sábado, 8 de setembro de 2012

Pensamentos soltos sobre os cortes anunciados hoje

No acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que decidiu pela inconstitucionalidade do corte dos vencimentos dos funcionários públicos e pensionistas era perfeitamente claro que o TC considerava que o princípio da igualdade e o da proporcionalidade tinham sido brutalmente violados ao fazer recair sobre uma pequena percentagem da população um corte tão grande nos seus rendimentos. Ora, o que foi anunciado hoje não corrige o problema enunciado acima, pelo contrário:
  1. Sem prejuízo das considerações que faço nos dois parágrafos a seguir, quer os reformados quer os funcionários públicos e afins terão em 2013 uma situação em tudo idêntica à de 2012. E no sector privado? No sector privado, o que se observa é que há uma subida dos descontos para a Segurança Social (SS) em 7 pp para uma parte da população, compensada por uma descida em 5,75 pp para outra parte da população. Assim, em termos líquidos, o sector privado apenas vê a carga fiscal aumentar em 1,25 pp. Nada que se compare com os funcionários públicos que já perdem cerca de 20% dos seus rendimentos. Por outro lado, os funcionários públicos ao verem “trocado” um mês de salário por um aumento dos descontos para a SS (ou CGA, presumo), passam a pagar mais IRS. Contas por alto indicam-me que em média pagarão entre 1,5 e 2 pp a mais de IRS. Ou seja, a desigualdade entre sector privado e sector público mantém-se praticamente inalterada.
  2. Dentro do sector privado, os trabalhadores vêem os seus impostos aumentados em 7 pp e as empresas vêm os seus descontos sobre a massa salarial a descer em 5,75pp. Enquanto os trabalhadores têm uma penalização bastante forte (cerca de um mês de salário) os detentores do capital têm um bónus. Ou seja, aumenta a desigualdade entre os encargos suportados por diferentes tipo de rendimento (no caso, rendimentos do trabalho e do capital).
  3. Voltando aos servidores do Estado. Em 2012, tinha havido um esforço de equidade. Apenas quem recebia mais de 1100€ descontava a totalidade dos subsídios. Quem ganhasse 600€ ou menos, não tinha tido qualquer penalização. Esta diferenciação tinha sido elogiada pelo TC no seu acórdão. Em 2013, o aumento dos descontos será para todos. Pessoas que ganham menos de 500€ irão perder um salário. Ou seja, mesmo olhando só para os funcionários públicos, os encargos passam também a ser suportados (e de forma brutal) também entre os que menos ganham.
De um ponto de vista estritamente económico, estas alterações fiscais parecem-me apresentar algumas vantagens:
  1. De um ponto de vista global, o aumento da carga fiscal é pequeno. Estávamos todos à espera de um forte agravamento dos impostos. Isto deve indiciar que a Troika não vai ser fundamentalista com o cumprimento das metas.
  2. Fica claro que os servidores do Estado vão perder de forma permanente um salário (aquele que corresponde ao aumento dos descontos para a SS). Acaba-se com a palhaçada dos cortes que são temporariamente permanentes. Assim, é conseguida, de facto, uma redução estrutural na despesa do Estado (já não se pode alegar que é uma redução temporária e, portanto, conjuntural).
  3. É dada às empresas uma oportunidade de reduzir os salários e tornarem-se mais competitivas. Aquelas que estão mais desafogadas financeiramente, não necessitando de reduzir custos, podem sempre aumentar os salários na exacta medida em que reduzem as suas contribuições para a SS. Se isso for feito, o impacto no salário líquido dos trabalhadores é parcialmente anulado. Empresas que estavam com a corda na garganta conseguem aqui uma redução de custos importante, evitando-se assim algumas falências e despedimentos
Vejo nesta medida algumas fortes desvantagens:
  1. Uma brutal descida dos salários generalizada a toda a população e que atinge de igual forma quem tem salários mais baixos. A conflitualidade social deverá aumentar a sério.
  2. Os descontos para a SS passam de 34,75% para 36%. Encarece-se o factor trabalho. A médio prazo, isso traduzir-se-á em salários líquidos mais baixos e numa taxa de empregabilidade mais baixa. Chega-se também ao absurdo de cada um de nós descontar quase 40% do seu salário para um sistema de SS que todos sabem ser insustentável.
  3. Vamos continuar a brincar às constituições, aprovando uma lei que toda a gente sabe ser inconstitucional, mas que se vai fingir que não é. Desafiar desta forma a lei fundamental de um país é dizer adeus ao Estado de Direito. Infelizmente, já sabemos, o presidente da república há muito que jurou que não ia fazer cumprir a constituição. Infelizmente, também não se demite. Veremos como isto vai evoluir.
PS Só ouvi a comunicação uma vez e foi com a minha filha a chatear para mudar de canal. Se percebi algo de errado, corrijam-me, por favor.

