma as nossas opiniões e preconceitos." Na realidade, é um bocado mais insedioso do que isso: os algoritmos usados são criados para aumentar o engagement, e portanto simplesmente "mais do mesmo" ou opiniões moderadas que confirmem a nossa opinião são preteridas em relação a conteúdo (mais extremo) capaz de gerar resposta. Ou seja, os algoritmos usados servem explicitamente para polarizar, e por construção levam à escolha dos conteúdos mais extremos...

    ResponderEliminar
  3. Totalmente de acordo. Um comentário importantissímo, devido a este efeito não são só "mais do mesmo" no que concerne às tendências humanas descritas no artigo.

    ResponderEliminar
  4. "Há ainda outro senão. Os bloggers não têm um incentivo económico. Raramente, estão envolvidos em actividades comerciais e, por isso, têm pouco a perder ou a ganhar. Por exemplo, se espalharem informação falsa, têm pouco a perder."

    Não acho que esse ponto seja assim tão solido - afinal, os bloggers podem não querer ganhar dinheiro, mas com certeza querem ganhar audiência e influência (porque afirmo isto - preferência revelada: se não extraissem utilidade do facto da sua opinião ser lida por outros e eventualmente influenciar outros, não gastariam tempo a bloggar), logo nesse ponto são também prejudicados se divulgarem informação falsa.

    Eu realmente até suspeito que os blogues e afins são mais dados a divulgar informação falsa que os media tradicionais, mas não terá nada a ver com uns estarem na economia monetária e outros não (muito pelo contrário - consta que grande parte da divulgação de noticias falsas vem de pessoas que fazem vida disso, vendendo depois cliques para publicidade), mas sim com o facto da esperança média devida de um jornal ser por regra maior que a de um blogue, logo ter mais a perder com a desvalorização do seu capital reputacional.

    Quanto aos argumentos para as pessoas se radicalizarem, as explicações apresentadas parecem-me completamente contraditórias com o facto observado (que quando se mistura "liberais" e conservadores, os "liberais" ficam mais "liberais" e os conservadores mas conservadores) - afinal, quase todas as explicações parecem-me ter a ver com ir atrás do grupo ou da maioria, mas se assim fosse a tendência para a radicalização seria ainda maior se alguém estivesse num grupo em que "liberais" ou conservadores fossem a maioria clara ou esmagadora.

    A mim parece-me mais uma reação quase oposta às tais de querer ser bem visto pelo outros: mais um atitude de minoria sitiada, de "Estamos sobre ataque! Cerrar fileiras! Nenhuma brecha por onde o inimigo possa entrar!". Konrad Lorenz escreveu em tempos uma coisa sobre as aldeias na Hungria e na Eslováquia: nas aldeias habitadas por húngaros, as pessoas vestiam-se de forma normal (isto é, o "normal" no contexto de uma aldeia e na altura em que o Lorenz as visitou, o que é capaz de ter sido há quase 100 anos); idem para as aldeias habitadas por eslovacos, que no vestuário dificilmente se distinguiriam das aldeias húngaras; já nas aldeias de povoamento misto, os trajes folclóricos tradicionais de cada etnia eram omnipresentes, bastando olhar para a roupa para se perceber se um aldeão eram de etnia húngara ou eslovaca.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelo comentário. Neste post, quase me limito a transcrever as posições de Cass Sunstein. Todavia, parece-me que estão bastante bem fundamentadas. Comecemos pela questão do incentivo económico dos bloggers. O ponto é que os blogbers têm, de facto, menos a perder que os jornalistas na medida em que a sua sobrevivência não depende do blogue – apesar de até haver alguns que ganham dinheiro com os seus blogues, a Pipoca mais doce é talvez o caso mais bem-sucedido em Portugal. Daí o “capital reputacional”, de que fala Miguel, ser muito mais importante para um jornal e um jornalista do que para um blog e um blogger. Claro que há blogs e bloggers sérios e de qualidade. O problema está em conseguir separar o trigo do joio. Porquê? Porque não existe na blogosfera, segundo Sunstein, nada que se compare ao sistema de preços. Em relação à polarização de grupos, o Miguel tem razão num ponto e já corrigi inclusive o post. Na experiência de Colorado que refiro não se misturam liberais com conservadores. Havia cinco grupos de cada. As posições, tanto nos grupos liberais como nos conservadores, é que tendem para os extremos com a discussão entre eles – e bastavam 15 minutos para se começarem logo a afastar das posições que tinham expressado nos inquéritos feitos previamente. De qualquer maneira, isto não altera o essencial. As pessoas tendem a aproximar-se de pessoas com posições próximas das suas e quanto mais discutem entre si mais tendem a concentrar-se nos extremos. Já agora, cito uma pequena parte do texto do Sunstein: “The Colorado experiment is merely an example of the well-established phenomenon of group polarization, by which members of a deliberating group typically end up in a more extreme position in line with their tendencies before deliberation began (Brown 1985, pp. 202– 206). Group polarization is a usual pattern with deliberating groups. It has been found in hundreds of studies involving over a dozen countries. It is undoubtedly happening on the blogosphere.”

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.