terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O elefante e a porcelana

Há uma expressão em inglês da qual gosto muito: an elephant in a china shop, i.e., um elefante numa loja de porcelana. É isso o que os primeiros dias da segunda Administração Trump têm sido. A forma como se está a atacar o funcionamento do governo federal é completamente desastrosa. As pessoas que elegeram Trump não têm noção do papel do governo federal na economia e na vida dos americanos. É de propósito que há uma certa obscuridade acerca de como as coisas funcionam, mas também há um nível de ignorância que roça a estupidez, como ilustra o facto de ser comum ver em manifestações de pessoas anti-governo ver cartazes com "Stay out of my Medicare", como se o Medicare, o programa que fornece seguro de saúde aos reformados americanos, fosse um programa divino que tivesse caído do céu e não um produto do governo federal.

Não se pode dizer que o governo deferal seja um governo perfeito, mas não é a incompetência que dizem que é e nem sequer serve apenas os americanos. Os funcionários públicos dos EUA, no geral, são das pessoas mais prestáveis e com sentido de missão. Muito deles foram voluntários em programas como o Peace Corps, em que foram para outros países para trabalhar com pessoas desfavorecidas, aprenderam outras línguas, fizeram amigos de outras culturas, etc. Nos EUA, quase ninguém sai da escola e consegue um bom emprego se não demonstrar ter uma consciência social. Isto apesar de o resto do mundo ver os americanos como uns capitalistas selvagens, sem ponta de dever cívico.

Talvez a melhor forma de ver como o resto do mundo beneficia do que os EUA fazem e estão a deixar de fazer seja mesmo suspender tudo e atirar o país e o resto do mundo para o caos. Na primeira vez que Trump governou, houve oposição que apenas impediu que as pessoas vissem as verdadeiras consequências do que Trump propunha e niguém aprendeu a lição, logo talvez assim consigamos sair deste tipo de "groundhog day". Não vai ser um processo agradável, mas dá para ver que há pessoas que vão acabar bastante mal e não acho que sejam os coitados do costume.

E quem vai salvar o país? Obviamente que vai ser o sistem financeiro, tal como aconteceu quando a Administração Bush passou anos a abusar do poder. Talvez as pessoas já se tenham esquecido do caso de Valerie Plame, por exemplo, uma agente secreta da CIA cuja identidade foi revelada por motivos políticos pelo gabinete do VP Dick Cheney. E claro, a invasão do Iraque, e outros episódios mais. Na altura, o mundo ergueu-se contra os EUA, mas se não tivesse havido o crash de 2008, duvido que o mundo tivesse ficado melhor. Aguardemos o crash.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Uma semana que vale anos

Começámos a semana com notícia de que os pagamentos do governo federal estavam congelados, mas passado um dia Trump teve de mudar de ideias. O General Mark Milley, que se opôs a Trump durante o primeiro termo, irá ser investigado e provavelmente vai ser despromovido. Depois veio a notícia na Quarta-feira de que os funcionários públicos federais tinham recebido um e-mail com um convite para se reformarem; funcionou tão bem com o Twitter, que o Musk repetiu a dose. Nessa noite, deu-se o acidente aéreo que pasou para o primeiro plano das notícias ontem.

Entretanto, as audiências já retomaram o foco em Trump: os agentes do FBI que tenham estado envolvidos em investigações relacionadas com Trump vão ser despedidos. Foi também anunciado que amanhã é o início oficial da nova guerra comercial; os alvos serão a China, o México, e o Canadá. Há uns minutos também saiu a notícia que o Justive Department despediu os "prossecutors" envolvidos na investigação do golpe de 6 de Janeiro de 2020. E ainda temos mais umas horinhas antes de terminar Sexta-feira.

O Warren Buffet já mudou o portefólio para dinheiro e mandou as acções à fava por uns tempos. Está à espera que o mercado entre em saldo, o que me parece não ter de demorar muito.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Nem com capa se escapa

Ainda não completámos o terceiro dia da segunda administração Trump, mas já se nota que é diferente da primeira. Em vez de oposição, há uma certa resignação de que temos de aguentar com a peça até ao final do termo. Como ele tem o Congresso, a maior oposição irá vir dos estados e das cidades. Se ele conseguir passar cortes de impostos e despesa, os mais afectados, negativamente, diga-se, serão os estados que votam no Partido Republicano porque são os que crescem menos e recebem mais transferências do governo federal. Mas por vontade da fortuna, Los Angeles, devido aos incêndios, terá de pedir ajuda ao governo federal para a reconstrução e decerto que Trump se rogará.

