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quinta-feira, 19 de maio de 2016
História gótica
68. De um homem que morre tantas mortes como as que morreu Toríbio Ortega suspeitar-se-á, facilmente, que não morreu nenhuma.
E esta suspeita nada tem a ver com um fantasma, o fantasma de Toríbio Ortega, que passaria de morte em morte intocado, assim acontece com os fantasmas, que nem facas nem balas trespassam. Neste caso a suspeita era ainda mais fantástica. Em suma, que Toríbio não era capaz de morrer. Cada homem tem as suas capacidades e não tem as dos outros. O padeiro capaz de torcer a regueifa que o louco comerá como se de um pastel da nata se tratasse seria talvez capaz de comê-la também, mas nunca como o louco que tem da regueifa a sua concepção peculiar e nesta inclui o facto de poder comê-la como se fosse um pastel de nata, ou um bolo de arroz, acompanhada apenas de um café. A costureira que cose o vestido da diva não é capaz de cantar num palco como ela, que não é capaz de coser um vestido. São tantos os exemplos que deixamos por aqui a apresentação deles. Quanto a Toríbio, seria incapaz daquilo de que todos os outros homens eram capazes, tanto quanto se sabe, que poderá significar a afirmação de que todos os homens são mortais com que provamos a mortalidade de Sócrates senão isto, que Sócrates, que é homem, é, pois, mortal. Toríbio poderia ser a instância que estraga o silogismo. Mas não, porque basta torná-lo hipotético para que Sócrates continue a morrer com necessidade quando chegar a sua hora contingente. E ainda que tivesse fugido da cicuta, em outra circunstância morreria, mas preparado. Talvez que a morte que não chegava a Toríbio fosse apanhá-lo a qualquer momento. Talvez Toríbio não fosse homem mas outra coisa. Aqui, o pensamento perde-se porque um homem que não é um homem mas parece um homem só pode ser o cumprimento de uma profecia maligna. Vivo, Toríbio embarcou num paquete e fez ao contrário a viagem transatlântica das histórias da bisavó. Em Sevilha, aspirou o cheiro das flores de laranjeira cuja lembrança enchia de lágrimas os olhos da anciã. Em Paris tentou em vão não aspirar o fedor do Sena. Assim que pôs o pé nas terras dos bárbaros da Germânia, sempre brutais, sempre implacáveis, sempre frios e sistemáticos, Toríbio experimentou na espinha um arrepio e não se demorou por lá. Os banhos da Boémia acalmaram-no. Continuou para leste, o que era inesperado para quem pensasse que em terra Toríbio iria repetir os passos dos tios e bisavós que repetira no mar. O leste atraía-o mais do que o ocidente que lhe tinha sido atribuído por uma velha demente, e mais do que as terras índias dos que tinham sido seus pais. Nos comboios que escolhia alguém tocava um violino incansável e alguém um acordeão. Não sentia falta dos sons das Américas. Abandonara-as sem hesitar. Nem as feridas das batalhas com o seu comandante, agora transformadas em cicatrizes, lhe causavam nostalgia. Também disto era incapaz, da saudade. E assim que chegou a Zselyk dirigiu-se ao castelo negro que passaria a ser a sua nova habitação.
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