quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Nove meses

Entrámos no décimo mês do ano e para mim tem sido meio-montanha russa. O ano começou com o AVC do meu pai e a minha visita de urgência a Portugal. Isto significou que perdi a minha primeira aula para a certificação de Master Gardener e achei que a probabilidade de conseguir terminar o curso era quase nula porque se faltássemos a mais de duas aulas reprovávamos. Então em Março quando tive de ir ao Brasil em trabalho quase que tive de faltar a mais outra aula, mas regressei a um Sábado de manhã e fui directamente do aeroporto para a aula, que era uma visita guiada do Jardim Botânico. Consegui então terminar as aulas semanais perdendo apenas uma.

Depois em Abril tivemos o exame que foi outra fonte de stress, mas correu bem. Faltava depois terminar as horas de voluntariado: 20 horas de serviço comunitário, mais 20 de voluntariado para o serviço de Extensão da Universidade do Tennessee, e depois mais 8 horas de educação continuada (palestras, seminários, aulas online), que tinham de ser terminadas antes do início de Agosto para podermos participar na cerimónia de graduação a 21 de Agosto. Ainda dei mais um pulo a Portugal em Junho/Julho para ver o meu pai e ir a um casamento.

Consegui completar todos os requisitos e terminar a certificação de jardinagem, mesmo a tempo de ir ao Texas em visita de trabalho para avaliar a colheita de algodão. Cheguei ao hotel, fiz o check-in, e fui dar uma volta a pé para andar 10,000 passos. Estava quase a regressar ao hotel quando vejo que a minha irmã tinha enviado várias mensagens. O meu pai tinha acabado de falecer. "Quando vens?" perguntou ela, "Não vou" respondi.

Não queria ir ao funeral, não valia a pena, tudo o que podia fazer pelo meu pai estava feito, e tanto eu como ele não gostamos de funerais. Depois a logística do regresso ia ser um pesadelo: tinha de regressar a Memphis para pegar o passaporte e poder sair do país, depois arranjar um voo de emergência para ir a Portugal, fazer as malas, e passar uns três dias a andar às voltas com viagens não era o que eu queria fazer naquela altura. Para além disso, quando o vi em Junho sabia que era a última vez que estava com ele. E quando falei com ele alguns dias antes de ele morrer, pedi-lhe para ele morrer. Já não podíamos fazer nada por ele, o corpo estava demasiado gasto e ele não estava numa situação confortável. Disse-lhe que estavamos bem, que ele não precisava de se preocupar connosco, mas que estávamos preocupados com ele porque sabíamos que estava a sofrer.

Apesar do alívio que senti ao receber a notícia, era-me difícil pensar nele e não chorar, e não disse a quase ninguém. Passei três dias a medir o algodão com um colega que não sabia do que se passava comigo; no carro, de vez em quando começava a chorar, mas não o suficiente que ele se apercebesse. No último dia, perguntou-me se eu queria ir jantar. Não queria, tinha de terminar de preparar o relatório da visita para a reunião do dia seguinte. Apresentei os resultados e desculpei-me porque tinha de sair para ir para o aeroporto. Depois à noite, peguei o meu sobrinho no aeroporto que vinha passar quase três semanas comigo e finalmente disse no trabalho o que tinha acontecido. Deram-me três dias de folga e fomos a Nova Orleães, que é um sítio em que a fronteira entre a vida e a morte é bem esbatida--e tem boa comida.

Concumitantemente, o reino de terror do Trump adensa-se. Para além da incerteza que ele criou em termos de funcionamento da economia com as tarifas que são, mas não são, o governo federal deixou de cumprir leis e faz o que lhe dá na telha. Daqui a uns dias, irá haver um intervenção militar em Memphis, supostamente para reduzir o crime, mas é óbvio que é uma desculpa para caçar pessoas que eles não gostam e as meter na prisão. Mesmo cidadões americanos têm sido presos por engano, mas nem sei, e tirando as aventuras com o meu sobrinho e as viagens de trabalho, tenho passado bastante tempo em casa. Quando saio à rua levo o meu passaporte americano.

No trabalho esta semana, dizia aos meus colegas que receava ser presa, e eles acham que estou a exagerar. Só pessoas más estão a ser presas, asseguravam. Por enquanto, a maioria das pessoas presas são imigrantes ilegais ou pessoas que eles não querem que fiquem nos EUA, mas ainda a procissão vai no adro. Conheço algumas pessoas que estão ilegalmente nos EUA, e um deles foi preso. Tive alguma esperança que com o tempo fosse libertado, mas depois de ouvir um dos episódios mais recentes do This American Life, acho que o mais provável é a pessoa morrer na prisão porque é diabético e não lhe estão a dar comida adequada, nem medicamentos, ou deportarem-no. Se tivermos sorte, vai para o país de origem, senão, ainda acaba num país africano dos mais pobres.

É difícil acreditar que isto é a realidade porque há uma certa aura de normalidade nos dias: o sol brilha, os vizinhos cumprimentam-se, o pássaros cantam. Por coincidência, em 1995 ou 1996, li um livro de Arthur Miller chamado Focus, que é sobre um homem que não é judeu, mas acha que se parece judeu e então tem imenso medo de ser identificado como judeu. É adequado para os tempos que correm na América. A Heather Cox Richardson, uma historiadora americana, diz que as circunstâncias actuais não são únicas na história e que os EUA já ultrapassaram crises semelhantes antes e penso que sim, esta loucura irá ser ultrapassada.

Num discurso recente, o primeiro ministro do Canadá, Mark Carney, citou Leonard Cohen na canção Anthem: "There is a crack, a crack in everything | That's how the light gets in". E há alguns raios de luz, como o episódio do Kimmel; os americanos têm poder de compra e houve um número suficiente que cancelou a subscrição dos canais da Disney para a companhia voltar a trás. Estou convenciada que o desmoronamento desta loucura vai ser despoletado por motivos económicos. Quando começa a doer no bolso, os americanos entram nos eixos.

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