segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Pela vizinhança

Um casal de vizinhos que mora perto de mim tem um enorme horror aos Democratas e frequentemente me explica que o partido Democrata não tem qualquer ideia do que os Estados Unidos são. Os meus vizinhos têm mais de 80 anos e são do tempo em que os Democratas eram o partido dos negros, da classe trabalhadora branca, e dos segregacionistas do sul dos EUA.

Hoje as pessoas associam o racismo aos Republicanos, mas a dificuldade em passar os dois Civil Rights Acts do século XX (Eisenhower teve um em 1957, LBJ outro em 1964) não era por causa dos Republicanos, mas sim por causa dos Democratas. Por exemplo, o Senador Strom Thurmond, que foi a pessoa que serviu no Congresso americano durante mais tempo, 48 anos pela Carolina do Sul, era Democrata até 1964 e passou a ser Republicano depois, exactamente porque se opunha ao Civil Rights Act. Thurmond é um dos mais famosos racistas americanos, o que não o impediu de ter uma filha com uma mulher negra.

No outro dia, o meu vizinho emprestou-me um par de panfletos políticos Republicanos. Um tinha um artigo sobre os imigrantes ilegais cometerem mais crimes do que os residentes e ele emprestou-me isto porque eu tinha afirmado o contrário. Depois percebi o meu erro de lógica: como entrar no país ilegalmente é crime, 100% dos imigrantes ilegais são, por definição, criminosos. Tive de admitir o meu erro ao meu vizinho, mas mesmo assim não concordei com a metodologia do panfleto, pois usava apreensão como sinónimo de crime e eu respondi, aliás, escrevi na carta que dei ao vizinho que isso era inconstitucional, pois tem de haver "due process".

O segundo panfleto quase me esqueci de devolver porque tinha ficado numa das minhas muitas pilhas de papeis, mas quando o encontrei li-o e, no mínimo, fiquei de boca aberta. Um congressista negro da Louisiana, que era Democrata e agora é Republicano, tinha um panfleto para uma eleição qualquer em que pegou em excertos racistas de políticos Democratas para demonstrar o quão racistas eram. Todos nós já dissemos algo que, tirado do contexto é racista, e quando devolvi o panfleto disse ao meu vizinho que o mesmo panfleto poderia ter sido feito com coisas ditas por Republicanos. Ele respondeu-me que a esposa tinha ficado tão perturbada ao ler aquilo que tinha dito logo que precisavam de contribuir para a campanha do congressista negro da Louisiana. Grandes racistas, estes meus vizinhos... Mas o marido disse que era preciso calma, aquele político não era o melhor, se calhar.

Aquando do vizinho me ter dado os panfletos, comentei o caso com outros dois vizinhos, mas não faço ideia de que partido são. Um é um senhor gay, super-simpático que sempre que me vê diz que adora os portugueses, pois viveu na Califórnia onde havia e há uma grande comunidade lusa. A outra vizinha também gosta muito de mim, mas nunca me falou de outros portugueses, apesar de também ter vivido na Califórnia. Ambos me consolaram e disseram que o meu outro vizinho não me devia ter tentado endoutrinar. Ela confidenciava que sempre que a mãe dela, uma senhora também de idade, diz algo que a faz desconfortável, o marido lhe diz: "As pessoas idosas dizem as coisas mais estranhas!" e bastava ouvir isso para aliviar os ânimos.

Já o meu vizinho gay dizia que a política era uma coisa privada, não precisávamos de discutir com os vizinhos. Depois falou com bastante admiração de uma outra nossa vizinha que entretanto se mudou: ela sobreviveu ao Holocausto, mas a cidade onde morava foi uma das que foi bombardeadas pelos americanos e quase ninguém sobreviveu. E aqui andava ela, numa cidade da América, nunca se queixava de nada, era amiga de toda a gente. Sempre que alguém se mudava para a vizinhança ela era uma das primeiras pessoas a conversar com os recém-chegados; aliás, ela tinha o cognome de Embaixadora da Vizinhança.

Lembro-me da primeira vez que a vi, passeávamos ambas os respectivos cães. Cumprimentámo-nos e ela ficou encantada com o meu cão e perguntou "Is he friendly?" Parecia que sim. Os cães cheiravam-se e rosnavam um bocadinho e ela continuava a conversar. Na segunda vez que a vi, o nosso encontro foi quase como o primeiro; o terceiro também. Em conversas com outros vizinhos fiquei a saber que estava com princípio de demência, mas não queria ir para um lar e ainda conduzia. Há algumas semanas, encontrei o filho dela pela segunda vez. Uma pessoa super-simpática, sempre falou comigo como se me conhecesse há imenso tempo (ambos temos bouledogues franceses), e disse-me que ia finalmente levar a mãe para um lar no nordeste dos EUA, para ficar perto da família.

