18.
Pronto, leva lá a bicicleta.
Alcides Zuzarte, distraído crónico, entendeu literalmente a frase do rapaz do
café. Não viu qualquer bicicleta quando olhou em volta, o que não o impediu de
em silêncio felicitar a humanidade por ser tão generosa. Ali estava alguém que
queria oferecer-lhe uma bicicleta, não importa se nova se velha, e ainda que
não tivesse nenhuma bicicleta para concretizar a oferta, oferecê-la assim
verbalmente era já admirável. Talvez lha oferecesse logo que pudesse, e mesmo
antes de guardar uma para si. Ainda que apanhado de surpresa pela falta da
bicicleta, não se pode dizer de Alcides que foi apanhado de surpresa pela boa
vontade humana, tão bem representada por aquele moçoilo baixo e de cabelo
espetado. Já em outras ocasiões testemunhara esta disponibilidade afectuosa
ligando homens e mulheres num metafórico abraço fraterno e numa concreta
partilha da propriedade. Por vezes não podia deixar de ficar perplexo porque,
tentando aceitar o que lhe ofereciam, e deitar a mão às bicicletas, ou
colaborar na plantação de batatas, ou localizar numa esquina a mesma pessoa que
parecia estar à sua frente, as reacções dos indivíduos fraternais faziam
desconfiar de que afinal não queriam mesmo oferecer o que ofereciam, fosse
porque lhe arrancavam das mãos as bicicletas, quando efectivamente as tinham,
fosse porque soltavam uma gargalhada quando o viam dirigir-se a um batatal ou a
uma esquina. Mas não sendo de seu natural desconfiado, estes pensamentos
indignos depressa abandonavam o espírito de Alcides, e tomava sempre as
reacções referidas como expressão de cuidado com a sua integridade física,
posto que andar de bicicleta é um desporto arriscado, as enxadas são armas com
potencialidades letais, e nas esquinas espreitam perigos para os quais não se está
preparado. Ou então como confusão momentânea, porque ser generoso é como sentir
as bolinhas de um espumante subirem-nos nariz acima em direcção à cabeça, e a
antecipação da felicidade que ser solidário gera é estonteante. Por esta razão,
trazia sempre Alcides nos bolsos pacotes de caramelos. Gostava tanto destes
quadradinhos castanhos que queria que todos à sua volta tivessem a mesma
experiência. Mas as crianças deitavam-nos fora, avisadas pelas mães de que não
se deve aceitar nada de estranhos, nem mesmo caramelos. E os adultos olhavam
para ele de olhos arregalados e esqueciam-se de desembrulhá-los. Nada disto,
porém, infirmava as convicções de Alcides. Se as crianças recusavam os
caramelos, seria porque treinavam desde cedo a disciplina que lhes garantiria o
sucesso dos seus projectos futuros. Se os adultos não os deglutiam, seria
porque sabiam que o corpo humano é frágil e o excesso de açúcar um veneno. Que
maravilha conviver com gente assim, pensava sempre que lhe deitavam a língua de
fora ou lhe faziam um manguito. Tantos gestos solidários, reflectia. Mesmo há
bocado, depois de lhe oferecer a bicicleta, o rapaz do café lhe fizera um, que
vira pelo canto do olho ao sair. Que orgulho na espécie, exultava ao cair
desamparado num buraco fundo em que não reparara, de tal modo era distraído.
Se tens muitas destas, seria giro publicares um livro com a colecção. Eu compraria...
ResponderEliminarÉ parte de uma de várias séries. Um amigo meu foi a uma editora, onde lhe disseram que só liam coisas recomendadas por "pessoas do círculo deles." Outras tentativas deram resultados semelhantes. Ora, eu não sou de um círculo. Obrigada!
ResponderEliminarEssa situação está generalizada e não é só porque qualquer edição é muito cara, a começar pelos depósitos obrigatórios. É também, porque os escritores que já têm mercado são ditatoriais sobre as suas editoras, e de diversas maneiras. Por causa disso, no entanto, um deles perdeu, parece, e muito, nos últimos anos. Nestas condições, é impossível que não estejam a surgir novos circuitos e novas maneiras de produzir livros e também é impossível que, na Universidade do Minho, não existam pessoas com preparação suficiente para darem-lhe esse tipo de informação - se estão dentro de casulos, isso não sei, mas não é provável.
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