Os incêndios de Los Angeles poderão dominar esta presidência dada a escala da tragédia e o facto de as perdas para as seguradoras serem bastante significativas, logo haverá transferências da indústria seguradora [os hubs da indústria seguradora nos EUA são Des Moines (Iowa), Hartford (Connecticut), e Phoenix (Arizona), mas indirectamente gente de todo o sítio porque há instrumentos financeiros ligados a estas apólices cujo objectivo é mesmo esse: dispersar o risco] para as vítimas na Califórnia. O mais provável é que, depois de receberem as indemnizações, muitas das vítimas irão aproveitar e sair da Califórnia. Algumas ficarão nos EUA, mas outras poderão sair do país. E isto a juntar aos que sairão porque não querem viver nos EUA de Trump.

A juntar a isto, Trump parece estar interessado em promover as indústrias da inteligência artificial e a das criptomoedas, logo podemos contar com uma ou duas bolhas que devido ao efeito acelerador de Trump ainda devem estourar durante o seu mandato. Pessoalmente, não sou fã de nenhuma destas duas indústrias, mas não há como escapar.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Um caco, mas...

Há mais de 20 anos que não passava tanto tempo em Coimbra, que continua um completo caco. A minha mãe achava que era uma cidade belíssima, mas o fado diz que o seu encanto é maior na hora da despedida. Efectivamente, não penso que é o sítio que é encantador, mas talvez a ideia de lá se ter estado ou, no meu caso, cresci lá quando ainda havia coisas bastante bonitas, mas eu tenho um imenso fraco por espaços verdes e lembro-me de ir com o meu avô passear pelo parque à beira rio para andar nos baloiços e sentir-me super-orgulhosa de conseguir manter o baloiço em movimento sem ajuda dos adultos. Devia ter uns três ou quatro anos.

Nota-se que os actuais residentes também fogem da cidade: pouca gente anda pela Baixa e os sítios mais dinâmicos são ao pé de centros comerciais estilo americano, que ficam no que antes eram arredores. Não sei se alguma vez voltará a ser uma cidade com uma Baixa a sério, mas tenho especial apreço pela Loja das Meias que ainda não desistiu da sua localização na R. Ferreira Borges.

É um bocado misterioso como é que, num país e cidade com tantas regras e impedimentos legais, é possível haver uma cidade sem qualquer planeamento urbano. Os prédios são erigidos ao calhas, os espaços verdes são insuficientes ou inexistentes e os que existem não servem qualquer função para além de ocupar espaço. Os jardins de outrora como o Parque Manuel Braga à beira rio ou o Jardim da Sereia continuam uma sombra do que já foram. Também se destruíram os canteiros no Largo da Portagem, e os da Avenida Sá da Bandeira idem. A calçada está danificada em vários sítios, por exemplo, na R. Lourenço de Almeida Azevedo, algumas almas empreendedoras decidiram colocar cimento a tapar alguns dos buracos das calçadas.

Depois, continua-se com a circulação rodoviária na Baixa da cidade completamente ilógica. Deus nos livre de haver um acidente grave ou um incêndio na Baixa porque os carros de bombeiros e ambulâncias demorarão mais do dobro do tempo necessário a chegar ao local do sinistro. Claro que talvez tentem salvar as vitimas indo em sentido contrário, se tiverem espaço.

Mas houve algum progresso. Finalmente, os prédios à beira rio cuja obra estava há décadas embargada foram terminados, um absurdo ter demorado tanto tempo a resolver o assunto. Também parece que vai haver mesmo um metro que afinal é uma carreira (não tem nada a ver comigo) de autocarros porque não há dinheiro para fazer um metro a sério, apesar de se ter andado a estudar o assunto há décadas com gente muito bem paga.

