segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O problema não é haver rituais de entrada (praxes), é estes terem tomado um formato errado e se prolongarem por demasiado tempo.

Retomo aqui o que escrevi sobre as praxes em 2009... 
Algo que escrevi num momento em que não havia nenhum incidente em especial. 
Escrevi apenas porque considero que é possível ter uma universidade melhor. E isso também passa por mudar as praxes. Relembro apenas que as praxes mudaram muito nos últimos 20 anos, e é também a isso que me refiro. Há 20 anos muitas universidades não tinham praxes, e outras tinham umas actividades dessa natureza durante a primeira semana de aulas e nada mais. A tradição de praxes nos moldes actuais,  tal como a prática do uso generalizado do traje, é muito mais recente do que muitos suspeitam. 
Saliento que a minha oposição, não é tanto, contra a existência de actividades mais ou menos radicais de praxe. É mais contra o formato que as praxes assumiram (pouco imaginativo, aproximando-se do tipo militar ou do das claques), a sua extensão, e o que absorvem de energia, ajudando a criar um vazio de actividades académicas alternativas, que deviam florescer nos meses seguintes à entrada dos alunos.  
Isto é, o que está errado, é  terem passado de umas brincadeiras (com mais ou menos imaginação e mais ou menos violência, educação, gosto) feitas nos primeiros dias do começo do ano (com, em alguns casos, mais alguns momentos pontuais), para a actividade central, que dura quase o ano inteiro, que absorve grande parte do tempo e energia e molda a ideia do que é estar na universidade, como se estar na universidade devesse ser algo parecido com estar no exército ou numa claque de futebol, e não um período em que a afirmação deve salientar o individuo, a imaginação, a criatividade, a diversidade.  

Em baixo segue o artigo

Insultar para integrar será uma boa ideia?

Hoje o principal problema das praxes não é a sua violência. É antes o seu carácter e a sua extensão. As praxes são longas, duram meses, absorvendo demasiado tempo e energia dos alunos. Evoluíram para um modelo militar, em que os alunos ficam em sentido, marcham e recebem ordens e insultos como se estivessem na recruta.

Este modelo serve bem os propósitos da formação de soldados, onde a uniformização e o sacrifício do indivíduo face ao grupo são objectivos importantes, mas dificilmente se percebe na universidade, onde se pretende estimular a criatividade, inteligência e imaginação, e onde a diversidade e a afirmação da diferença deveriam liderar numa fase em que cada aluno procura afirmar a sua identidade.

Mariano Gago tem razão quando, no seu recente comunicado, diz que "a degradação física e psicológica dos mais novos como rito de iniciação é uma afronta aos valores da própria educação e à razão de ser das instituições de ensino superior e deve ser eficazmente combatida por todos".

De facto não lembra a ninguém acolher novos elementos numa instituição começando por os insultar, e continuando a arrastá-los durante todo o ano em actividades inúteis, que acabam por os impedir de se integrarem numa vida académica digna desse nome.

Este modelo de praxe já existe há alguns anos. Há quinze anos já havia abusos e muita estupidez. Afinal, já na altura, os alunos menos interessantes eram os mais interessados em praxar. Mas as coisas acabavam em quinze dias e não se via alunos a marchar ou em formação a olhar para o chão durante meses. A praxe não se prolongava tanto, nem era vista como a principal actividade académica. Hoje, em muitas universidades, é.

Para muitos alunos, a praxe confunde-se com a vida académica. Confunde-se porque ocupa quase todo o primeiro ano e por ser a principal actividade dos alunos do último ano. Confunde-se porque os códigos e rituais da praxe se reproduzem nas festas e noutras actividades.

O modelo de praxe actual é um reflexo do empobrecimento da participação cívica e da vida cultural dos estudantes do ensino superior português, mas é também uma causa deste. Este modelo reproduz em cada nova geração a mesma ideia boçal do que é a vida académica. Os alunos mais interessantes acabam por se ver obrigados a viver à margem desta ou a emigrar de Erasmus para paragens mais estimulantes.

Este empobrecimento está a criar uma geração para a qual passar pela universidade não significa estar mais informado ou envolvido com o mundo. A maioria dos alunos do ensino superior não lê regularmente jornais ou livros, não vai ao teatro, à ópera, não vê cinema diferente do de Hollywood. Para a maioria, a vida académica não cria novos hábitos culturais. 

Este quadro é muito diferente do vivido pelos alunos de outros países europeus. A maior parte destes países não tem praxe. E, no entanto, tem alunos mais integrados numa vida académica saudável.

Quando um aluno entra numa universidade inglesa, é convidado a participar na "Welcome Week". Esta é marcada por jogos, desportos, concursos e actividades culturais e por festas diferentes todas as noites.

A ideia é dar as boas-vindas (por isso "Welcome"). A segunda ideia é integrar os alunos. Assim, esta semana, para além de actividades recreativas e festas, também os convida a aderir a organizações e associações (desportivas, culturais, políticas, lúdicas, etc.) que apresentam as suas actividades e tentam angariar novos sócios. Os alunos juntam-se ao clube de remo, de rugby, de futebol, ou de montanhismo, e também às sociedades de leitura, grupos de teatro e de poesia. Em paralelo, são convidados a participar em organizações como a Amnistia Internacional, Greepeace, WWF, ou a OXFAM.

