domingo, 1 de janeiro de 2017

Negociar com negociadores

Recebi, há umas semanas, um email do A. com uma PDF em anexo. Fiquei logo em estado de alerta porque ele nunca me envia e-mails e a primeira reacção de uma pessoa que pensa sempre o pior -- eu -- é: "O computador do moço tem um virus e eu não vou abrir nada que ele me manda!". Perguntei o que era aquilo à L., que me diz que é um teste de personalidade, que ele enviou a um montão de gente para as pessoas se "auto-conhecerem". Ah, já tinha percebido! Que seca, então... Não pensei mais no caso e prossegui com a minha vida.

Vim a D.C. e estou em casa deles. Alguns dias depois de cá chegar, o A. traz-me um livrete escrito em inglês e russo (eles os dois são ucranianos) e, enquanto eu estava encurralada no sofá a ver televisão -- muito raro para mim e o que aconteceu a seguir solidifica a minha crença de que ver TV faz-nos mal --, mete-me o livrete no colo e dá-me uma caneta. "O que é isso?", pergunto eu. "É o teste, faz o teste!", diz ele, "É para veres com que pessoas te deves dar." "Ó que seca!", penso eu outra vez, mas não há escape.

Lá faço o teste de personalidade de Fisher e o resultado é que sou dos tipos "Director" e "Constructor". "OK, e...", digo-lhe eu. "És Director, precisas de um Negociador. És Construtor, precisas de um Construtor. És perfeitamente compatível com a L." Eu já lhes tinha dito a brincar que, se eles algum dia se divorciassem, eu casava-me com a L. A piada não calhou muito bem porque, mal eu disse "Se vocês algum dia se divorciarem...", ouviu-se a respiração de ambos parar ao mesmo tempo e ocorreu-me que podia ter matado de choque os meus anfitriões ao verbalizar tal hipótese. É que o A. também é Director e, como tal, precisa da L. Negociador.

"Lê o livro!", diz o A. "Qual livro?", digo eu. "Há um livro onde se explica o teste e as personalidades. Tu e eu não somos compatíveis, os Directores magoam as pessoas." Que vida a minha! Não sou assim tão inepta socialmente, mas sou franca com os meus amigos e, se não podemos ser francos com os amigos, quer dizer, se temos de andar com pezinhos de lã quando conversamos com eles, então a amizade que temos com eles não é assim tão boa. Para além disso, os meus amigos também são francos comigo, o que eu aprecio, mesmo quando me chamam maluca, "Director", e outras coisas mais.

No dia em que fui ao Consulado português para o recenseamento eleitoral -- estou tão feliz, já posso votar para algumas eleições em Portugal, só demorou quase 20 anos para eu me organizar; notem que isso é consequência de eu ser Director: demoramos muito tempo a decidir-nos a fazer coisas, mas depois vai tudo a eito! --, cheguei mais de 30 minutos antes da hora marcada e, para fazer tempo, investiguei onde poderia usar o meu tempo de forma produtiva.

A caminho do consulado, havia uma livraria em segunda-mão e, do outro lado da rua, um café-restaurante: o Le Pain Quotidien. O plano imediato foi ir beber um sumo de fruta e legumes fresco, enquanto terminava de planear o resto do dia. O plano final foi atacar a livraria antes do Consulado, dar um pulo à Phillips Collection (museu), que tem uma sala Rothko, almoçar no café do museu, depois enfiar-me no metro e ir visitar o Hirshhorn Museum & Sculpture Garden (arte moderna e contemporânea), e jantar "fry bread" no Mitsitam Café do National Museum of the American Indian (sugestão da nossa Helena Araújo).

A livraria Second Story Books, ao pé de Dupont Circle, onde fui, tem livros antigos coleccionáveis, livros usados de menor valor, e objectos interessantes. Não é a única loja que têm, pois há mais uma em Maryland, mesmo ao pé da casa dos amigos com quem estou -- acham que é coincidência ou o universo a dizer que me adora? Para terem uma noção do que estamos a falar, esta livraria, tem apenas uma das maiores colecções de livros raros, que estão à venda, do mundo. Andem lá, admitam: é claro que o universo me adora...

Mas eu não sabia nada destes detalhes quando visitei a livraria e, como o tempo era curto, passei-o a dar uma olhadela nos livros que estavam em saldo em carrinhos, no passeio. Encontrei tanta coisa gira, mas contive-me e apenas saí com dois livros de citações escritos à mão (commonplace books), de um tal Norman, uns livrinhos pequeninos sobre arte japonesa, "L'Avare" do Molière, o "How to Save Your Own Life" de Erica Jong, e um livro de poesia usado, de Francis Thompson, que o tal Norman tinha adquirido em 1989 e que está bastante anotado tanto por ele, como por uma dona anterior, uma senhora de seu nome Barbara, que frequentou a Emmanuel College.

