quarta-feira, 2 de abril de 2014

O argumento de Trigo Pereira

Quer nos 74 signatários portugueses quer nos 74 signatários estrangeiros há várias pessoas por quem tenho a maior das considerações intelectuais. Essas minhas afinidades intelectuais são razoavelmente públicas, pelo que não vale a pena nomeá-las. A assinatura que mais me surpreendeu foi a de Paulo Trigo Pereira. No programa Prós e Contras em que participou, foi visível a sua vontade de minimizar uma série de aspectos controversos do Manifesto, procurando reduzi-lo àquilo com que todos estamos de acordo, ou seja, reduzi-lo à sua absoluta inutilidade.

O que me fez escrever esta entrada foi o último artigo de Paulo Trigo Pereira no Público ― e que tem a ver com um comentário aí em baixo de Luís Lavoura, que considera que é um facto que a dívida é impagável. Escreve Trigo Pereira:
Aquilo que achei mais interessante no debate sobre a reestruturação da dívida e o manifesto dos 74 (que subscrevi e contribui) é o argumento de que com algum crescimento económico, com excedentes primários (saldo orçamental excluindo os juros) permanentes durante décadas e com juros da dívida não muito elevados, a dívida pública é sustentável. Com estas hipóteses, claro que é
Ou seja, para Paulo Trigo Pereira é óbvio que basta algum crescimento económico, conjugado com a necessidade de termos excedentes primários ― que o próprio também defende, independentemente da reestruturação ou não ― para que a dívida pública seja sustentável. Isto é, basicamente, o que defendi em artigo publicado no mesmo jornal. Mas então, qual a necessidade da reestruturação? De novo, passo a palavra a Trigo Pereira:
Porém, quem assim argumenta trata os próximos quatro anos, os anos ainda difíceis, como uma “caixa negra”, isto é, não explica como se faz a transição no período 2014-2018. Tendo em conta que 2013 terá registado ainda um défice primário na ordem dos 0,5% do PIB, urge explicar como é que se vai chegar a um excedente de 4% em 2017.
Ou seja, o problema não é o facto de termos de ter excedentes primários por 2 ou 3 décadas ― o que aliás só é bom ― mas sim a transição dos actuais défices para algum excedente. Muito bem, aqui estamos a recentrar a discussão em termos racionais. Era bom que se entendesse que manter excedentes por duas décadas é algo completamente diferente de manter a austeridade por duas décadas. A manutenção de um excedente tem exactamente os mesmos efeitos recessivos que tem a manutenção de um défice, ou seja, nenhuns. O que custa é a transição, ou seja passar de um défice crónico para um excedente crónico.

Paulo Trigo Pereira põe a questão como deve ser posta. A conversa de 2035 não é para ser levada a sério. O que conta são os próximos anos e é isto que os Manifestantes devem explicar. Quais as consequências para os próximos 3 a 4 anos de reestruturar a dívida, incluindo a dívida detida pelo sector privado? O que aconteceria se como sequência disso Portugal visse o seu acesso aos mercados altamente dificultado (leia-se, se a taxa de juro disparasse)? O que aconteceria se os bancos portugueses que detêm títulos de dívida pública vissem esses títulos a desvalorizar? O que aconteceria se o Banco Central Europeu deixasse de aceitar os títulos de dívida pública portuguesa como colateral? Quais as consequências de uma crise bancária? Têm assim tanta certeza de que os custos são menores do que procurar chegar a excedentes orçamentais? Não há riscos?

Tal como Trigo Pereira, não tenho dúvidas de que chegar a excedentes orçamentais tem custos. Custos económicos e sociais. Por isso, nos últimos anos, sempre que escrevi para os jornais foi a discutir alternativas para fazer essa transição até 2020 da forma mais suave possível. Esse é, na minha opinião, o principal contributo que a esquerda portuguesa devia dar para o actual debate económico.

