sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

post entre o divã do psicanalista e a mesa do café

O que mais me custa, nestes 26 anos de Alemanha - mais ainda que a falta de sol e de mar -, é quando as pessoas me dizem que eu, como estrangeira, não posso dizer ou fazer certas coisas. Não acontece muito, mas sempre que mo dizem é desagradável e doloroso. Logo a mim, que estou tão bem no centro do meu mundo, vêm dizer que não posso criticar, não posso sugerir, não posso pisar o risco? Como é que lhes passa pela cabeça que eu posso ser menos que eles?!

Traumatizaram-me. E deve ser por causa deste trauma profundo que estremeço sempre que se diz que os refugiados que não cumprirem as nossas regras devem ser sumariamente recambiados para a terra deles. Que estranho conceito de dignidade humana e de liberdade são os nossos, se apomos permanentemente uma espada de Dâmocles sobre pessoas que estão num terrível estado de dependência e fragilidade? E como será viver permanentemente sob essa ameaça? Atravessas no vermelho - volta para a tua terra! Largas um piropo a desconhecidas - volta para a tua terra! Roubas um telemóvel - volta para a tua terra! És indisciplinado na sala de aulas - volta para a tua terra, e leva a tua família contigo! Andas de bicicleta no passeio - volta para a tua terra! Mandas bocas homofóbicas - volta para a tua terra!

Vamos com calma. Melhor será ficar assente que daqui não sai ninguém, e que as pessoas que precisam da nossa ajuda não são seres humanos de segunda, e muito menos reféns da nossa generosidade. Se queremos que os refugiados se integrem, temos de treinar em conjunto algumas regras básicas: intangibilidade da dignidade humana, igualdade perante a lei. A melhor maneira de ensinar é dar o exemplo.

Surpreende-me a falta de confiança nos seus próprios valores que a Europa tem revelado. Serão eles tão frágeis e abstrusos que uma vaga de imigração correspondente a menos de 1% do total da população os pode pôr em causa e até destruir? Temos tão má impressão dos nossos modelos de vida e de sociedade, que não acreditamos que eles possam ser atraentes para quem vem viver entre nós?
Acredito que, muito pelo contrário, se soubermos ser o que dizemos que somos, os nossos novos concidadãos saberão orientar-se neste quadro. De facto, o maior desafio não é ensinar-lhes os nossos princípios e regras - é nós próprios termos consciência deles, e saber conceder aos recém-chegados a mesma margem de tolerância que concedemos aos nacionais. De certo modo, a crise dos refugiados pode ser uma oportunidade para a Europa tomar consciência de si própria e reencontrar-se consigo.

Recentemente, numa mesa de café, ouvi alemães queixarem-se da "invasão". Naquele tom exaltado de quem tem a coragem de afrontar o politicamente correcto, acusavam a dificuldade de trabalhar nas salas de aulas com alunos que não falam alemão e não respeitam as professoras, a esperteza de alguns refugiados que "chegam cá cheios de exigências", o "só estão interessados no nosso rico dinheirinho", os "inúmeros casos de abusos sexuais, que nenhum jornal se atreve a publicar" - os queixumes habituais, com o habitual refrão de estamos perdidos, vem aí o fim do mundo.
Não entendo: então uma escola com dezenas de professores adultos não é capaz de dizer a um adolescente que ganhe juízo? E qual é a dificuldade de dar a um refugiado aquilo a que ele tem direito, e fazer-lhe ver que há limites legais e processuais para atender os seus desejos e necessidades? O que leva pessoas de uma sociedade - tão avançada e com tanta maturidade democrática como esta - a inventar um papão para poder exibir um medo irracional e infantil?

À mesa do café, respondi que me sinto nos antípodas desses medos, e que o meu problema é outro: é sentir-me egoísta por ter uma casa de férias que quase não é usada quando há tantas pessoas a viver em condições dramáticas. Ou o desconforto perante o número cada vez maior de casas vazias, usadas para especulação. Como é possível brandirmos os valores cristãos e humanitários da herança europeia, e pormos a protecção da propriedade privada acima da ajuda humanitária? Perguntei-lhes: o que impede o Estado de requisitar as casas vazias para alojar refugiados? Desde que as liberte mal sejam realmente necessárias, e faça as obras de recuperação que for preciso, não vejo nisso qualquer inconveniente. Além de ter uma grande vantagem: em vez de se criar guetos de refugiados, as pessoas são distribuídas uniformemente pelas cidades, uma condição sine qua non do sucesso na integração.
Olharam-me incrédulos: eu, como estrangeira, não me devia pôr a dar conselhos aos alemães sobre as regras, a política e a gestão da propriedade privada deles. Olharam-me com ar de "volta para a tua terra!"

(Um divã de psicanalista junto a esta mesa de café seria uma bela medida de saúde pública: os meus amigos tratavam a sua Angst, e eu a minha angústia da rejeição.)

2 comentários:

  1. A meu ver (e que sei eu?)estamos a avaliar um problema que na sua essência e generalidade, é indiossincrático.
    É evidente que pelo meio, outros o compõem, como refere na peça.
    Mas na realidade, é uma nação rica que acolhe sem pedir para acolher, pessoas sem meios de subsistência e se obrigada por regras humanitárias a providenciar-lhes condições de vida dignas, pagas pelo esforço do trabalho de população dessa nação.
    É evidente que tudo isso; que parece à partida um problema de magnitude 10 na escala de Richter, pode ter uma solução harmoniosa e equilibrada. Para tanto, é necessário, a cima de tudo, desconstruir o medo e os mitos. A partir daí, educar e seguir a sugestões que a Helena, tão bem assinala.

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  2. "De certo modo, a crise dos refugiados pode ser uma oportunidade para a Europa tomar consciência de si própria e reencontrar-se consigo"

    Pode. Pode ser que leve as mãos à cabeça e se interrogue como é que, 70 anos depois do holocausto, assiste conformada, entre cidadãos, movimentos cívicos, partidos políticos, parlamentos eleitos, jornalistas, de todos os países, a uma barbaridade instigada pelas suas instituições, sobre países ricos e pacíficos, onde o respeito pelas minorias e mulheres, que caracteriza o essencial dos valores europeus, existia. Quem acredita que sem a conivência, promoção e armamento dos "rebeldes" pelo Ocidente teria acontecido uma guerra civil na Síria levante o dedo.
    https://www.youtube.com/watch?v=Xb959nKgtZg

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