12 comentários:

  1. Como é evidente, o governo é o responsável directo pelo corte de um salário dos trabalhadores do sector privado. Mas o TC e o Bloco são os responsáveis indirectos. Deram o pretexto, a margem de manobra necessária ao governo para cumprir a sua promessa de baixar a taxa social única das empresas, podendo alegar ainda por cima que foi obrigado a isso pelos sábios juízes. Sinceramente, não percebo o espanto e a indignação daqueles que ainda há dois meses se congratulavam com a decisão do TC. Estavam à espera de quê? Que o governo restituísse parte dos subsídios aos funcionários públicos e, de caminho, mandasse às urtigas a troika e o défice? Ou acreditavam sinceramente naquele rábula eleitoral do PSD das “gorduras do Estado”? Ou preferiam, em alternativa, o despedimento de milhares de funcionários públicos, aumentando assim a taxa de desemprego? A solução do governo pode não ser boa. As alternativas não são melhores.E é esse o drama de Portugal.

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    1. Eu estava à espera que o governo não desafiasse tão directamente uma decisão do TC propondo algo que padece exactamente dos mesmos problemas que a proposta anterior. Vejo que não contestas isto.

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  2. Por mim despediam-se milhares de funcionários públicos relapsos, faltosos, grevistas. À conta deles tenho eu, trabalhador do sector privado, que sustentar os desvarios da governação socialista. Era óbvio que teria que haver correcção salarial, redução de isenções e aperto no consumo. Gostaria de saber qual a alternativa que as virgens ofendidas do PS apresentam...Romper o acordo com a Troika? Com que dinheiro é que pretendem manter as promessas do tozé seguro? O país estava a precisar é que nos cortassem definitivamente o crédito. Queria ver os servidores do estado a berrar...

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  3. 1.- Creio que explicou de forma clara o que foi dito, também entendi assim.
    2.- O despedimento de funcionários do Estado Central e Local é inevitável.
    3.- Já se gastaram 55 mil milhões dos 75 mil milhões iniciais, mas dura até...até 2014. E falta pouco. Vai faltar dinheiro.E a OUTRA meta é 2016, a não ser que o TC alemão...
    4.- Com a destruição empresarial a acentuar-se, o risco espanhol, a valorização do euro (o novo garante da moeda a curto prazo é o bce...)o que torna as nossas exportações caras...
    5.-...não vejo outra solução senão a redução drástica das tarefas do Estado a que estavamos habituados.

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  4. Quais tarefas? Pragmaticamente, isto é, do dia a dia empírico, o Estado incumpre em tudo: uma geração infantilizada e à beira do estupor, hospitais que nao hospitalizam, entidades que desconhecem o vero propósito da sua fundação e o património que detêm, crime impante - quais tarefas?
    Por outro lado, em verdade vos digo, do Estado não quero nada; nunca usei. Quisera eu que o recíproco fosse verdade em todos os tempos verbais.

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  5. Está espalhada esta ideia que se perde um salário, mas convém fazer as contas.

    Por exemplo, um trabalhador privado que recebe 2500€ brutos recebia anteriomente 1625€ líquidos, e passará a receber 1450€. São menos 11%, ou salário e meio!

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  6. Quer a respeito do comentário do Rui Dantas, quer da observação do LAC de que "os funcionários públicos ao verem “trocado” um mês de salário por um aumento dos descontos para a SS (ou CGA, presumo), passam a pagar mais IRS", noto uma coisa:

    penso que, quando o IRS é calculado "a sério", no ano seguinte (não estou a falar das retenções mensais) as contribuições obrigatórias para segurança social não entram na matéria colectável (ou talvez seja assim só até um certo limite?). Assim, imagino que esse aumento da SS vá ser acompanhado por uma diminuição das taxas de retenção do IRS (se assim não fosse iria haver uma carrada de dinheiro a repor em 2014).

    E se eu estiver certo no que diz respeito ás contribuições não contarem, um funcionário público que ganhe, digamos 1.373 euros por mês, deixa de pagar IRS sobre 14.663,64 [1.373*12*(1-11%)] para passar a pagar sobre 14.636,16 [1.373*13*(1-18%)], pelo que até é capaz de ter uma redução (infinitesimal...) no IRS (claro que o salário anual líquido também vai baixar um bocadinho, pelo que no global vai ficar a perder alguma coisa)

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    1. Miguel, os descontos para a SS incidem sobre o salário bruto, tal como o IRS. Os descontos para a SS não são abatidos na matéria colectável.

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    2. Tem toda a razão - eu tinha a ideia que as contribuições entravam para aquela rubrica das "deduções especificas", mas parece que afinal só entram se forem mais que 4.275 euros (se forem menos a dedução é de 4.275, pelo que para a maior parte das pessoas o aumento das contribuições não vai levar a um aumento das deduções).

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  7. Caro Luis,

    Já viu estas contas do Negócios, aqui: http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=577305

    Privados podem afinal perder até dois salários líquidos, Função Pública perde até três

    Negócios fez as contas e apurou: afinal os trabalhadores vão enfrentar um corte no salário que levam para casa que pode chegar aos 14%, ou seja, o equivalente em termos líquidos ao subsídio de férias e de Natal. Os funcionários públicos ainda ficam pior, podem perder até três. Efeitos que o primeiro-ministro omitiu na sua intervenção.

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