E, finalmente, há um Centro de Arte Contemporânea de Coimbra, criado em 2020, ao pé do Arco de Almedina. Gostei bastante da ideia, só é pena quase ninguém o visitar porque passa despercebido, mas dizem que está num espaço temporário. Idem para o Museu Municipal de Coimbra -- Edifício Chiado, mesmo ao pé, mas a esse vou lá sempre que passo pela cidade porque alguém tem de apoiar a iniciativa e é um sítio simpático para além de ser um edifício bastante icónico da Baixa de Coimbra, desenhado pelo atelier do Eiffel. Misteriosamente, para entrar nestes dois estabelecimentos tem de se pagar com cartão multibanco português ou dinheiro porque a máquina não aceita cartões estrangeiros.

Sim, é uma cidade universitária, mas talvez na era da inteligência artificial consiga untrapassar os limites da natural.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Auspícios

No dia de Ano Novo, o meu pai teve um AVC enquanto estava no hospital. Antes do Natal, foi admitido com perda de sangue no colon, e devido a isso tinha anemia. Com o tratamento para parar a perda de sangue, ficou com níveis de glicémia altos porque é diabético. Entretanto, começou a ter dificuldade em respirar, e suspeitei que estivesse com pneumonia, o que se confirmou. Pouco tempo depois, começou a não conseguir falar e a ficar paralizado do lado direito do corpo, até que lhe foi diagnosticado um AVC. Quando a minha irmã me deu a lista de condições fiquei satisfeita, parecia-me um diagnóstico razoável para o que nós tinhamos observado. Então comprei o bilhete de avião no dia 2 de Janeiro, fiz os preparativos no trabalho para me ausentar, mas continuar a trabalhar parcialmente de Portugal, parti no dia 4, cheguei a Portugal no dia 5 de manhã e visitei o meu pai de tarde.

Em termos de trabalho, os dias 5-12 do mês costumam ser os piores e nunca planeio nada pessoal para esta altura, mas Janeiro é um mês mais lento e, ao contrário de muitas pessoas, apesar de o meu trabalho ter algum stress, também é uma forma de eu relaxar e quase meditar. É basicamente uma metodologia para lidar com incerteza, que me permite a ilusão de controlo e de redução de ansiedade. Dá jeito ter um escape diário assim, especialmente quando a nossa vida pessoal se vira de pantanas.

Antes de ver o meu pai, não sabia se era necessário falar com ele e dar-lhe permissão para morrer, mas quando o vi achei que continuava com votade de viver. Estava com um aspecto péssimo, parecia uma múmia, com os músculos da cara distorcidos, o corpo encolhido, não conseguia fechar a boca. Falei com ele normalmente e tentei relaxá-lo, não demonstrei estar chocada com a sua aparência. Não era construtivo. Ao fim de meia-hora de conversar com ele, a cara já estava mais relaxada e a parecência física já estava a retornar. Ao despedir-me deixei-lhe instruções de que dependia dele o que iria acontecer a seguir. Nessa altura, ele ainda estava em estado crítico e não era claro se iria sobreviver.

Na Segunda-feira, estava muito melhor e fiquei mais descansada porque já estava fora do período crítico. Não sei se pareço ou se sou insensível, mas nesse dia trabalhei até à meia-noite e estava tão cansada que foi fácil adormecer apesar do jet-lag. Também não gosto da emocionalidade destas situações, sempre me incomodou desde que me conheço.

Os meus colegas de trabalho foram super-atenciosos, recebi mensagens da Turquia, Brasil, EUA, a perguntarem se estava bem, se havia alguma coisa que poderiam fazer por mim. Quando ainda não sabíamos que o meu pai tinha pneumonia, disse a uma colega americana pelo Teams a minha suspeita e ela imediatamente perguntou-me se ele estava mais para o sentado do que o deitado e eu dei instruções à minha irmã pelo WhatsApp para levantar a cama. Quase de instantâneo, o meu pai conseguiu respirar melhor. Essa minha colega é mais velha do que eu e o pai dela tem mais de 90 anos, mas ainda está operacional e em melhor forma do que o meu que só tem 80.

Até agora, temos tido imensa sorte, pois apesar de no Natal e Ano Novo haver poucos médicos e enfermeiros a trabalhar (também havia uma greve), todos foram atenciosos, pacientes, e abertos às nossas dúvidas e perguntas. Quando perguntei a uma enfermeira se dava para fazer um raio X aos pulmões ela disse que só um médico o poderia pedir e pouco tempo depois o médico apareceu e falou com a minha irmã. No dia seguinte, quando voltei a ver o meu pai por videoconferência, ele já estava medicamentado para a pneumonia. Alguns dias depois, no último dia que o vi antes de regressar aos EUA, eu e a minha irmã achámos que havia outra coisa nova, talvez uma infecção urinária ou algo parecido e voltámos a falar com o enfermeiro de serviço a quem expressámos a nossa preocupação e no dia seguinte, já estava a ser medicamentado para uma infecção na próstata.

