domingo, 11 de setembro de 2016

Pensar bem

As minhas primeiras memórias são de andar na praia com a minha mãe. Apanhávamos e apreciávamos conchas e búzios, construíamos buracos na areia com muito cuidado para não desmoronarem, transportávamos água do mar no meu balde branco e azul claro. Ela chamava-me para eu prestar atenção às coisas mais insignificantes, como o tamanho das conchas, a sua cor, a sua forma. E, à medida que o tempo passa, interesso-me cada vez mais por insignificâncias.

Na praia, todas as minhas roupas eram de malha de algodão e o amarelo claro era uma cor que eu usava muito. Não sei muito bem o porquê de tanto amarelo, não sei se era uma das cores preferidas da minha mãe porque nunca cheguei a perguntar-lhe qual a sua cor preferida. A textura dos tecidos era igualmente importante. Havia um vestido de turco, com um fecho à frente, do qual eu gostava muito. Nessa altura, eu achava-me a bebé com mais estilo do mundo inteiro, mas o meu mundo não era assim tão grande.

O tubo de creme solar também era amarelo, mas era um amarelo torrado, quase alaranjado. Aquela marca tinha sido recomendada pelo Sr. Abel, o farmacêutico que aviava as receitas à minha mãe. O creme vinha numa bisnaga de alumínio, era branco, muito espesso, e tinha uma fragrância deliciosa que eu adorava. Gostava tanto que, mais tarde, já mais velha, eu subia a um banco de cozinha e abria o armário onde estava guardado para o ir cheirar. Toda a minha roupa de praia cheirava a esse creme e foi uma pequena tragédia pessoal, que vivi em silêncio, quando a minha roupa preferida me deixou de servir, passou para a minha irmã, e depois foi dada a outra criança.

A última vez que cheirei o creme foi quando tinha cerca de 8 anos, não me lembro exactamente, antes da última vez que vi o tubo, pois o meu pai chegou a casa, agarrou no saco que continha todos os medicamentos e o creme solar e deitou tudo fora. A minha mãe não estava em casa; estava no hospital porque se tinha tentado suicidar. O método escolhido tinha sido comprimidos. Ele achou que, se ela não tivesse mais comprimidos em casa, não mais tentaria o suicídio, mas a estratégia não era muito boa porque eram os comprimidos que também a mantinham viva. Era uma questão de tempo até haver mais comprimidos em casa; mas creme nunca mais houve aquele. Ainda hoje sinto a sua falta e, quando estou numa loja, às vezes cheiro cremes solares à procura daquela fragrância. É um produto com mais de 40 anos, acho que já não é fabricado.

Nos dias seguintes fomos visitar a minha mãe algumas vezes ao hospital psiquiátrico. Percebi que havia algo de errado e que, se calhar, era melhor ser muito bem-comportada e nem sequer chorar. A parte mais difícil do meu plano era mesmo as visitas: chegar ao hospital e caminhar até chegarmos ao pé da minha mãe sempre a pensar que era muito importante que ela não me visse chorar era quase uma tortura. Formava-se um nó muito apertado na minha garganta que me doía imenso, mas nunca cheguei a chorar.

A dimensão do que tinha sucedido não chegou a penetrar no meu cérebro completamente nessa altura, só alguns anos mais tarde. Depois de acontecer, apenas achei que os vizinhos olhavam para mim e para a minha irmã e sentiam pena e eu não gostava que sentissem pena de mim. E quando a minha mãe chorava por causa da depressão, e continuava a dizer que queria morrer, eles diziam sempre "Pense nas suas filhas. Tem aqui as suas filhas para criar."

Pensar. O problema era esse mesmo. Ela não andava a pensar muito bem, o que é uma característica das pessoas que sofrem de depressão. E quando o nosso cérebro não pensa bem, há muitas coisas que acontecem que não aconteceriam se conseguíssemos pensar bem. É difícil para quem pensa bem apreciar os dilemas de quem pensa mal. É que nós olhamos para as pessoas que não conseguem pensar bem e achamos que é uma escolha que fazem, mas não é.