É estranho pensar na minha vizinha como sobrevivente do Holocausto, que constroi uma família e tem um filho tão simpático, alguém que quansdo conhecemos não pensamos que nasceu de uma pessoa que sobreviveu ao inferno. Mas todos nós somos descendentes de alguém que sobreviveu ao inferno e todos nós somos sobreviventes. Essa é a versão mais simpática da nossa vida, mas para sobreviver noutros tempos, ser simpático não era garantia. Pelo contrário, ser simpático muitas vezes era meio caminho andado para se morrer mais depressa.

A história não é linear. Os bons não são sempre bons; os maus não foram sempre maus. Em Portugal, pensa-se que a Direita é má por causa da Ditadura. O André Ventura é racista porque decidiu formar um partido "extremista". É um racista perigoso, que anda a apertar a mão a pessoas negras e a cumprimentá-las, em vez de as insultar e espancar, como seria esperado de um racista bonzinho. Penso na Revolução do 25 de Abril, a tal que foi iniciada pelos militares e me dizem que é uma revolução da Esquerda. Que raio de Ditadura de Direita teria um corpo militar de Esquerda?

“Em Portugal, tudo é ameno. O fascismo era turístico. As touradas são a arte de promover sem cumprir a liturgia do sangue. As revoluções são banquetes de cravos que produzem arrotos aromáticos. O que muitos antifascistas abominam na PIDE é o ela não ter feito deles anjos de asas ensanguentadas.»

Adenda: Natália Correia citada por Fernando Dacosta

Excerpt From: Fernando Dacosta. “O Botequim da Liberdade.” Apple Books. https://books.apple.com/us/book/o-botequim-da-liberdade/id703484323










5 comentários:

  1. Vamos então analisar este texto e o objectivo para o qual ele foi escrito. O objectivo grosso modo é o branqueamento de protofascistas como o André Ventura

    Pode ser dividido em duas partes: a primeira em que a autora, ciente que está a tentar branquear um racista, tenta demonstrar que, como está integrada numa comunidade diversa (gays, idosos, minorias étnicas e religiosas) não é racista. Logo se ela não é racista e está a defender o André Ventura então este também não o deve ser. Basicamente é o oposto da culpa por associação. Pureza por associação... Tenho que admitir que é uma maneira inteligente de fazer a coisa.

    A segunda parte do texto é último parágrafo antes da citação e é o branqueamento propriamente dito.

    "A história não é linear. Os bons não são sempre bons; os maus não foram sempre maus."

    Tradução: apesar de o André Ventura defender coisas inenarráveis, essas coisas até podem vir a ser consideradas aceitáveis. A falha óbvia é uma politica nociva pode ser aceitável para o resto da sociedade mas causar danos imensos. O caso da escravatura é paradigmático. A escravatura foi maléfica pelo sofrimento causado não pelo grau de aceitabilidade na sociedade onde esta era praticada.

    "Em Portugal, pensa-se que a Direita é má por causa da Ditadura"

    Tretas. A ditadura era má porque oprimia e matava. E há uma parte da direita nacional que a apoiava. É esta direita que tem má reputação em Portugal e actualmente pulula pelas caixas de comentários do Observador e na redacção d’O diabo. Também anda no PNR, Chega, IL e no CDS. Afinal o próprio Freitas do Amaral disse que havia uma parte da direita em Portugal que era Salazarista de forma envergonhada. Ele lá saberia do que estava a falar.

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  2. (continuação)

    “O André Ventura é racista porque decidiu formar um partido "extremista".”

    O André Ventura é racista porque diabolizou povos inteiros (os ciganos) e o partido é extremista porque está cheio do indivíduos que pensam como ele. O facto da Rita pôr a palavra extremista entre aspas diz imenso do posicionamento político dela. Só não vê quem não quer. E sem falar na maneira sub-reptícia como o André Ventura colocou a pena de morte na discussão pública. Enfim, o primeiro passo para a aceitação de coisas monstruosas é começar a falar delas…

    “É um racista perigoso, que anda a apertar a mão a pessoas negras e a cumprimentá-las, em vez de as insultar e espancar, como seria esperado de um racista bonzinho.”

