sexta-feira, 16 de setembro de 2016

É preciso sempre recomeçar

Está tudo dito, mas como ninguém escuta é preciso sempre recomeçar, dizia o André Gide. No primeiro semestre de 2007, foram despedidos cerca de 300 mil operários do sector automóvel em Detroit. Nessa altura, poucos perceberam que este acontecimento era o tal bater de asas da borboleta que provoca tempestades no outro lado do mundo. Muitos desses trabalhadores eram subprime, uma designação dos bancos americanos para clientes que não eram prime. Ao contrário do que reza a lenda, não se tratou apenas de uma história de ganância dos bancos. A esquerda americana viu com bons olhos que, finalmente, os negros e hispânicos tivessem a oportunidade de comprar casa, contrariando assim décadas de discriminação. Não é só em Portugal que ter uma casa é um objectivo de vida para muita gente. Passa-se o mesmo nos EUA e na Inglaterra. Desde a primeira metade do século XX que ter uma casa passou a ser visto como uma condição da liberdade individual.
Infelizmente, a maioria dos gestores sabe pouco ou nada de história. Se soubessem, saberiam que as crises imobiliárias e, por consequência, as crises financeiras são cíclicas e inevitáveis. Vinte anos antes, em 1987, os EUA sofreram também uma brutal crise imobiliária. Dessa vez, não alastrou à Europa. A economia ainda não estava tão interconectada como hoje. Na cabeça dos gestores e economistas, muitos demasiado novos para terem sequer memória da crise de 1987, as grandes crises eram uma coisa do passado, quando ainda não havia os conhecimentos e os instrumentos sofisticados do presente. Esta arrogância existiu em todas as épocas. Não há muito a fazer em relação a isso. Como também não parecem ter grande efeito os sucessivos avisos sobre a situação actual da economia portuguesa. Como dizia o poeta, as pessoas não aguentam demasiada realidade ou, numa versão mais prosaica, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. A evolução das taxas de juro da dívida portuguesa a 10 anos é um sinal claro do que nos pode esperar. Os investidores em títulos mostram uma desconfiança cada vez maior em relação a Portugal. Pode acontecer o que aconteceu em 2010 e, de repente, ficarmos sem crédito. Eu sei, eu sei, os avisos e os sinais servem de pouco ou nada. Ainda por cima, temos o afecto do nosso presidente e o sorriso descontraído do primeiro-ministro para nos tranquilizar. De qualquer maneira, ao contrário do aconteceu em 2007, desta vez ninguém se poderá queixar de ter sido apanhado de surpresa.

2 comentários:

  1. A crise de 2008 foi muito além da boa vontade da Esquerda. O crédito não foi estendido só a hispânicos e negros porque havia muitos brancos que também obtiveram crédito que não deviam. Depois houve a particularidade de algumas pessoas terem conseguido financiamento para múltiplas propriedades, ou seja, não era tudo para casa própria, havia muito crédito para propriedades de investimento. A aquisição de casa foi incentivada pela administração Bush porque era uma das únicas estatísticas que o governo podia usar para se vangloriar -- tudo o resto estava uma grande porcaria porque os cortes de impostos da Segurança Social não tiveram grandes efeitos reais.

    No entanto, o resto do mundo foi muito responsável por essa crise, pois a crise só teve fôlego porque as poupanças do resto do mundo foram canalizadas para o sector imobiliário americano. A tua referência à crise anterior é bastante oportuna; essa crise, a savings and loan crisis (https://en.wikipedia.org/wiki/Savings_and_loan_crisis), que se desenrolou entre 1986 e 1995, foi bastante dura e nos estados onde foi mais forte não se verificaram excessos em 2008. Por exemplo, Houston e Oklahoma, dois casos que me são mais próximos, não sofreram grande apreciação com os excessos do subprime.

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  2. Em Portugal, nunca houve tâo pouco dinheiro e nunca o dinheiro foi tão barato. Não é preciso ir ao estudo a Coimbra para realizar que estamos a cavar um buraco. O governo, este ou qualquer outro, nada pode fazer. O comboio de Franckfurt não pode levar no mesmo comboio os passageiros que vão para destinos opostos.

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