terça-feira, 15 de outubro de 2013

O CATÓLICO PAULO PORTAS E A GUERRA COLONIAL (conclusão)

Por Cristóvão de Aguiar 

Sou um dos milhares de cidadãos portugueses que perten­cem à chamada geração da Guerra Colonial. Ainda estive tentado a es­crever o verbo no pretérito, mas, como tantos outros camaradas meus, ainda sofro, e sofrerei, as seque­las psicológicas que, durante os quase dois anos da minha estada no inferno da então chamada pro­víncia da Guiné portuguesa, para sempre me machucaram a mente e o íntimo. Assim, a geração da Guerra Colonial só termi­nará quando o último combatente fechar os olhos… Depois, talvez ela fique registada em nota de rodapé, num capítulo da Histó­ria do século XX português…

Existem, porém, milhares de outros que tiveram menos sorte e continuam a padecer ainda mais. Aqueles a quem se deu o nome de deficientes das Forças Armadas: muti­lados, cegos, que viram as suas vidas familiares desman­chadas, além de outras mazelas que os tornaram em seres viventes cuja vida pouco sentido tem. Para já não falar naqueles que tombaram na mata ao serviço de uma pátria apodrecida por um regime que mais não foi do que uma nódoa histórica pregada no peito do país durante cerca de cinquenta anos. 

De ambos os lados da bar­ricada, a guerra colonial foi intensamente cruel e ainda está a sê-lo para muitas cente­nas, ou milhares, que por lá andaram a esmigalhar os melhores anos da juventude. Isto de se falar em terro­rismo apenas do lado dos guerrilheiros tem muito que se lhe diga. As nossas tropas também o praticavam em grande escala. Sobre tudo isso, porém, era expressamente proi­bido falar. Havia ouvidos atentos a escutar, e existia medo, ignorância, e a cen­sura a compor o resto do rama­lhete, torcendo a verdade para construir a mentira oficial. Nem sequer havia guerra, afirmavam os donos do regime e os cabecilhas. Andávamos tão-só em missão de vigilân­cia nas pro­víncias ultramarinas, flageladas pelos “turras”, e que, como se devem lem­brar, constituíam o prolonga­mento natural da pátria, que ia do Minho a Timor, refrão patrioteiro, que então se entoava e que alguns ainda gosta­riam de conti­nuar a solfejar.

Havia, pois, uma mantilha de silêncio caída sobre o que ocorria nas três frentes de batalha. Pouco ou nada se sabia. As razões são múl­tiplas e não serão despiciendas as que já apontei: censura, medo, vigilância da PIDE, desin­teresse do povo em geral, que só lhe im­portava se tinha familiares que por lá combatiam — adeus, até ao meu regresso — e, quanto à maioria dos soldados, não sabiam, nem queriam saber, das razões que os haviam levado a ir matar e esfolar negros para um Continente que, segundo lhes martelaram desde a cate­quese da escola primária, constituía um património tão português como as suas aldeias da metrópole — “Angola é nossa”— tocavam as ban­das regimentais, nas cerimó­nias militares, por vezes acompanhadas por um coro de vozes vibrantes de patri­otismo…

Claro que havia quem estivesse a par das causas da situa­ção bélica em África. Principalmente muitos dos oficiais mili­cianos, saídos das Uni­versidades directamente para as fileiras, alguns por castigo, por terem intervindo activa­mente nas crises académicas de 62 e 69; os que haviam desertado antes que fosse demasiado tarde e seguis­sem para as cadeias políticas do regime então em vigor; havia ou­tros ainda que, mesmo na clandestinidade, ou em plena guerra co­lonial, pro­curavam passar informações de todas as maneiras e fei­tios que constituíam depois matéria-prima para a rádio Voz da Li­berdade, aos microfones da qual Manuel Alegre desempenhou um papel rele­vante de informação e formação.

Porém, o silêncio, prolongou-se em demasia. Ninguém, por mais ousado politicamente, se atrevia, em público, a falar da guerra co­lonial. A primeira vez que ouvi gritar “abaixo a guerra colonial” foi numa Assembleia Magna da Academia de Coimbra, cuja ordem do dia era a greve académica de 1969 que, logo a seguir se realizou com tal êxito, que havia de aba­lar o regime. Mas, o estudante que deu aquele grito de alma, sincero e lanci­nante, foi depois admoes­tado pelos próprios companheiros, por ter dado razões aos elemen­tos da DGS, infiltrados entre a multidão estudantil, como toda a gente estava farta de saber, e que nos acompanhavam na gritaria de vivas e morras, para que ninguém desconfiasse da sua presença, o que não era difícil... Até onde chegava a censura interior! A ju­ventude de hoje não poderá compreender essa atitude de uma pru­dência tal, que poderia facilmente confundir-se com cobar­dia…

E há ainda quem diga que perdemos a guerra por cobardia. Na mi­nha freguesia havia um ricaço da União Nacional que, sempre que falava com meu Pai, lhe tecia loas por ter um filho (eu) a combater pela Pátria. Um belo dia, depois de eu ter voltado há muito da guerra, meu Pai confrontou-o com o facto de o filho ter já catorze anos e podia ser chamado, que a guerra não tinha fim à vista… Fi­cou aterrado e respondeu-lhe, oh mestre, sou capaz de o mandar estudar para os Estados Unidos, para se livrar do flagelo… Não foi preciso. Uma, porque o rapaz era estúpido como um calhau rolado; outra, porque o 25 de Abril viera entretanto pôr fim ao conflito. Nem assim o ricaço se convenceu de que o regime de que era sócio e bufo não tinha futuro. Continuou a defender Salazar e o seu re­gime e, por vingança ignóbil, enviava todo o seu dinheiro para a América, comprando todos os dólares que as pessoas recebiam de suas famílias emigradas… Bem gostaria eu que Paulo Portas e o filho do ricaço da União Nacional se tivessem integrado nas filei­ras que a pátria deles alinhavam nos cais de embarque só para os outros…

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