    Quando Hitler foi eleito não começou a construir os campos de morte no dia seguinte. Começou com palavras, continuou com decretos-lei e acabou com Zyklon B. O Chavez e o Orban não começaram logo a degradar as instituições democráticas. Levaram o seu tempo. Entidade a entidade, apparatchik a apparatchik, peça de propaganda a peça de propaganda. Sem contar que a maioria dos ditadores carniceiros não suja as próprias mãos. Têm subordinados para isso ou então limitam-se a acicatar ódios e cruzar os braços quando os seus seguidores cometem os actos de violência.

    “Penso na Revolução do 25 de Abril, a tal que foi iniciada pelos militares e me dizem que é uma revolução da Esquerda”

    Mais propaganda. A revolução é da democracia porque foi esse o regime que saiu dela. Afinal todos os políticos democratas aceitam o 25 de Abril sem problemas nenhuns. Isto inclui políticos da direita como o Freitas do Amaral, o Sá Carneiro, a Assunção Cristas ou o Adolfo Mesquita Nunes. A direita salazarista envergonhada é que sempre manifestou um enorme desconforto com o 25 de Abril.

    “Que raio de Ditadura de Direita teria um corpo militar de Esquerda?”

    Vasco Gonçalves aquele direitalho. Otelo Saraiva, esse fascista… Bom, agora a sério: os militares fizeram a revolução porque o regime estava podre e eles não queriam morrer no ultramar que consideravam ser uma guerra estúpida. Houve militares de muitas cores políticas envolvidos. A Rita estava apenas a tentar atribuir o 25 de Abril ao campo da direita. É uma coisa que os extremistas fazem muito: se é bom, fomos nós. Deu asneira? Foi culpa deles! Quer exemplos: 25 de Abril? Feito por aqueles bravos militares de direita. PREC? Malditos comunas que desvirtuaram a nossa revolução… 25 de Novembro? Herois de direita que salvaram isto tudo! FMI em 78? Raio dos socialistas que deram cabo da economia….

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  3. A citação do Fernando Dacosta é ela própria um branqueamento do fascismo e uma desconsideração pelo sofrimento das pessoas. Um mimo!

    "Em Portugal, tudo é ameno."
    Eu e muitos outros penamos com a crise. Não tenho ideia de ter sido "ameno"

    "O fascismo era turístico."

    A guerra colonial e os seus milhares de vitimas, a perseguição politica e tortura era um espetáculo de turistas. E nem estou a contar com os milhares de exilados e de pessoas que emigraram para fugir da guerra e da pobreza.

    "As touradas são a arte de promover sem cumprir a liturgia do sangue."
    Maus tratos de animais? Qual quê! pfffff!

    "As revoluções são banquetes de cravos que produzem arrotos aromáticos."
    Tivemos sorte com o 25 de Abril. Noutras alturas não tivemos tanta sorte.

    "O que muitos antifascistas abominam na PIDE é o ela não ter feito deles anjos de asas ensanguentadas"

    Pois está claro que sim! A PIDE realmente era conhecida pelo seu tratamento humano das pessoas. O comunas é que gostavam de ser torturados e perseguidos....

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    1. O Fernando Dacosta estava a citar a Natália Correia. Talvez lhe desse jeito ler o livro, antes de falar de "branqueamento do fascismo".

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    2. Obrigado pela sua sugestão. Conhece o termo "quote mining"? Basicamente é pegar numa citação fora de contexto de alguém que nós sabemos que defende uma coisa e apresentá-la de forma a defender o exacto oposto. É uma forma de demagogia abundantemente utilizada por extremistas. Geralmente é utilizada por criacionistas contra a Teoria de Evolução, mas pode ser aplicada a tudo.

      Outra coisa: não é só a mensagem que conta. O mensageiro também afecta a maneira como a mensagem é entendida.

      Ex: " o nosso povo precisa de se livrar dos seus demónios para atingir a grandiosidade..."
      Dito pelo Ghandi ou pelo Mandela uma pessoa pensa em inclusão e num processo politico pacifico. Se for dito pelo Hitler imaginamos logo que os demónios são os judeus e que a purga será feita com campos de concentração e deportações em massa.

      A utilização dessa citação por si é um belo exemplo de "quote mining". Depois se alguém como eu apontar que estão a defender uma coisa que o autor original não defendia, basta mencionar os pergaminhos antifascistas da Natalia Correia. É uma maneira inteligente de fazer a coisa e geralmente funciona, desde que o interlocutor não conheça o truque...

      P.S. Tentar chamar-me de ignorante para condicionar-me não vai funcionar. Eu sei que quem recorre a ataques "ad hominem" significa que não tem argumentos que preste.

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