Pensei que me tinha saído muito bem, pois não tinha exagerado nas compras, apesar de não ter grande espaço na bagagem, pois penso levar apenas bagagem de mão. Quando cheguei a casa e mostrei os meus livros à L., ela perguntou-me se estava louca. Onde é que eu ia meter aquilo, os livros eram pesados, é claro que eu tinha exagerado. Tudo o que ela disse passou-me ao lado porque eu estava mais entretida a explorar os meus livros novos. No dia seguinte, diz-me ela: "Sabes, estive a pensar e, se tu quiseres comprar mais livros, podes sempre enviá-los pelo correio porque até é barato enviar livros e CDs." É por isso que eu e a negociadora nos damos bem: ela também é facilitadora dos meus vícios.

Fui ver a localização da outra loja da Second Story Books na Internet e não só é perto da casa da L. como fica a caminho do cabeleireiro dela e ela tinha uma marcação na semana passada, logo podia dar-me boleia (mas havia dúvida de que o universo era meu amigo?). A loja de Rockville, em Maryland, é tipo um campo de basketball cheio de estantes de livros, até acho que será maior do que isso, pois havia uma porta que dava para um anexo e não cheguei a ver a dimensão dessa parte. Andei por dentro da parte principal e encontrei livros que me agradavam e que ia pondo de parte (para facilitar a vida dos clientes, na parte da frente da loja, há umas estantes onde podemos ir colocando as nossas selecções, para não termos de carregar tudo pela loja).

Terminei as compras quando a L. telefonou a dizer que já estava pronta e se eu queria boleia para casa. Achei que sim. Fui pagar e o senhor perguntou-me se precisava de uma caixa. "Parece que preciso", disse eu, e ele deu-me uma caixa vazia onde se transporta vinho, muito jeitosa, com uns buracos para enfiar as mão e tudo. Paguei quase $91 por 17 livros, pois todos os que seleccionei tinham 40% de desconto. Comprei um livro do Picasso para a L. para ela não se chatear muito comigo, e outros para dar a alguns amigos.

Quando cheguei ao carro e ela viu a caixa, levei o raspanete do costume. As frases que a L. me diz mais frequentemente são: "What the hell is this?", "What do you need this for?", "You are crazy!", e "You have too much junk!". São todas muito merecidas e aplicáveis à minha pessoa, pois eu tenho tendência a ter muita coisa. Depois lamentou-se de me ter dado ideias malucas. Disse-lhe que tinha comprado o "Crime e Castigo" do Dostoyevsky, pensando que a fizesse feliz, mas ela achou que eu tinha cometido um erro: porque razão compraria eu um livro tão comprido, ainda por cima do Dostoyevsky? Prosseguiu com a explicação do livro para meu benefício: "'Crime e Castigo' tem para aí 600 páginas; as primeiras 300 são de um fulano a planear um crime, as restantes são de ele a arrepender-se do crime. É só; não tem acção nenhuma. Dostoyevski não tem acção nenhuma, é muito aborrecido." "Só que eu ainda não li, nem me aborreci pessoalmente", pensei eu...

A L. já me tinha explicado que era irracional comprar livros: mais valia ir à biblioteca, requisitava os que queria, lia-os, devolvia-os, e ia buscar outros. Simples, muito simples, e permitia-me poupar dinheiro e espaço. Mas eu gosto de ter livros: há livros em todas as divisões da minha casa, menos na cozinha e nos quartos de banho e, às vezes, antes de eu sair para o trabalho, abro um livro, leio alguma coisa -- umas frases ou um poema --, só porque sim. De todos os vícios que eu podia ter, gostar de ter livros não é muito mau; só é um bocado chato quando tenho de mudar de casa.

Mostrei os meus livros à L.: uma reedição de um livro de Georgia O'Keefe, um de Klimt, dois de Picasso, um do Barroco português, um sobre as memórias de alguém que foi viver para Portugal (fiquei curiosa acerca de como o autor vê a sociedade portuguesa), um sobre a Inquisição espanhola, poemas de Alexander Pope, poemas de D.H. Lawrence, etc. Disse-lhe que lhe tinha comprado um livro do Picasso, mas ela podia escolher outro. Pediu-me o "Crime e Castigo" -- vá-se lá perceber por que raio quer ela um livro tão aborrecido, ainda por cima que já leu -- e, quando viu o de Klimt, disse "Adoro Klimt" e também lho dei. Passados uns minutos perguntava-me se queria ir à procura de uma caixa para enviar os meus livros pelo correio. É muito fácil negociar com negociadores...






2 comentários:

  1. Rita,

    Conheço muito bem a Second Story Books. Quase ao lado, fica o Pesce, um restaurante onde se come peixe quase à nossa moda.
    Há outra livraria do género, espectacular, maior mas mais desordenada, que fica, sei lá ir mas não me recordo do nome nem da rua nem da loja, naquela zona atrás do Capitólio, do lado direito.
    Posso saber pormenores se estiver interessada em passar por lá da próxima vez que for a DC.

    ResponderEliminar
  2. Ainda estou por aqui, mas acho que não irei conseguir ir a essa desta vez; mas claro que, se o Rui se recordar do nome, eu investigarei na próxima visita. Obrigada.

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.