Convenhamos que o factor sorte é enorme e quando há tanta coisa a "avariar" ao mesmo tempo começa a tornar-se muito difícil apanhar tudo. Nas notícias, é comum ver-se notícias do que falha, as coisas que correm bem não merecem a mesma atenção. Mas também é uma questão de preparação da família. Por acaso, há anos li um livro chamado "How We Die" que relata algumas das formas em que o nosso corpo falha levando-nos a morrer. Esse livro ajudou-me a compreender a doença da minha mãe na altura e agora também me ajuda com o meu pai, quanto mais não seja, para ter alguma bagagem para poder conversar com os médicos e enfermeiros de forma mais informada.

Para mim, é impossível não pensar na minha mortalidade quando confrontada com a mortalidade dos meus pais, mas desde há muito que tenho tendências mórbidas e que me tenho preparado para o inevitável. A meu ver, era importante ter recursos suficientes para que os meus pais pudessem ir para um lar ou se precisassem de cuidados mais especializados. Mesmo assim, não foi perfeito e agora acho que teria sido importante que o meu pai tivesse tido algum tipo de fisioterapia enquanto estava no lar e eu não arranjei isso. E, nos últimos meses, quando falei com ele ao telefone e ele me dizia que estava com dificuldade em falar, não suspeitei que houvesse algo a acontecer no seu cérebro. Mas pronto, talvez essa lição seja importante para mim própria daqui a uns ano -- só que eu sou péssima a pedir ajuda, ainda tenho muito a aprender.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

10 anos

Comecei a escrever aqui há 10 anos. No início achei uma ideia intrigante, mas também problemática porque não achei que tivesse algo a dizer. Surpreendemente, apareceram coisas, umas mais importantes do que outras e algumas, as minhas preferidas, são as mais engraçadas. Neste período, perdi os meu três pugs, e uma das minhas amigas mais antigas, a Sónia, que tinha conhecido em 1997, quando me mudei para os EUA. Ainda não me refiz do choque de a perder e frequentemente "falo" com ela, como se ela estivesse comigo.

A maior diferença que sinto desde então é a realização de que as coisas que eu esperava para o mundo e para Portugal não se irão concretizar durante a minha vida ou sequer alguma vez. Cada ano que passa, é mais claro de que estamos num rumo perigoso, talvez porque a geração que viveu as guerras mundiais está a morrer e as novas gerações não têm noção do equilíbrio ténue que é preciso ser feito para manter a paz. Os direitos das mulheres estão a retroceder ou a não avançar e frequentemente penso quão agradecida estou de não ter filhos.

Hoje celebra-se a última noite de Hanukkah e, desta vez, acendi as velas durante os oito dias. É um exercício que para mim não é religioso, pois não sou crente, mas é dos poucos rituais que gosto de efectuar porque sinto imensa paz. Há três anos, quando a saúde da minha vizinha Birchie piorou e não sabíamos se ia sobreviver, acendi as velas a maior parte das noites como forma de lidar com a limitação de pouco ou nada poder fazer para ajudar. Também este Hanukkah tem sido inquietante porque a saúde do meu pai piorou e hoje a primeira coisa que fiz assim que acordei foi ligar o telefone para ver se tinha alguma mensagem a dizer que não tinha sobrevivido a noite.

Já há alguns dias que tinha um pressentimento de que algo não estava bem. Hoje passei parte do dia a negociar comigo própria acerca de como proceder em relação a o ir visitar. Parte de mim acha que se o for ver, ele pode ver isso como permissão para morrer; outra parte, acha que se morrer já não sofre mais; mas também há a possibilidade que, se eu o visitar, ele ainda melhore e adiamos a morte mais um tempo. É por estas e por outras que a minha mãe dizia que eu era tão lenta que era boa para ir buscar a morte.

A última vez que fui a Portugal vi a Sónia pela última vez, e este episódio com o meu pai tem me dado alguma sensação de déjà vu.