quarta-feira, 1 de junho de 2016

História gótica


 73. "Larga!" As mãos tratadas do farmacêutico agarravam pelo colarinho um miúdo sujo e descalço, com ranho a escorrer pela cara abaixo e as mangas da camisa cheias de nódoas endurecidas confirmando que serviam também de lenço.
"Larga ou chamo o meu papá!" O miúdo esperneava e se não estivesse de costas para Dragomir as canelas deste estariam nesta altura vermelhas de pontapés e os braços marcados com dentadas. Sim, porque apesar de descalço o miúdo parecia ter força suficiente nas pernas para causar danos em quem conseguisse  acertar. "Larga, senão chamo a minha avó e ela lança-te um feitiço que te caem os dentes!" Dragomir mantinha a coisa suja o mais longe possível do seu nariz delicado, o mais longe de que era capaz sem deixar de agarrá-lo pela camisa. "Larga, ou o meu tio tira-te um olho e os meus primos dão-te tanta pancada que te partem os ossos todos!" O miúdo torcia-se e remexia-se tentando libertar-se das mãos inesperadamente fortes do boticário. "E chamo a minha mamã e ela despeja-te uma panela de sopa a ferver pela cabeça abaixo! E os meus irmãos arrancam-te as unhas e as minhas irmãs penduram-te pelas orelhas e a minha tia corta-te às rodelas como um chouriço!" Ia gritando cada vez mais alto mas a expressão do farmacêutico era mais de nojo pela porcaria agarrada ao cabelo do miúdo, um cabelo que só podia estar pejado de lêndeas e piolhos gordos e bem alimentados, do que de apreensão pelas ameaças que lhe eram lançadas de modo tão convicto. "O meu avô corta-te a barriga ao meio como um porco e a minha cunhada coze-te aos pedaços! E o meu sobrinho serra-te as orelhas e a língua muito devagarinho!" Gritos, palavrões, insultos pelo meio das ameaças. "E também tenho sobrinhas e elas vão-te coser o nariz e a boca que nem consegues respirar! E vais ficar a escorrer sangue das chicotadas que o meu tio-avô te vai dar e a minha tia-avó vai-te dar tantas no rabo com a colher de pau que vais ficar sem te poder sentar até à Páscoa!" O miúdo tinha uma grande família logo ali à mão, era o que podia concluir-se, e esgotados os parentes podia ser que finalmente parassem os impropérios e as ameaças. Não pararam. Mas o farmacêutico parecia não ouvir os berros do fedelho. Arrastou-o pela praça fora e a criança fincava os pés com tal teimosia que o chão ficou cheio de sulcos. "Dou-te uma patada que até vês estrelas!" O rapazola não se calava e começavam a aparecer pessoas de todos os lados da praça, de bocas abertas e divertidos com o espectáculo. "E dou-te murros e enfio-te os dedos pelo nariz acima e torço-te os braços e dou-te pancada com tanta força que até ficas com os joelhos desfeitos e vais ter que andar com uma muleta todo torto!" Dragomir entrou na taberna puxando o animalzinho furioso e chamou o estalajadeiro. Este fazia as vezes da autoridade na terra porque era o único que tinha uma cave com uma porta suficientemente forte para prender meliantes. Claro que esta cela improvisada tinha um inconveniente, porque era ali que o taberneiro armazenava os presuntos, mais as pipas de vinho e de cerveja que servia aos clientes e já se imagina o que acontece quando se junta meliantes com tais tentações. Não lhes resistem, cantam pela madrugada dentro, choram chamando pelas mães, pedem perdão a deus pelas suas vidas transviadas ou falam com os demónios para que os ajudem a fugir dali. A sorte do taberneiro era que por aquelas paragens apareciam muito poucos facínoras como estes e não ficava muito elevado o prejuízo. "Este bandido entrou pela minha farmácia dentro e roubou duas caixas de confeitos e um frasco de xarope. E ainda cuspiu para os meus ladrilhos como se estivesse numa", Dragomir ia dizer taberna mas lembrou-se a tempo de onde e com quem estava, "numa pocilga." A cara severa do taberneiro fazia adivinhar que não haveria da parte daquele sucedâneo de juiz qualquer clemência. Não admira, pois, que tenha empurrado a criança para a prisão improvisada, que encerrou com uma volta resoluta da chave.

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