quarta-feira, 6 de abril de 2016

História gótica

31. Com um pequeno pente cor de pérola, o boticário endireitava o seu bigode.
Tinha um braço apoiado no balcão e segurava um espelhinho redondo que cabia na palma da mão. O pente e o espelho costumavam estar guardados num dos bolsos do colete de Dragomir, que nunca saía de casa sem eles. Na cidade usava também uns óculos redondos de lentes escurecidas que, entendia, lhe davam um ar misterioso. E este ar misterioso, entendia mais uma vez, ficava-lhe bem, tão bem como a luva de pelica amarela ou o botim de verniz preto que aprendera a usar com a observação e com as revistas que a mãe trazia de casa da patroa. Dragomir passara a infância e a adolescência como ajudante de um farmacêutico no Boulevard G., mesmo no centro da actividade daqueles comerciantes que as senhoras das grandes casas frequentavam pessoalmente, o chapeleiro, o joalheiro, o vendedor de perfumes, o comerciante de tecidos e botões, o mercador de leques e sapatos. Na farmácia, decorada num equilíbrio delicado entre a frivolidade do negócio e a severidade da ciência, vendiam-se sais para as meninas mais sensíveis e pós para os nervos frágeis das damas maduras. Aqueles remédios para condições melindrosas como o mau hálito ou a queda do cabelo, eram vendidos discretamente nas traseiras do estabelecimento às criadas dos notáveis. Dragomir, seguindo ordens, andava de um lado para o outro da loja, subindo e descendo os degraus de um escadote que ia encostando aos armários e prateleiras onde estavam guardadas as substâncias que o farmacêutico manipulava. Também fazia entregas, e, à porta das cozinhas dos palacetes, conseguia ter breves vislumbres do mundo inacessível dos ricos que a mãe mantinha limpo e brilhante. Encantavam-no nesse mundo não, como poderia esperar-se, as jovens de vestidos vaporosos e risos argênteos, mas os cavalheiros aprumados que mudavam de indumentária com cada mudança de cenário, as calças com que montavam não eram as calças com que frequentavam os teatros, as camisas que usavam durante o dia não eram as camisas que usavam à noite, falavam toda uma linguagem de lenços, botões de punho e correntes de relógio que levaria uma vida a aprender mas que para eles era tão natural como respirar. A princípio, a aspiração de Dragomir era ser um daqueles criados pessoais que escovam casacos e endireitam gravatas, que preparam as roupas adequadas a cada ocasião e ajudam os senhores a vestir-se, porque lhe parecia que privar de forma tão íntima com aqueles prodígios de elegância era já ter subido tão alto quanto se podia subir. Até porque esses criados, quando desciam às cozinhas, assumiam o mesmo ar desdenhoso e lânguido que viam nos patrões, o que era já muito impressionante. Mas Dragomir espreitava os senhores, estudava as suas poses e expressões, e rapidamente percebeu que os valetes eram meras cópias de um original de que estavam incomensuravelmente distantes. Mudou as suas ambições. Tornou-se cada vez mais observador. Ensaiava poses e gestos ao espelho. Treinava expressões francesas que ouvia sem saber o que significavam. Petit-fours, mettre la main à la pâte, a vol d'oiseau, hélas. Estas, aprendeu, usavam-se nos bailes e nos intervalos das óperas, que espreitava graças às diligências de um amigo que servia taças de champanhe às damas e cavalheiros. Já as expressões inglesas, old chap, for goodness' sake, fair play, eram apropriadas às sessões de brandy e charutos reservadas aos homens da espécie depois dos jantares. "Quero isto!", pensava. E, já jovem adulto, já capaz de vestir-se com o aprumo suficiente para passear nas avenidas de costas direitas e passo indolente, delineou o plano que se lhe apresentou como o mais eficaz para rapidamente o fazer subir à vida aristocrática, na verdade burguesa, que tanto admirava. Decidiu seduzir uma jovem de boas famílias, encantar-lhe os pais, e casar.

1 comentário:

  1. Aos poucos, Dragomir, gémeo de muitos outros Dragomir que se foram sucedendo na nobre arte da mímica, foi percebendo que a única face importante é aquela que o espelho reflecte...

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