Ninguém olha para um paraplégico e pensa que a pessoa não anda porque escolheu não andar. E ninguém olha para o paraplégico e pensa que é preguiçoso; mas para uma pessoa que tenta o suicídio nós olhamos e, às vezes, pensamos que foi cobarde, que tentou escolher o caminho mais fácil. Só que quando a pessoa faz a escolha, não está à procura de um caminho; está à procura de um fim. Todos nós teremos esse mesmo fim, só que alguns de nós pensamos que esse fim não precisa da nossa ajuda, nós conseguimos esperar por ele.

O dia 10 de Setembro foi o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, mas todos os dias podem ser esse dia. Tentem pensar bem e ajudem os outros a fazer o mesmo.

18 comentários:

  1. Um texto com cabeça, tronco e membros. Obrigado, Rita.

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  2. Muito bonito o seu post de hoje. E muito comovente.
    20 valores!

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  3. Obrigada por este post tão importante e tão, tão bonito, Rita.

    (eu também tinha uns vestidos de praia turcos, com fecho de correr; ao ler-te, voltaram-me à memória, com as suas riscas coloridas; e senti de novo o cheiro do protector solar. Não era igual ao teu, vinha em frasco, mas o seu cheiro era na mesma sinónimo de férias.)

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    1. Obrigada, Zu. Eu acho muito interessante que, ao fim de tantos anos, sejam as coisas mais simples que nos trazem lembranças e nos fazem reviver alguns momentos bons que tivemos.

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  4. Não chorei, mas uma furtiva lágrima andou a sai não sai aqui ao canto do olho.
    Está a ver?

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  5. "É difícil para quem pensa bem apreciar os dilemas de quem pensa mal". O pior é quando só tarde de mais damos conta de que alguém próximo de nós anda a "pensar mal" e que os indícios estavam todos à vista.

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    1. Isso mereceria um outro post, Manuel, mas julgo que há uma questão que deve ser considerada: depois da tragédia, quando nós avaliamos os indícios, já não somos a pessoa que éramos antes da tragédia. É a própria tragédia que nos permite ver o que antes era tão obscuro. Acima de tudo, temos de aceitar que somos seres imperfeitos e que, de vez em quando, as nossas capacidades estarão aquém do que seria necessário para evitar coisas más. Apenas podemos esforçar-nos por melhorar, mas é impossível eliminar todo o risco.

      Mas são sempre situações muito complicadas e, muitas vezes, há muita coisa fora do nosso controlo, até porque a primeira condição para ajudar alguém é essa pessoa querer ser ajudada, o que nem sempre se verifica.

      Obrigada :-)

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  6. "antes de ser diagnosticado/a com depressão, baixa auto-estima ou stress, assegure-se que não está rodeado/a" por inanes nem está a ser afectado/a por inanidades". Inclusive quando se tratar de comportamentos chocantes.
    PS
    László Bölöni, n. 1953, treinador/"coach" de futebol em França, em Portugal, na Roménia, na Bélgica e na Arábia disse um dia, no início deste século, e no mesmo sentido, que o problema de certo jogador, anteriormente muito produtivo, é que deixara de "conseguir pensar", ora porque tinha começado a drogar-se, e a degradar-se, ou vice-versa. Seja ou não seja o mesmo que "pensar bem", há situações em que o nosso privilégio é sermos capazes de "continuar a pensar", ainda que tão depressa como fugir de um perigo iminente ou usando as palavras certas e o melhor tom depois de realizar uma pequena ponderação. Daí até serem fórmulas universais vai uma grande distância...

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    1. Obrigada, Isabel. As coisas parecem mais claras quando vistas depois de muitos anos...

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  8. Obrigada Rita pela partilha. Tão bonito e tão doloroso. Lembrei-me de Florbela Espanca - "É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo..."

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    1. Obrigada. Não conhecia o texto da Florbela, apesar de já ter lido algumas coisas dela.

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