Todos estes clubes, associações e organizações fazem parte da vida académica europeia e contribuem para a integração dos novos alunos, em paralelo com actividades curriculares e as festas e bares onde os alunos se encontram ou se apresentam com as suas bandas de garagem.
É por esta razão que a "Welcome Week" é apenas uma "Week". Esta semana não é suposto ser a vida académica, serve apenas para abrir e apresentar os alunos à vida da universidade, deixando que escolham a integração com que mais se identificam.

Uma enorme diferença face à praxe que hoje se pratica em Portugal. Uma tortura chata, longa, ordinária e desinteressante, dirigida principalmente pelos alunos menos interessantes, em que os que entram são chateados em actividades sem graça onde apenas conhecem pessoas do mesmo curso.

Este modelo está condenado a desaparecer. Não por proibição. Mas porque os alunos têm de querer mais do que isto. Não por ser imoral. Mas por ser chato e foleiro. É importante começar desde já a dar alternativas dentro dos campi universitários, trazendo mais actividades culturais, promovendo actividades interessantes para os alunos do primeiro ano e estimulando a participação cívica dos alunos. Este é um papel em que os professores, os actuais alunos, o Ministério da Cultura e o do Ensino Superior têm de apostar, se queremos mudar o que é ser um universitário e se queremos que a universidade dê o seu contributo para a vida cívica e cultural de Portugal. 

Ver o original em
http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/insultar_para_integrar_seraacute_uma_boa_ideia.html

2 comentários:

  1. Só agora (com a tal reunião, que correu mal, de uma Comissão de Praxe em Dezembro) é que tomei noção que a praxe já não são os 3 dias que eram no meu tempo.

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  2. Caro Manuel Cabral,

    Com o devido atraso (o seu artigo é de 2009 e terminei a minha licenciatura em 2002), a minha experiência foi consideravelmente diferente da sua (tanto como caloiro como, posteriormente, membro de uma comissão de praxe).

    Quando era caloiro a praxe durou um mês (grosso modo) e ocorria nos intervalos e após as aulas. Terminava com a Semana Académica do Porto e a Serenata ao Caloiro. Quem me praxou não era, nem de perto nem de longe, as pessoas menos interessantes do curso. As pessoas menos interessantes não participavam em nada de académico, sejam praxes ou tunas. Iam às aulas e iam para casa. Muitas delas nem sequer consigo reconhecer de vista.

    Posteriormente, o tempo da praxe (ou, para ser mais exacto, da recepção ao caloiro) foi diminuíndo de forma orgânica: começaram a aparecer provas intermédias no curso (que não existiam), a faculdade instituiu um sistema de "reforço" das competências em matemática e física dos novos alunos (por deficiências da formação no secundário) e o tempo reduziu-se. Aquilo que era feito com alguma calma ("treinar" os caloiros para funcionarem em grupo, ensinar as musiquetas - do perfeitamente aceitável ao altamente brejeiro, não fosse uma Faculdade de Engenharia -, ensinar o próprio código da praxe) acelerou e perdeu-se algum do espírito mais descontraído, tornando, de facto, algumas ocasiões autênticas secas, quer para os caloiros quer para quem praxava.

    Disse que parte da praxe se assemelha à recruta - é verdade. Uma das partes fundamentais da minha praxe foi sempre a formação de um espírito de grupo, primeiro entre os caloiros, depois de curso, faculdade e finalmente, universidade. E parte dessa formação passava por colocar os caloiros "unidos" contra quem praxava. Em serem solidários entre eles, em recusar que um deles sofresse consequências pelos outros (e, por consequências, podemos estar a falar de fazer flexões ou ficar com o almoço a meio). Porque a ideia não é principalmente a integração dos alunos numa estrutura hierarquica (essa existe e, sendo a progressão automática, não carece de introdução formal) mas antes a integração entre os próprios. É pegar num conjunto de miúdos (porque o são) que, na sua maioria, não se conhecem de lado nenhum, e ao fim de pouco tempo tê-los a partilhar casas (se de fora), transportes, conversas no bar e apontamentos nas aulas.

    Deu como exemplo o que se passa em Inglaterra: a minha mulher tirou o doutoramento dela lá e, é verdade o que diz. O que não diz - e é igualmente verdade - é que após o período de recepção ninguém o conhece nem Vc. conhece ninguém. Aquilo aconteceu, passou e acabou. Não existe ligação entre quem supostamente ajudou a integrar e os novos alunos. Essa ligação acaba por aparecer fruto das festas e bebedeiras, que me parece um meio muito mais arriscado de tal acontecer. Muitas pessoas não fazem a mínima ideia quem são os colegas de curso, especialmente de anos mais avançados. Não há a cultura de responsabilização dos mais novos pelos mais velhos (os apadrinhamentos académicos), nem apontamentos, nem nada disso. Fazem algo para "parecer bonito e integrador" mas, depois, reina o individualismo.

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