12 comentários:

  1. De facto, caro Conraria, e no fundo, as glosas dos signatários ao manifesto visam, sobretudo, reduzir o manifesto a um não manifesto - nas suas palavras - à sua inutilidade. Qual o sentido de aduzir a reestruturação sem invocar a possibilidade, ainda que remota, de o Estado Português a declarar unilateralmente!!?? O manifesto vai ainda mais longe. Abjura essa hipótese!! Reduz a coisa a um clamor de misericórdia dirigido à boa vontade de credores!! Os pressupostos retiram-lhe toda a expressividade, premência e sentido de dever ser!! Pouca convicção nas consequências!! Não pode um tipo apontar que quebra e pedir o amparo de um colchão!! Demasiada tibieza!
    E muito me admira a relutância de Trigo Pereira. Como obviaria, Trigo Pereira, a manutenção de deficits orçamentais, com novos juros, e as necessidades de financiamento reprodutivo da economia com a reestruturação!? Como se reestrutura a poupança apodando-a de acumulação constrangedora e, de seguida, se pede à poupança que faça sementeira!!? Há dificuldades e aporias várias, sem dúvida. O pé esquerdo é lento, problemático, arrisco e dou um tiro no direito para equilibrar o joelho!!
    Sinceramente, não compreendo, ultrapassa o meu reduzido entendimento. Problema meu, sem dúvida!!

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  2. Luís Aguiar-Conraria,

    De 2011 a 2020 é quase uma década de violentíssimo ajustamento que sucede uma década por todos apelidada de "década perdida". A questão não é o simples reestruturar ou não. A questão é antes criar espaço para discutir o que se passou e a resposta ao que se passou desde que Portugal entrou no Euro. Parece-me que essa é a principal motivação dos moderados que se juntaram ao manifesto. A questão é se o único caminho seriam estes dez anos de austeridade, se a resposta à crise não dificultou antes a sua resolução. Isto dando de barato que após 2020 o país esteja em boas condições, o que não me parece nada óbvio.

    A questão da reestruturação tem que fazer parte de um movimento europeu coordenado que pretenda melhorar a posição dos países devedores no plano político europeu e que centre o debate nas curas certas para o problema certo. Até porque nada de substancial foi feito para que os problemas que nos trouxeram aqui não voltem assim que haja sinais de retoma, a não ser que se considere que isto foi uma crise de sobreendividamento dos Estados ou um problema cultural dos países do sul que, com o susto, foi mitigado.

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  3. E depois de se consensualizar este ponto de partida, seria possível discutir o assunto de forma mais estruturada: assumindo um crescimento do PIB nominal bastante conservador (digamos, 2% ao ano), e a melhoria do saldo orçamental que daí decorre (por via do aumento das receitas fiscais), i) qual o real* volume de medidas de austeridade que é preciso implementar para atingir os saldos primários necessários? ii) que tipo de limites à despesa pública nominal teriam de ser implementados para conseguir o mesmo efeito orçamental, num horizonte temporal mais prolongado? iii) que tipo de acordos interpartidários seriam necessários para validar, junto da Troika e dos mercados, esta abordagem mais 'gradualista'? iv) e como é que os custos económicos e sociais destas duas alternativas comparam com a hipótese de reestruturação da dívida pública?

    *«real» porque a melhoria do saldo é em parte (e em grande parte) inercial. Uma melhoria do saldo primário de 1,5% ao ano não implica, nem de longe nem de perto, medidas de consolidação orçamental dessa magnitude.

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  4. Pedro Romano
    E para apreciar o tema ainda de forma mais estruturada, não é necessário partir da situação actual do país ( desemprego, stock de capital, dependência externa, padrão de especialização ) e aferir das necessidades de crescimento da Despesa Interna, digamos que até 2020? É que senão o exercicio sobre o volume de austeridade, que até pode funcionar aritmeticamente, pode ser insustentável e indesejável socialmente. É que além de validar junto da Troika e dos mercados, talvez fosse útil validar social e politicamente ( e provavelmente os acordos interpartidários não chegam. É que um dia a casa vem abaixo.

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  5. Pois, Pedro Romano, o problema é esse mesmo. É preciso discutir ESSES pontos e comparar alternativas, mas isso ninguém faz. Está tudo entretido a gritar que tem razão, que o país não aguenta (de um lado) e que os mercados vão ter um ataque cardíaco (do outro).

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  6. Lendo a análise que o FMI faz à sustentabilidade http://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2014/cr1456.pdf (a partir da pág. 52) acho que o risco de correr mal é grande, daí que faça sentido pensar em reestruração, rescalonamento, reprofiling, a palavra que menos susceptibilidades ferir, mas que dê resultados.

