terça-feira, 7 de junho de 2016

História gótica



77. O Senhor Pécuvard limpou as gotas de suor que lhe escorriam testa abaixo.
O lenço, aos quadrados, estava já bastante molhado. Arrastar uma mala tão cheia de geringonças pesadas e manter ainda assim a loquacidade tinha o seu preço, e Pécuvard só conservava a sua forma redonda porque depois de cada demonstração se sentava frente a um prato cheio das carnes mais suculentas que conseguia encontrar, acompanhadas das batatas mais tostadas que era possível assar sem que se transformassem em carvões, e de um cesto de pão de onde tirava grandes pedaços que engolia empapados de molho ou de generosas doses de manteiga. Se no lugar onde estava havia fumados, comia-os também e com uma voracidade que engasgaria qualquer um menos ele. Era rápido a mastigar e a encher a boca com novas garfadas empurradas garganta abaixo com canecas de cerveja. A cada golo ficava com espuma na ponta do nariz. Limpava-a com a manga do casaco porque lhe fazia cócegas e distraía-o do assunto sério que era a comezaina. Assim que esvaziava a travessa, e ainda antes de acabar de mastigar a última iguaria que pusera na boca, geralmente o pedaço de pão com que limpara o prato, levantava um dedo indicando a quem o servia que trouxesse mais de tudo. Havia ocasiões em que o dedo era levantado três vezes. Mas hoje Pécuvard levantou-o apenas duas. E, depois do prato principal, terminou a refeição com cinco nacos de queijo, três pudins e várias fatias de um bolo cheio de creme e com cerejas açucaradas no topo. Não esperava vir a encontrar numa aldeia soturna como esta papança tão saborosa e em tanta quantidade, e ponderou o facto estranho de ser soturno um sítio com comida capaz de fazer gargalhar uma freira carmelita. E, reflectindo sobre este mistério enquanto trincava umas bolachinhas de amêndoa, adormeceu depois de um arroto sonoro e dos copos de aguardente com que acomodara o banquete no seu estômago amplo. Não era fácil inferir a partir do modo como ressonava se tinha feito negócio com o farmacêutico. Este ficara sem dúvida interessado nas máquinas que Pécuvard montara em cima do seu balcão de mármore, mas o facto de o vendedor ter levantado o dedo pedindo mais comida apenas duas vezes poderia indicar que o apetite lhe teria sido estragado por falta de sucesso no comércio. A mala continuava pesada. E na testa de Pécuvard podia ver-se, para além do suor, um vinco de preocupação. Era tamanho este vinco que a estalajadeira, assistindo da porta da cozinha ao espectáculo do almoço deste Gargântua diminuto, receou não ter o homem esfomeado com que pagar o conduto que quase lhe esvaziara a despensa. Como era possível que um homem com uma ruga assim dormisse tão profundamente como dormia o homenzinho, não conseguia Madame Licodu compreender. Ela, quando estava preocupada, e era tanto o que a preocupava desde a chegada de Ada, a frescura dos lençóis e das toalhas, a água quente que tinha de estar sempre disponível, os seus achaques de romance de cordel, que nem os pós de Dragomir conseguiam fazê-la descansar. Perdida nas suas inquietações, Madame Licodu nem reparou que o homenzinho de fato aos quadrados acordara entretanto, com o aspecto de quem chegara a uma decisão e sem que desaparecesse o vinco da testa. Parecia até ter-se tornado mais fundo. A decisão não seria, certamente, agradável. De tal modo que quem o observasse prontamente se aperceberia de que Pécuvard teria preferido chegar à decisão contrária. Mas fora a esta que tinha chegado e, ao olhar pela janela para o castelo escuro no topo da colina, um segundo vinco, mais profundo ainda, atravessou-lhe a testa.

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