    Tendo em conta os fantasmas alemães, que impedem o BCE de ser mais activo, a deflação pode ser um risco bastante significativo que prejudica a trajectória da dívida portuguesa . Concretizando, pegando no estudo sobre episódeos de dívida excessiva feito pelo FMI http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2012/02/pdf/c3.pdf , parece, mas pode ser pessimismo meu, que estamos mais perto do exemplo do Reino Unido em 1918, do que da Bélgica em 1984...

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  7. A dívida e os juros devem ser pagos? Em que circunstâncias e quais as razões?

    A justiça do pagamento dos juros deve ser considerada como independente das oscilações dos valores dos últimos? A "obrigação" de pagar os juros é idêntica quer estes sejam de 1%, 2%, 10%, 20% ou 50%?

    As questões da dívida são questões de justiça, ou trata-se essencialmente de relações de força política e económica? Se for o último caso, que armas políticas e diplomáticas podem ser usadas? (Nenhumas porque o Estado português é demasiado fraco?)

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    1. Caro Miguel perdoe-me a intromissão, apenas um esclarecimento. A segunda questão só será aplicável à negativa ou dupla negativa à primeira, certo?! Na terceira questão refere-se à constituição de obrigações de taxa de juro variável ou aleatória, não!?

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    2. Justiniano,

      tem toda a razão, eu devia corrigir o meu comentário que foi escrito à pressa típica das caixinhas de comentários. O terceiro parágrafo devia ser o primeiro. O primeiro devia ser o segundo. E o terceiro não é senão um dos casos particulares a considerar. Mesmo assim não fica perfeito, embora um bocadinho mais ordenado.

      O que eu pretendia com estas perguntas era estimular o seguinte esclarecimento: quais são os pressupostos políticos que estão a montante dos comentários e debates mais ou menos técnicos que aqui se fazem a propósito da dívida ? Apenas isso. Tenho a impressão de que as pessoas tendem a refugiar-se no tecnicismo (entendido aqui, no contexto do blogue, com um grãozinho de sal) para evitar a polémica e a cacofonia políticas. Simplesmente, sinto que na situação presente seria sobretudo importante apresentar uma ideia clara daquilo que poderá ser um projecto desejável para o futuro do país (e da Europa, na medida em que pudermos influenciar o seu curso), para em seguida desenhar uma estratégia beneficiando dos saberes, experiências e arsenais técnicos de que dispomos. Caso contrário, corremos o risco de andar numa espécie de movimento do bêbado (brownian motion), sem ser capaz de distinguir os objectivos que desejamos dos constrangimentos com que nos confrontamos.

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    3. Bem compreendido, caro Miguel!!
      Começo pelo fim porque apreciei a sua frase que indelevelmente liga os pontos essenciais da discussão " distinguir os objectivos que desejamos dos constrangimentos com que nos confrontamos". Dos dois parece haver um que é falho, no sentido em que nos debruçamos por completo no sobreconhecimento dos constrangimentos com que nos confrontamos e desconhecemos os objectivos que desejamos!! Desconhecemos, entre aspas, claro está!! Verdadeiramente, o único consenso político existente é a Europa e o Euro e tudo o que isso for (conhecido e desconhecido) !! A Europa e o Euro que apesar de não terem sido, verdadeiramente, discutidos, pelo menos entre nós, foram sacramentalmente definidos!! A estratégia, parece-me, é exactamente a mesma, seguir fazendo-se surpreendido ante a adversidade!! Depois há o grande salto em frente como apontei já ali abaixo!!
      Um bem haja,

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  8. Caro Conraria, a propósito de Trigo Pereira, da qualidade, acuidade e argúcia das suas leituras sobre a Europa, permita-me, leia-se a sua última coluna no Público. Adverte aquele. "A União Europeia continua assim num meio caminho que será insustentável a prazo, pois ou progride para maior integração política ou desintegra-se.", secundado por muitos que o vêm aventando, Soromenho Marques talvez o mais assíduo. Esta conta é recorrente e insuspeita na pena de tão ilustres prosadores do nosso burgo!!
    Não se questionarão, com as mesmas letras, da hipótese da desintegração por maior integração política, o ocaso do grande salto em frente!!?? Não lhes passará pela ideia de que esse passo em frente, onde cabe a tal mutualização de dívida, possa ser, substancialmente, o fim da tal Europa!!?? Desconfio que seja, verdadeiramente, o caso!!
    Para quem deseja um novo início seria ouro sobre azul!!

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